sexta-feira, novembro 24, 2023

Alexandre Kantorow, ou o tempo circular

ALEXANDRE KANTOROW
Fundação Calouste Gulbenkian / Grande Auditório
11 nov 2023, 19h00

Johannes Brahms
Rapsódia em Si menor, op. 79 n.º 1
Franz Liszt
Estudo de execução transcendente, Chasse-neige, S.139/12,
Vallée d’Obermann S.160/6 (Années de Pèlerinage: 1e année, Suisse)
Béla Bartók
Rapsódia, op. 1
Sergei Rachmaninov
Sonata n.º 1, em Ré menor, op. 28
J. S. Bach / J. Brahms
Chaconne em Ré menor, para a mão esquerda (da Partita para Violino solo n.º 2, BWV 1004)

"Não há palavras", dizia um espectador naquele inesquecível fim de tarde no Grande Auditório na Gulbenkian. Apetece brincar com as palavras e reforçar o espanto, dizendo que, de facto, Alexandre Kantorow é um daqueles pianistas capaz de nos garantir que a sua relação com as teclas supera e, no limite, dispensa os códigos da fala ou da escrita...
... ainda assim, é preciso dizer/escrever alguma coisa. Sublinhando, em particular, que a mestria de Kantorow, alheia a qualquer ostentação de versatilidade, ao escolher Brahms, Liszt, Bartók e Rachmaninov, parece enraizar-se num tempo de transição, ou melhor, de passagem (do século XIX para o século XX), quando os parâmetros da composição e da performance se terão aberto, mais do que nunca, a todas as possbilidades. Ao escutarmos Vallée d'Obermann, por exemplo, dir-se-ia que a composição de Liszt nos devolve a um tempo passado, carregado de futuro, em que todas as matrizes reconhecíveis parecem coabitar com a mais pura improvisação — o que, evidentemente, decorre também do modo como Kantorow a interpreta.
Chegados ao momento final do programa, consultamos a calendário e observamos o tempo que passa, passando através de uma circularidade cujo enigma suspenso nos mobiliza. Assim, há mais de um século e meio entre a origem da Chaconne de Bach, composta em 1720, e a sua transcrição "para a mão esquerda", feita por Brahms, em 1879. Essa distância desenha também o cenário de uma proximidade de que Kantorow é, de uma só vez, o intérprete concreto e o mensageiro abstracto — eis um registo da Chaconne, por Kantorow, realizado na Sociedade Filarmónica de Moscovo, a 15 de maio de 2021.

quinta-feira, novembro 23, 2023

SOUND + VISION Magazine
— Beatles, FNAC Chiado [9 dez.]

A data foi alterada, mas o tema mantém-se: Now and Then, a "última canção dos Beatles" é o ponto de partida para revisitarmos a herança do quarteto de Liverpool, redescobrindo memórias visuais e sonoras.

>>> FNAC Chiado, 9 de dezembro (17h00).

David Fincher,
realizador de telediscos

David Fincher e Michael Fassbender
— rodagem de O Assassino

O novo filme de David Fincher, O Assassino (Netflix), é uma proeza tanto mais fascinante quanto reflecte o enraizamento do seu trabalho numa multiplicidade de linguagens —incluindo os telediscos, convém não esquecer.
De facto, a partir da década de 80, graças ao fenómeno MTV, quando os videoclips passaram por um impressionante boom de criatividade (e evolução técnica), Fincher afirmou-se como um dos mais brilhantes realizadores de telediscos, muitos deles ainda antes de assinar Alien 3, a sua primeira longa-metragem para cinema. Para a história, em 1989, assinou Express Yourself, de Madonna, momento fulcral de toda esta história, já que, na altura, surgiu como o mais caro teledisco de sempre (5 milhões de dólares), mostrando que se estava a consolidar um novo modo de produção/difusão da música.
Aqui ficam três exemplos, entre os menos divulgados, da trajectória de Fincher.

>>> Get Rhythm, Ry Cooder (1988).
 


>>> Oh Father, Madonna (1989).

 

>>> Only, Nine Inch Nails (2005).

 

Uma serenata de Bruce Springsteen

Foi há meio século... 1973 é o ano decisivo de afirmação de Bruce Springsteen nos labirintos da música popular, lançando os seus dois primeiros álbuns: Greetings from Asbury Park, N.J., em janeiro, e The Wild, the Innocent & the E Street Shuffle, em novembro. A clara definição das suas raízes, do espírito folk à crueza que o rock pode assumir, não excluía, bem pelo contrário, uma energia criativa à procura da sua definição e que, por isso mesmo, talvez possamos apelidar de experimental.
Com alguma nostalgia, ma non troppo, escutemos, por isso, New York City Serenade, tema que encerra o alinhamento do segundo álbum, em dois momentos: a gravação original e uma performance, em Roma, 40 anos mais tarde — Bruce é mesmo um daqueles que, sem ostentação nem pitoresco, justifica o cognome de contador de histórias.



