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terça-feira, novembro 01, 2022

O saber não ocupa lugar

2001: Odisseia no Espaço (1968): nas entranhas do computador

A informação disponível na “cloud” transformou-nos em habitantes de um mundo realmente virtual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 outubro).

Num recente artigo da revista The Economist (“The hard edge of the cloud”, 8 outubro), encontramos uma curiosa série de dados sobre a evolução dos sistemas de conservação da informação computorizada. A célebre “cloud” onde, mediante um preço, qualquer um de nós pode guardar os seus ficheiros — das listas do Spotify aos “milhões de selfies perversas” — tem crescido de modo exponencial, a ponto de ter gerado um mercado global de servidores & chips de computador avaliado em 600 mil milhões de dólares.
Para lá da consolidação da nossa biblioteca virtual, com grande impacto no comportamento de cada um de nós face à informação disponível, procurada ou coligida, a “nuvem” de informação gerou uma gigantesca, verdadeiramente global, rede de negócios. Exemplo revelador: grandes empresas envolvidas na “cloud” (a revista cita os exemplos de Amazon e Google) recorrem a design de origem japonesa, depois tratado por uma firma especializada sediada em Taiwan…
Há uma maneira mais básica de dizer isto: a nossa relação com a informação computorizada foi deslizando para um espaço realmente virtual — e dizer “realmente” a propósito de algo a que damos o nome de “virtual” é uma contradição reveladora do misto de estranheza e transparência da nossa actual relação com o império da tecnologia.
O cinema pode ajudar-nos a lidar com o labirinto de questões e perplexidades que tudo isso arrasta. É verdade que, nos dias que correm, há toda uma ideologia de marketing, fortemente dependente de líderes de mercado como a Marvel ou a DC Comics, que promove uma visão dos filmes enredada em escapismo sem inteligência. Mas não é menos verdade que a história do grande cinema popular (repito: popular) está disponível para compreendermos que, no mínimo, não necessitamos de ficar sujeitos a tal futilidade de pensamento.
Penso na referência emblemática de 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, um dos muitos clássicos que, havendo um diferente sentido de risco e alguma imaginação comercial, o mercado poderia relançar e rentabilizar regularmente nos grandes ecrãs das salas IMAX. A relação dos astronautas da nave Discovery One, a caminho de Júpiter, com o seu computador, o célebre HAL 9000, condensa aquilo que, com alguma ironia, podemos chamar a tradição fundadora da informática. Dito de outro modo: a informação que HAL fornece é algo que ainda está ali, disponível, por assim dizer no corpo do computador — o conflito com a máquina nasce do facto de o próprio HAL se recusar a partilhar alguma dessa informação com os humanos que com ele viajam.
Aplicada ao computador, a palavra “corpo” poderá parecer estranha neste contexto, mas na dramaturgia concebida por Kubrick adquire toda a lógica e motivação. Assim, numa das sequências mais lendárias de 2001, David (o astronauta interpretado por Keir Dullea) entra, literalmente, no sistema de ficheiros de HAL para, um a um, os desligar. Nos incríveis grandes planos do rosto de David vemos, no seu capacete, o reflexo desses ficheiros: são mensageiros de um poder que já não se enraiza no humanismo clássico.
Aquilo que, em 2001, tende para a tragédia surgirá, uns anos mais tarde, em Jogos de Guerra (1983), uma realização de John Badham em forma de “thriller” politico-militar, não deixando de ser uma vibrante aventura à moda antiga. Aí encontramos outro David (Matthew Broderick no papel que o transformou numa estrela juvenil), estudante de liceu que, através de peripécias mais ou menos rocambolescas, acaba por aceder ao sistema de defesa dos EUA (NORAD): julgando que está a divertir-se com um “jogo de guerra”, a sua acção ameaça desencadear o apocalipse ou, como se diz no filme, a “guerra termonuclear global”…
Que aconteceu, então? Passámos da crueza física das máquinas para a sua dispersão num universo impessoal, sem centro, em que o consumidor individual já não tem nenhuma relação táctil com essa “nuvem” a que, afinal, pertence. No caso do primeiro David, o confronto dá-se nas entranhas do próprio computador. O segundo David vive a transfiguração do adágio popular segundo o qual o saber não ocupa lugar: no seu sentido original, o provérbio celebra a infinita acumulação de saber; agora, esse saber passou a “residir” numa paisagem etérea que, de facto, já não pertence a nenhum lugar palpável — literalmente, não ocupa lugar.
Pormenor simbolicamente interessante: ambas as personagens surgem com o mesmo nome próprio: David. Um e outro estão, de facto, em luta com um “Golias” que os transcende. Os respectivos apelidos são ainda mais reveladores. O astronauta de Kubrick chama-se David Bowman, à letra, “homem do arco”: é um arqueiro, alguém que ainda transporta a memória medieval de combates ancestrais. O estudante filmado por Badham é David Lightman, “homem da luz”, como se a intensidade do saber que lhe é dado contemplar o pudesse cegar.