Patti Smith no cinema...

... não os filmes "com" Patti Smith, entenda-se, mas os filmes em que, directa ou indirectamente — sobretudo através da sua música —, Patti Smith marca de forma indelével o próprio acontecimento cinematográfico. É uma das mais recentes edições do programa Blow up, do canal Arte, e serve de exemplo de um didactismo televisivo — raro em televisão — que nasce do gosto de conhecer os labirintos das linguagens artísticas, partilhando os seus insubstituíveis prazeres.

quarta-feira, novembro 22, 2023

O mundo que está a morrer [David Fincher]

Michael Fassbender em O Assassino:
vivendo um "presente imóvel ou de eternidade"

Com o seu novo filme, O Assassino, David Fincher redescobre a montanha mágica do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 outubro).

Hans Castorp, personagem central de A Montanha Mágica, o romance do alemão Thomas Mann à beira de completar um século — a edição original é de novembro de 1924 —, experimenta o esplendor contraditório da natureza, outrora redentora, agora potencialmente trágica, como se fosse o derradeiro ser humano. Por uma coincidência impossível de racionalizar, lembremos que no mesmo ano, também na Alemanha, F. W. Murnau retratava a agonia de um velho porteiro de hotel, interpretado por Emil Jannings, num filme com um título, por assim dizer, paralelo ao romance de Mann: O Último dos Homens.
Para recordarmos a odisseia do seu olhar, citemos com alguma demora os sobressaltos da sua aventura física e mental (recorro à tradução de Herbert Caro, editada pelos Livros do Brasil): “Quando Hans Castorp parava, a fim de não se ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito, e o menor vestígio de som era como que abafado, um silêncio ignoto, jamais sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio primitivo, aquele que Hans Castorp contemplava ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça inclinada para um dos ombros e a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve continuava a cair, a cair tranquilamente, sem um ruído.”
A figura central do novo filme de David Fincher, O Assassino (primeiro nas salas, a partir de 10 de novembro na Netflix), é um herdeiro paradoxal, porventura perverso, não exactamente de Castorp, mas desse misto de observação e mágoa em que Mann o envolve. Nos cenários da “antiga” natureza ou na nossa selva urbana, ambos vivem a mesma dificuldade de pertencer a um mundo que se desagrega — aliás, um mundo que alienou a crença na sua própria lei.
A imersão de Castorp nas maravilhas da natureza tem mesmo algo de luto silencioso por esse mundo que está a morrer, esvaziando o lugar clássico do ser humano. As medidas do tempo deixaram de ser acolhedoras, uma vez que “Hans Castorp já não sabia distinguir o “ainda” e o “de novo”, de cuja mistura e confusão resulta o “sempre” e o “nunca”, situados fora do tempo.”
Para o assassino de Fincher, interpretado pelo genial Michael Fassbender, o tempo é uma máscara impossível de decifrar. Como? Rasurando o passado, dispensando qualquer imaginação do futuro: tudo é vivido, percebido e habitado como um presente absoluto. Esse presente cristaliza no tempo de execução do próprio crime. A longa espera do alvo humano que abre o filme tem qualquer coisa desse tempo em que, sob o signo da doença, vive Hans Castorp. Como dizê-lo? Mann descreve-o como um “presente imóvel ou de eternidade.”
Observem-se as imagens recorrentes do relógio usado por Fassbender, não tanto para medir o tempo exterior, mas sim os seus ritmos interiores, tudo aquilo que faz dele um humano que descolou da própria humanidade, vivendo como uma entidade sempre em movimento no espaço, mas congelada no tempo. E lembremos o relógio de Hans Castorp: “A minúscula agulha saltitava pelo seu caminho, sem se importar com os números que alcançava, percorria, ultrapassava, ultrapassava muito, aproximava-se e alcançava de novo. Era insensível aos objectivos, às divisões e aos marcos. Deveria demorar-se por um instante no sessenta ou pelo menos assinalar de qualquer maneira que alguma coisa findara ali.”
Há uma noção de destino que se desagrega quando “o passado é idêntico ao presente e ao futuro.” As caminhadas de Hans Castorp na natureza atraem um niilismo que, no plano simbólico, não é estranho ao gelo existencial que o assassino de Fincher também experimenta e, ao experimentá-lo, partilha connosco. Esta frase de Mann poderia pertencer ao obsessivo monólogo de Fassbender: “Na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo, o movimento de um ponto para outro deixa de ser movimento, não existe tempo.”
O Assassino é esse filme em que as medidas do tempo, porque interiores, despidas de qualquer “mensagem” ecuménica, se afogam na ambígua sedução das imagens e na vibração ritualizada da música de Trent Reznor e Atticus Ross. Não é, ironicamente, e ao contrário de Oppenheimer, de Christopher Nolan, um cinema que reivindique a grandeza da sala clássica, o que não o impede de se demarcar do mercantilismo narrativo que alagou as plataformas de “streaming”. Com a agilidade de muitos telediscos (área em que Fincher se distinguiu no começo da carreira), deparamos com um ecrã que não “reproduz” o que quer que seja, antes fabrica um mundo novo, colado ao mundo a que chamamos “real”: o olhar do atirador e a disponibilidade incauta do nosso olhar de espectadores partilham a mesma energia primitiva. A saber: o desejo de ver, insaciável, pecado primordial da arte cinematográfica.
O Assassino nasce da ética ancestral do espectáculo em que recusamos a ideia segundo a qual um filme existe para expor “temas” do nosso mundo — o mundo evolui de forma selvagem, não cabe nos “temas” em que tentamos aprisioná-lo. Fincher actualiza, assim, as lições de Alfred Hitchcock, colocando no centro dos acontecimentos o desejo ambíguo que faz da personagem um espectador dentro do filme, transfigurando o espectador em personagem que poderia entrar no filme. Raras vezes o cinema sabe aceder a esse desencanto feliz que o fez nascer: personagem e espectador partilham as histórias de uma só solidão.

>>> Música do genérico de O Assassino (Trent Reznor & Atticus Ross).

As almas e os seus corpos [Paul Schrader]

Joel Edgerton, O Mestre Jardineiro:
"A jardinagem é a manipulação do mundo natural"

Nos filmes de Paul Schrader, o herói (ou anti-herói) é sempre alguém que procura alguma forma de redenção. No caso de O Mestre Jardineiro, Joel Edgerton interpreta um homem que pratica a jardinagem como “uma crença no futuro” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 novembro).

Ao descobrirmos a mais recente realização de Paul Schrader, O Mestre Jardineiro, talvez seja inevitável evocar e, num certo sentido, invocar outras referências da sua obra. A começar, claro, pelo ciclo que este filme encerra, uma trilogia que o próprio Schrader não terá programado, mas que acabou por reconhecer como um modo pertinente de descrição: primeiro, surgiu No Coração da Escuridão (2017), com Ethan Hawke a interpretar o sacerdote de uma pequena congregação novaiorquina, à deriva no meio das atribulações do seu rebanho; depois, Oscar Isaac protagonizou The Card Counter: O Jogador (2021), cuja agilidade nos jogos de cartas coexiste com os fantasmas do seu passado militar; agora, Joel Edgerton assume a personagem de um jardineiro profissional que arrasta os estigmas de uma vida marcada pela ideologia da supremacia branca.
O que liga estas personagens é uma dimensão transcendental que o próprio Schrader reconhece estar ligada à sua educação religiosa e à sua formação teológica — será também inevitável repetirmos que ele é autor de um clássico da literatura cinematográfica, O Estilo Transcendental no Cinema - Ozu, Bresson, Dreyer (disponível em edição portuguesa: Edições 70, 2023). Se quisermos sistematizar essa componente, diremos que no centro de cada um destes filmes encontramos uma personagem que, na sua solidão primordial, formula, de forma angustiada, a possibilidade de encontrar alguma redenção. Como ele gosta de dizer, são dramas de um homem só num quarto (“man in the room dramas”).
E há um paradoxo a ter em conta que, como é óbvio, marca também os filmes de Martin Scorsese em que Schrader trabalhou como argumentista — com destaque para Taxi Driver (1976) e A Última Tentação de Cristo (1988). Nasce esse paradoxo da demanda em que está enredado cada um dos protagonistas: a possível redenção da alma expõe-se — aliás, filma-se — através de uma inusitada intensificação da presença material dos corpos.
No caso de Narvel Roth, a personagem de Edgerton em O Mestre Jardineiro, esse factor paradoxal é tanto mais perturbante quanto o passado racista da personagem está, literalmente, inscrito no seu corpo. Podemos mesmo dizer que as suas tatuagens são uma forma de escrita que, de uma maneira ou de outra, ele vai dar a ler às duas mulheres que pontuam o seu destino: Norma (Sigourney Weaver), a dona da propriedade em que trabalha, e Maya (Quintessa Swindell), a sobrinha de Norma que Narvel está encarregado de iniciar nos segredos da jardinagem.
Logo na cena inicial, vemos Narvel sentado a uma mesa, a escrever (um homem só no seu quarto…), inventariando vários modelos de arranjo dos jardins e estabelecendo a sua própria utopia: “A jardinagem é uma crença no futuro, uma crença de que as coisas acontecerão de acordo com o que foi planeado e que a mudança acontecerá no tempo devido.” Muito mais tarde, ouviremos dizê-lo que “a jardinagem é a manipulação do mundo natural”. Ou ainda: “uma criação de ordem onde a ordem é apropriada”.
Schrader reafirma-se, assim, como o último dos cineastas religiosos. Não no sentido simplista de professar uma religião, mesmo se ele é o primeiro a reconhecer que as suas raízes calvinistas marcam toda a sua existência (afinal de contas, como ele já disse, até cerca dos 18 anos não tinha autorização para ver filmes). Antes como detentor de uma visão em que, mesmo nas convulsões mais violentas das suas histórias, há uma parte de sagrado que persiste, algures, no labirinto do mundo — uma ordem assombrada pela sua desordem.