sexta-feira, julho 22, 2022

Duas ou Três Coisas
— Antena 1, dia 22 (23h14)

[ Duas ou Três Coisas ]

Do "renascimento" de Kate Bush aos livros que andamos a ler...
... e escutando, por exemplo, Ryan Adams e William Orbit.
Estamos na Antena 1, às sextas-feiras, como é habitual: a edição nº 20 de Duas ou Três Coisas começa às 23h14, logo após as notícias à hora certa — depois, fica disponível em RTP Play.

segunda-feira, janeiro 04, 2021

Mulher Maravilha repete rotinas
de super-heróis masculinos

Eis um acontecimento que ficará para a história cinematográfica do ano de 2020: apesar de todos os condicionalismos impostos pela pandemia, Mulher Maravilha 1984 acabou por estrear-se nas salas escuras. Pena é que, em termos cinematográficos, os resultados sejam tão rotineiros — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 dezembro). 

Sequelas? Podemos defini-las como um cruzamento perverso do cinema contemporâneo, sobretudo da grande máquina industrial de Hollywood: a estratégia de marketing tenta associar-se à reinvenção artística para continuar a alimentar o mercado global. Simples, não é? Infelizmente, como se prova pelo novo Mulher Maravilha 1984, de uma simplicidade cada vez mais rotineira e monótona.
E, no entanto, há que dizer que Mulher Maravilha 1984 vai ficar na história deste atribulado ano de 2020 como uma referência incontornável. Entre os muitos e dramáticos problemas enfrentados pelos mercados cinematográficos — com especificidades nacionais que não podem ser dissolvidas num qualquer resumo “global” —, a ausência de “blockbusters” americanos fica como um dado fulcral. Desde logo, por uma perversa razão que, escusado será lembrá-lo, não decorre do facto de cada filme ser “melhor” ou “pior”: acontece que muitos sistemas de distribuição e exibição (nacionais, precisamente) foram em grande parte construídos de forma unívoca, comercialmente pouco ágil, dependendo por completo desse tipo de produtos. 
Mulher Maravilha 1984
fica como a excepção que confirma a regra, cerca de quatro meses passados sobre o lançamento de Tenet, de Christopher Nolan (esse, sim, um belo exercício cinematográfico). Assim, os estúdios Warner não quiseram desistir de colocar o filme nas salas escuras — em particular na grandiosidade física dos ecrãs IMAX —, fazendo valer um princípio, também simples, mas essencial, segundo o qual a verdade espectacular e emocional de um espectáculo cinematográfico não pode prescindir das singularidades dessas clássicas salas escuras. 
É pena que os resultados reflictam um aproveitamento tão banal dos imensos recursos postos à disposição de uma produção deste género. A lógica de sequela enraíza-se, aliás, num entendimento estritamente financeiro das potencialidades de tais recursos. Dito de outro modo: Mulher Maravilha 1984 nasce do sucesso de Mulher Maravilha (2017), repetindo a colaboração entre a realizadora Patty Jenkins e a actriz Gal Gadot. 
É bem verdade que o filme arranca com uma sequência sugestiva, ainda que repetindo o modelo do filme anterior. Nela reencontramos Diana Prince, futura Mulher Maravilha, ainda criança, apostada em concorrer com as proezas das outras mulheres do seu reino de amazonas. São momentos visualmente curiosos, em particular pelo modo como conciliam as paisagens naturais com os efeitos digitais. São também pistas para uma possível abordagem lendária de uma figura pertencente a um universo divino, em tudo e por tudo ligada a matrizes mitológicas
[ DC Comics ]
Infelizmente, o filme rapidamente se satisfaz com a triste imitação das produções mais medíocres que têm sido feitas em torno de figuras masculinas dotadas de super-poderes. A própria colocação da acção no ano de 1984 (tempos de Guerra Fria, como lembra alguma promoção…) acaba por ser um dado irrevelavante, a não ser para alguma utilização pitoresca do guarda-roupa. E não parece ser grande proeza feminina (ainda menos feminista) fabricar espectáculos com mulheres que se vão esgotando na cópia do pior que se vai fazendo com homens. 
As consequências de tudo isto são, também elas, “tradicionais”. Por um lado, assistimos a uma saturação de efeitos digitais mais ou menos estereotipados e previsíveis, dir-se-ia reciclados de um filme para o outro (o que, provavelmente, acontece…). Por outro lado, a concepção das personagens é de tal modo esquemática que chega a ser penoso assistir aos desastres de interpretação que isso provoca; nesta perspectiva, a composição de Pedro Pascal como Maxwell Lord (o vilão que quer tomar conta do mundo através de uma “máquina” de satisfação de desejos…) tem qualquer coisa de patético, de tal modo o actor se entrega a um delírio histriónico de equivocado amador.
Há em tudo isto um claro desentendimento do que sejam as maravilhas possíveis do cinema. Por alguma razão, há alguns anos, Steven Spielberg chamava a atenção para as ameaças de “implosão” que o cinema americano estava (e está) a enfrentar. Não por causa do gosto da aventura ou dos prazeres do espectáculo — será necessário lembrar que Spielberg pertence, de alma e coração, a esse mesmo cinema? Acontece que face a uma produção de 200 milhões de dólares como este Mulher Maravilha 1984 fica a pergunta mais básica: para quê?