TIME: 100 fotografias de 2023

MAXIM DONDYUK, para The New Yorker
* Mãos de um soldado ucraniano
em Bakhmut (26 março)

No panorama da imprensa internacional, num dos primeiros balanços das imagens de 2023, a TIME propõe um TOP 100 das fotografias do ano — a lista pode ser consultada na secção Lightbox da revista.

MOHAMMED SALEM — Reuters
* Na Faixa de Gaza, uma mulher palestiniana de 36 anos,
abraça o corpo da sua sobrinha de 5 anos,
morta durante um ataque israelita (17 outubro)
GO NAKAMURAThe New York Times
Rio Grande, atravessando a fronteira México/EUA (29 março)

>>> Site da revista TIME.

terça-feira, novembro 21, 2023

Napoleão, 2023

Joaquin Phoenix. Que faz o poder? Que faz com que duas palavras, dois gestos ou duas poses aparentemente iguais gerem mecanismos de poder tão diferentes?
_____

* Publicado em Instagram/jjlr_lopes.
>>> Site oficial de Napoleão, de Ridley Scott.

Cat Power canta Dylan

Não há teledisco... não é preciso. Eis One Too Many Mornings, uma das canções do álbum Cat Power Sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert, refazendo (a 5 de novembro de 2022) um lendário concerto de Dylan que, em boa verdade, aconteceu no Manchester Free Trade Hall (a 17 de maio de 1966) — tempo que passa, tempo que fica.
 

segunda-feira, novembro 20, 2023

Vince Clarke, Opus 1

Vince Clarke: aos 63 anos, o mago inglês da música electrónica — com uma presença emblemática nos Erasure, mas também com ligações fortes a bandas como Depeche Mode e Yazoo — assina o primeiro álbum a solo. Intitula-se Songs of Silence e o mínimo que se pode dizer é que o mantém serenamente ligado às suas raízes — eis o teledisco de White Rabbit.
 

Sindicato dos Jornalistas
— uma recomendação


A propósito da divulgação de escutas resultantes da investigação do Ministério Público no caso Influencer, o Sindicato dos Jornalistas divulgou uma recomendação do respectivo Conselho Deontológico — eis o texto.

* * * * *

Recomendação do Conselho Deontológico
sobre a divulgação de escutas resultantes de investigação judicial

O Conselho Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalistas repudia a forma como vários media deram uma ampla divulgação às escutas resultantes da investigação do Ministério Público no caso Influencer, quer transcrevendo-as quer tratando-as como matéria noticiosa, sujeitas, por vezes, a um rudimentar tratamento jornalístico.

Considera o Conselho Deontológico que o acesso a peças de investigação desta natureza implica um rigoroso escrutínio jornalístico e processos de investigação próprios, como condição de uma informação rigorosa e verídica, que respeite os direitos quer de cidadãos quer de detentores de cargos públicos ao seu bom nome e à sua defesa.

O tratamento crítico da informação é um procedimento e uma exigência ética essenciais para que os jornalistas não se coloquem ao serviço de estratégias judicialistas de quem quer que seja, mantendo dessa forma a sua independência perante os poderes e as instituições e preservando a sua credibilidade perante o público.

No caso da divulgação de escutas realizadas no quadro de investigações do Ministério Público, o tratamento crítico da informação começa pelo questionamento da natureza complexa desses conteúdos, da sensibilidade das informações, recusando a publicação de dados ou aspetos pessoais das pessoas investigadas que nada acrescentam aos factos já conhecidos ou que não sejam pertinentes para compreender o objeto da investigação.

Os jornalistas quando publicam conteúdos presentes em escutas efetuadas pela investigação judicial devem seguir critérios indiscutíveis de interesse público por muito que isso possa complicar a mera busca de audiências e certos de que se arriscam a ser instrumentos de objetivos alheios.

Ascensão e queda dos estúdios Marvel

Uma poderosa imagem de marca, há mais de uma década
dominante no mercado cinematográfico global

O mais recente filme dos estúdios Marvel, As Marvels, é um aparatoso desastre comercial — eis um dado objectivo que justifica uma breve reflexão sobre o que é, ou pode ser, a criatividade cinematográfica — este texto foi publicado no site da SIC Notícias (13 novembro).

Estreado há poucos dias em todo o mundo, As Marvels, 33º filme dos estúdios Marvel — integrado no chamado Marvel Cinematic Universe (MCU) — foi abordado pelo New York Times num artigo com um título letal: “Você já viu este filme 32 vezes”. Entretanto, depois do respectivo falhanço de bilheteira durante o fim de semana, quer o Variety, quer The Hollywood Reporter, avaliaram os resultados de forma desencantada, classificando-os como um “desastre” (usando a palavra “bomb”, característica da gíria americana da imprensa especializada na área do cinema).
Vale a pena registar o facto, lembrando que não se trata de deduzir valores artísticos do dinheiro que os filmes custam ou rendem, como também seria fútil citar esse dinheiro para avaliar os resultados cinematográficos de uma qualquer produção. Para os mais precipitados, e não esquecendo que estes são filmes de gigantescos orçamentos, convém acrescentar, por contraste, que um qualquer filme independente feito com meia dúzia de tostões não é uma obra-prima só porque nasceu no meio de grandes limitações financeiras…
O desastre comercial de As Marvels pode parecer estranho, quanto mais não seja porque, no fim de semana de estreia, no mercado global, o filme acumulou a soma astronómica de 110 milhões de dólares. Ora, como Variety e The Hollywood Reporter analisam, isso é francamente pior que os 190 milhões que Capitão Marvel (2019) obteve num período idêntico — e é, sobretudo, péssimo para um filme que, assim o dizem as informações disponíveis, terá custado cerca de 270 milhões.
Em qualquer caso, essas são contas que devem ocupar a tesouraria do império Disney (que adquiriu a Marvel Entertainment em 2009 por 4 mil milhões de dólares). Neste momento, face a esta queda, o que emerge é o frágil factor nuclear de todo um “conceito” de cinema.
Claro que é mais que provável que o falhanço de As Marvels não abale a estrutura de produção dos estúdios Marvel — até porque não será arriscado prever que os próximos títulos da MCU serão novos sucessos financeiros. De um ponto de vista cinéfilo (entenda-se: exterior aos valores dos gestores financeiros), faz sentido encarar a ocasião recordando uma questão ancestral: não basta possuir uma elaborada estratégia de marketing — estratégia que, evidentemente, não falta à Marvel — para manter um programa, seja ele qual for, de criação cinematográfica.
Assim, é normal (e, mais do que isso, salutar) que manifestemos muitas diferenças quando avaliamos os filmes. O “bom” ou “mau” dos juízos de valor faz parte das diferenças de pensamento e sensibilidade que nos aproximam ou afastam, eventualmente gerando um diálogo interessante. Acontece que reduzir os filmes a uma mera contabilidade de mais milhões ou menos milhões está longe de ser, por si só, uma ideia criativa de cinema. Além de que, como se prova, essa contabilidade está também muito longe de ser a garantia de um público fiel.

domingo, novembro 19, 2023

Sobre liberdade de expressão
[citação]

Como é que as instituições sociais lidam com as regras, exigências e limites da liberdade de expressão? A propósito da actual conjuntura geopolítica, eis uma reflexão do jornalista Fareed Zakaria no seu programa GPS [CNN]. Escusado será dizer que tal reflexão envolve factos e nuances que são específicas da sociedade dos EUA, não aconselhando generalizações esquemáticas ou automáticas — seja como for, há um método de pensamento e uma serenidade argumentativa que vale a pena escutar.