domingo, fevereiro 09, 2020

Harley Quinn: a rotina de Hollywood

Hollywood recupera mais uma personagem do mundo da BD: Harley Quinn, ex-namorada do Joker. Margot Robbie investiu muito no projecto, na dupla qualidade de actriz e produtora, mas os resultados são de uma pobreza rotineira — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Fevereiro), com o título 'As aventuras (pouco) fantásticas de Margot Robbie'.

Nos últimos anos, no sistema de produção de Hollywood, os movimentos pela igualdade e representatividade de todas as diferenças (raça, género, etc.) têm desempenhado um importante papel, desde logo no plano profissional e financeiro, mas também na dinâmica ideológica e simbólica da própria indústria. Mesmo sem secundarizar tais avanços, está por esclarecer uma grosseira contradição. A saber: que levará os criadores (mulheres e homens) a pensar que a imitação, em tom feminino, dos maus filmes com heróis masculinos é uma maneira interessante e inteligente de defender o lugar das mulheres na própria indústria?
Birds of Prey (à letra: “aves de rapina”), realizado por Cathy Yan a partir da banda desenhada homónima da DC Comics, aí está como exemplo sintomático de tal contradição, nesse aspecto reforçando o equívoco sobre o qual se construía Oceans’8 (2018), dirigido por Gary Ross, medíocre versão feminina (?) da série iniciada com Ocean’s 11 - Façam as Vossas Apostas (2001), de Steven Soderbergh.
A personagem central, de seu nome Harley Quinn, apresenta-se como um curioso cruzamento de afirmação identitária, paródia burlesca e gosto de espectáculo. Isso mesmo está sublinhado no subtítulo, “A Fantabulástica Emancipação de uma Harley Quinn”, aliás traduzindo tão literalmente quanto possível o original “The Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn” (ainda assim, a opção mais correcta teria sido “fantabulosa”, combinando os adjectivos “fantástica” e “fabulosa”). Sem esquecer, claro, que o nome Harley Quinn envolve uma brincadeira fonética com Harlequin (Arlequim), personagem emblemática da tradição, de raiz italiana, da Commedia dell’arte.
Que o projecto foi assumido como um especial desafio conceptual e artístico, prova-o o facto de o nome de Margot Robbie, intérprete de Harley Quinn, surgir também creditado como produtora do filme. O certo é que nem mesmo a versatilidade de tão talentosa actriz (recordemos apenas os exemplos recentes de Era uma Vez em Hollywood e Bombshell) basta para compensar as rotinas de produção que acabam por tomar conta do filme.
Há, de facto, qualquer coisa de demissão artística no modo como filmes como Birds of Prey se vão confundindo com a ilustração de um “caderno de encargos” que, cena sim, cena não, obriga a monótonas coreografias (combates físicos, perseguições de automóveis…) que só evoluíram num aspecto: o tratamento dos sons é cada vez mais esquemático e agressivo, colocando o espectador na posição de quem já não está a assistir a um espectáculo, mas apenas a defender-se dos disparos sonoros a que o sujeitam.
Ficam duas curiosidades. Em primeiro lugar, o facto de Harley Quinn ser a ex-namorada do Joker, personagem também pertencente a este universo da BD — seja como for, não há qualquer cruzamento, nem mesmo meramente factual, com o filme protagonizado por Joaquin Phoenix, até porque a pré-produção de Birds of Prey começou ainda antes da rodagem de Joker. Depois, o argumento tenta recuperar um dispositivo narrativo — a sistemática voz off da heroína — que pode fazer lembrar a tradição do filme “noir” das décadas de 30/40… Pode, de facto, mas em Hollywood tudo era bem diferente.