A IMAGEM: Inge Morath, 1955

INGE MORATH / Magnum
Veneza, Itália
1955

Clássicos japoneses
— novos contos cruéis da juventude

A Tragédia do Bushidô: maravilhas do ecrã largo

Mais um filme integrado na terceira fase da série "Mestres Japoneses Desconhecidos", apresentada por The Stone and the Plot: a descoberta de A Tragédia do Bushidô, produção japonesa de 1960, baralha e enriquece a nossa percepção actual do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias — 5 de novembro.

Não há muitos anos, o imaginário dos super-heróis — entenda-se: o seu marketing — conseguiu criar um público que parecia viver apenas da expectativa de uma nova estreia que, em forma de sequela, repetisse a experiência do filme anterior. Foi um tempo esclarecedor sobre as formas que pode assumir o ódio à crítica de cinema. Aliás, ódio a qualquer possibilidade de pensar os filmes e, sobretudo, com os filmes, já que a relação com o cinema pode envolver o prazer de muitas ideias e não nasce da corrida aos bilhetes para as ante-estreias do próximo “blockbuster” (alguns magníficos, é verdade, não é isso que está em causa).
Lembrei-me dos desmandos dessa conjuntura ao ver o belíssimo A Tragédia do Bushidô, produção japonesa de 1960 realizada por Eitarô Morikawa — é um dos títulos incluídos na terceira fase da série “Mestres Japoneses Desconhecidos”, da responsabilidade da distribuidora e editora The Stone and the Plot, a quem se deve, por exemplo, a edição portuguesa do clássico estudo de Donald Richie sobre o mestre japonês Yasujiro Ozu (Ozu, 2020).
Na verdade, algo mudou. Digamo-lo da forma mais simples: mesmo sabendo que continuam a existir muitos desequilíbrios no mercado cinematográfico português, algo mudou para melhor. A saber: empresas como The Stone and the Plot, a que associamos o epíteto de “independentes” no panorama da distribuição/exibição, têm sabido alargar e diversificar a oferta cinematográfica, permitindo descobrir ou reencontrar filmes importantes, das mais diversas origens — da Ásia, por exemplo.
É simples, mas não simplifiquemos. Importa não ceder às muitas formas de estupidez alimentadas pela ideologia do politicamente (ou moralmente, ou sexualmente) correcto e evitar confundir o espaço dos “independentes” com o paraíso cinéfilo — desde os tempos heróicos das salas de “arte e ensaio” que o rótulo tem servido também para consagrar gloriosas mediocridades. Além de que, observando uma zona diferente do mercado, a meu ver complementar, não será o negativismo “chique” em relação à lógica de produção da Netflix que me levará a hesitar dizer que o novo filme de David Fincher, O Assassino, é uma sublime obra-prima.
A Tragédia do Bushidô permite perceber que a relação com o passado do cinema se refaz sempre como presente — esse tempo (presente, justamente) em que acedemos a um determinado filme com uma data mais ou menos remota. Ver A Tragédia do Bushidô, feito há mais de 60 anos, nada tem que ver com a noção (falsamente) jornalística que tenta convencer-nos que de um filme “antigo” nada mais ficou a não ser o “pitoresco” dos sinais da época em que foi feito. O seu poder emocional é tanto maior quanto a encenação de uma tragédia no mundo dos samurais ecoa através de uma interrogação intemporal: como é que o primado da lei passa (ou não passa) de uma geração para outra?
Esta é a história de um jovem que, de modo a preservar a honra do seu clã de samurais, é compelido a suicidar-se num ritual (“seppuku”) imposto pela morte do seu soberano — recorde-se que “Bushidô” é o código moral dos samurais. Ao tentar salvá-lo pela entrega sexual, a sua cunhada, que é também a mulher que o criou, projecta essa história num terreno em que a ordem conjugal e a lógica militarista se cruzam numa avalanche de ambiguidades que convive com o tabu primordial: a hipótese do incesto.
Estamos perante um filme da “nova vaga” japonesa, paralela ao que estava a acontecer em muitos outros países (França, Brasil, Portugal…), potenciando uma temática que, ao longo da década anterior, pontuara, precisamente, o trabalho de Ozu: a decomposição, no Japão do pós-guerra, das tradicionais relações familiares — os dramas suspensos, infinitamente pudicos, de Ozu vão-se transfigurando em tragédias carnais, por vezes marcadas por formas viscerais de violência. Aliás, é também em 1960 que Nagisa Oshima realiza esse título emblemático que é Contos Cruéis da Juventude. Claro que há três séculos a separar o mundo feudal de A Tragédia do Bushidô da época em que o filme foi realizado. Acontece que a contaminação dos tempos — ou das medidas do tempo — é inerente à vida dos filmes, ao modo como essa vida se refaz, igual e diferente, através dos olhares de novos espectadores. Enfim, se precisarmos de responder à pergunta pueril sobre a “utilidade” do filme, podemos, em última instância, apontar a sábia utilização do ecrã largo (herdeiro do CinemaScope, vulgarizado na década anterior): respeitar o sistema de composição de cada imagem, eis um valor que, neste século XXI, muitos filmes da Marvel têm tentado destruir.

sábado, novembro 18, 2023

Novo filme de Víctor Erice
é o vencedor do LEFFEST

Fechar os Olhos, de Víctor Erice, venceu a 17ª edição do LEFFEST. Revelado este ano em Cannes, será distribuído pela Nitrato Filmes — a estreia está marcada para 7 de dezembro.

Laufey, jazz & pop

Islandesa, 24 anos, filha de pai islandês e mãe chinesa, Laufey [lói-vei] é um caso sério de talento. Se há um lugar a meio caminho entre a agilidade do jazz e a geometria clássica da pop, é aí que ela pertence, como o prova o seu segundo álbum: Bewitched é feito de vários temas originais, quase todos de sua autoria, em colaboração com Spencer Stewart, contendo também algumas revisitações. O destaque vai para o lendário Misty, de Erroll Garner, com versos de Johnny Burke — aqui numa versão acústica, gravada em casa.

sexta-feira, novembro 17, 2023

Sylvester Stallone
— o resgate de Rocky Balboa

Stallone: há mais vidas para lá de Rocky...

Num documentário lançado pela Netflix, Sly, revisitamos a carreira de Sylvester Stallone, desde os tempos do anonimato até ao sucesso planetário de Rocky (1976): uma memória que tem a sedução e os limites de um discurso “terapêutico” — este texto foi publicaco no Diário de Notícias (9 de novembro).

O adjectivo inglês “sly” designa uma pessoa astuta, porventura maliciosa, mas também alguém que só o é através de um desafio aos seus próprios limites profissionais e emocionais. No cinema de Hollywood, Sly tornou-se o cognome de Sylvester Stallone e, agora, é o título de um documentário disponível na Netflix sobre as convulsões de uma carreira realmente alheia às regras tradicionais do “star system”.
Entre as entidades produtoras está a empresa que o próprio Stallone fundou em 2018, Balboa Productions, começando a sua actividade com Rambo - A Última Batalha (2019), de Adrian Grunberg; na sua carteira de títulos encontramos, por exemplo, Samaritan (2022), filme também por ele protagonizado, sob a direcção de Julius Avery, apostando na possibilidade de lançar um novo registo no território ficcional dos super-heróis. Não há nisso nada de invulgar, muito menos suspeito, mas ajudará a compreender um pouco melhor o facto de Sly ser, no essencial, um discurso na primeira pessoa, dir-se-ia “auto-terapêutico”: revisitamos as atribulações de alguém que, graças ao filme Rocky (1976), por ele escrito e interpretado, ascendeu da condição de actor à deriva, sempre com imensas dificuldades para encontrar trabalho, ao estatuto de estrela planetária.
Realizado por Thom Zimny, colaborador regular de Bruce Springsteen (foi ele que dirigiu Springsteen on Broadway, também disponível na Netflix), Sly cedo define o seu programa narrativo e, nessa medida, os limites da sua “introspecção” algo repetitiva. Tudo acontece a partir de duas premissas explicitadas logo nas primeiras cenas: primeiro, uma juventude vivida no interior de uma família desconjuntada e, em particular, marcada pela violência repressiva do pai; depois, o inesperado impacto de Rocky (três Oscars, incluindo o de melhor filme de 1976) e os prós e contras de uma carreira marcada pelo dilema de renovar a imagem desse filme ou arriscar em projectos claramente diferentes.
Dir-se-ia que estamos perante um processo de resgate da personagem do pugilista Rocky Balboa, devolvendo-o a um contexto em que podemos perceber melhor o efeito singular (simbólico & comercial) da sua condição de herói solitário marcado por feridas emocionais em tudo e por tudo idênticas à do seu criador. O filme de 1976 é tratado com a merecida atenção que não é dada às suas sequelas (francamente menores), o mesmo acontecendo, aliás, com a série de aventuras de Rambo, em que todo o destaque vai para o primeiro título, First Blood/A Fúria do Herói (1982), de Ted Kotcheff (muito mais interessante do que tudo o que se seguiu).
A outra “franchise” a que está ligado o nome de Stallone, The Expendables/Os Mercenários, surge prudentemente (e justificadamente) reduzida a uma nota de rodapé. No sector dos depoimentos encontramos, entre outros, o irmão Frank Stallone, Talia Shire (intérprete da mulher de Rocky) e Quentin Tarantino. Graças a Tarantino, é também evocado aquele que é, por certo, o melhor filme em que Stallone já participou apenas como actor: Cop Land-Zona Exclusiva (1997), de James Mangold.

História & histórias
no Porto/Post/Doc

Mishima (1985): o universo de Yukio Mishima
revisitado por Paul Schrader.

Para lá das secções competitivas, o Porto/Post/Doc é um festival que propõe interessantes ziguezagues entre passado e presente, de algum modo questionando hipóteses de futuro: destaque para “Onde Andam os Nossos Contadores de Histórias?” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 novembro).

Na vasta oferta da 10ª edição do Porto/Post/Doc (17-25 nov.), vale a pena fazer um destaque para a secção “Onde Andam os Nossos Contadores de Histórias?”. Desde logo pela inclusão de alguns títulos cuja actualidade, temática e simbólica, não será preciso sublinhar — penso, por exemplo, em Werner Herzog – Radical Dreamer (2022), de Thomas Von Steinaecker, dedicado a um cineasta cujos delírios ficcionais (será inevitável recordar a referência de Fitzcarraldo, datado de 1982) nunca foram estranhos a uma singular pulsão documental.
Em qualquer caso, o destaque inclui um sublinhado para o próprio título da secção. Na verdade, hoje em dia observamos muitas formas de jornalismo, directa ou indirectamente ligadas a normas de raiz televisiva, que se definem apenas por esse programa de... “contar histórias”. Na prática, isso tende a favorecer a definição do próprio jornalista, não como um apaixonado pela austeridade dos factos, antes uma espécie de “trovador do real” que se satisfaz com a redução dos seres e dos eventos a componentes mais ou menos pitorescas.
Ora, aquilo que o Porto/Post/Doc sugere são oito filmes (um por dia, como se refere no programa) que, recuando a passados mais ou menos próximos, nos ajudam a (re)descobrir a pluralidade e o desejo visceral de “contar histórias”, não para satisfazer qualquer nostalgia decorativa, antes para nos (re)colocar perante a complexidade do real — enfim, daquilo a que, num determinado contexto, chamamos real.
Lembremos o notável Mishima (1985), de Paul Schrader, retrato do escritor japonês Yukio Mishima (1925-1970) que, se dúvidas houvesse, nos garante que não há forma de contar histórias que possa ser alheia às convulsões da política — entendendo-se a política no seu sentido primordial de habitação e relação com os outros no interior de um território social a que queremos chamar colectivo.
Lembremos também uma preciosidade como Candy Mountain (1987), de Rudy Wurlitzer e Robert Frank, que talvez se possa descrever como uma extensão cinematográfica das fotografias de Frank (1924-2019) e, em particular, da ilustração/decomposição de um imaginário americano iniciada com esse livro emblemático que é Os Americanos (cuja primeira, datada de 1958, surgiu em França).
O ciclo arranca com um filme (Batalha Centro de Cinema, dia 19, 16h30) que talvez se possa classificar como um guia exemplar para os temas, contrastes e contradições que podem envolver os nossos “contadores de histórias”. Chama-se Nam June Paik: Moon Is the Oldest TV [trailer aqui em baixo] e foi revelado no passado mês de janeiro no Festival de Sundance. Realizado por Amanda Kim, nele se propõe um retrato do universo de Nam June Paik (1932-2006), tradicionalmente, e justificamente, chamado o “pai da videoart” — para vermos como, para o melhor e, não poucas vezes, para o pior, passámos a viver a nossa história rodeados de ecrãs... e apenas através de ecrãs.

quinta-feira, novembro 16, 2023

SOUND + VISION Magazine — adiado

Questões de natureza particular impedem-nos de realizar a sessão prevista para o dia 18, na FNAC — com as nossas desculpas, brevemente daremos notícias sobre o próximo SOUND + VISION Magazine.

sexta-feira, novembro 10, 2023

SOUND + VISION Magazine
— Beatles, FNAC Chiado [dia 18]

Alterámos os planos para a nossa próxima sessão na FNAC. De facto, tendo em conta a actualidade das imagens e dos sons, decidimos mudar o tema inicialmente anunciado (que, naturalmente, fica sempre em agenda...).
Assim, no dia 18, às 17h00, estaremos na FNAC Chiado para celebrarmos A Última Canção dos Beatles — será preciso escutar Now and Then... e um pouco mais.