terça-feira, junho 11, 2019

Os mutantes mudam muito pouco

A saga dos super-heróis vai-se instalando na temporada Primavera/Verão do nosso mercado cinematográfico. X-Men: Fénix Negra prolonga uma BD da Marvel, encenando as aventuras de um grupo de mutantes envolvidos na meritória tarefa de sempre: salvar a humanidade do apocalipse — texto publicado no Diário de Notícias (6 Junho).

A actual ordem das coisas assim o impõe: quando a Primavera começa a vestir-se com os adereços do Verão, os super-heróis chegam às salas de cinema. Não é uma tradição narrativa, muito menos o resultado de qualquer política cultural. Apenas a recriação de um modelo de mercado, de tal modo poderoso e global que nas últimas décadas nos levou a deixar de pensar (pelo menos pensar...) em modelos alternativos.
Dark Phoenix
Dito de outro modo: aí está o 12º título da “franchise” produzida em torno do grupo de super-heróis que responde pelo nome de X-Men. Chama-se X-Men: Fénix Negra e pode resumir-se numa sinopse válida para quase todos os filmes do género que surgiram nos últimos anos. A saber: ameaçado por uma entidade extra-terrestre, o mundo está à beira do apocalipse e os nossos heróis, felizmente, lutam por garantir a sobrevivência da raça humana...
Para o melhor ou para o pior, há que reconhecer que este tipo de filmes virou do avesso essa “fábrica de sonhos” que foi Hollywood. A grande aventura já não se faz com heróis em que ousadia rima com ironia, à maneira do saudoso Indiana Jones, muito menos através de figuras arrancadas às páginas da história ou do romance, da dimensão épica de Lawrence da Arábia ou Doutor Jivago (heróis de duas super-produções da década de 1960, ambas assinadas por David Lean).
O poder narrativo passou, quase por inteiro, para as companhias que transformaram as suas personagens da banda desenhada em rentáveis “franchises” cinematográficas. Assim, X-Men: Fénix Negra é mais um título com chancela Marvel, neste caso produzido pela 20th Century Fox, estúdio que, em 1994, comprou os direitos de adaptação da BD de Stan Lee e Jack Kirby (lançada em Setembro de 1963), tendo estreado o primeiro filme da série, intitulado apenas X-Men, no ano 2000.
Entretanto, na prática, o filme agora em estreia pertence já à Walt Disney Company (depois da aquisição da Fox pela Disney, consumada em Março deste ano). Será, em princípio, o derradeiro da série, estando prevista uma derivação (“spin-off”) para 2020, com o título The New Mutants.
Mesmo quando os resultados não superam a rotina industrial, um aspecto curioso na evolução destas sagas é o facto de nelas se explorarem modelos de heroísmo que estão muito para além das mais clássicas personagens solitárias, cada uma delas transportando os seus traumas e utopias. Nesta perspectiva, o novo filme aposta numa aventura colectiva algo semelhante ao recente Vingadores: Endgame (2019), outro produto Marvel/Disney.
O que lança a história de X-Men: Fénix Negra é mesmo a possibilidade de uma súbita desagregação do grupo. Lá encontramos as emblemáticas figuras do pacifista Professor X (James McAvoy), o poderoso Magneto (Michael Fassbender) ou essa mutante com permanente capacidade de transfiguração física que é Mystique (Jennifer Lawrence)... Aliás, são todos mutantes, tal como Jean Grey, dotada de poderes telepáticos e telecinéticos — ela é, para todos os efeitos, a personagem central, sendo a respectiva intérprete, a inglesa Sophie Turner, um dos trunfos promocionais do filme, depois da sua consagração internacional como Sansa Stark na série televisiva A Guerra dos Tronos.
Sophie Turner
Quando Jean Grey é tocada por uma misteriosa força cósmica, os seus poderes são ampliados de forma dantesca, para além da sua própria vontade... assim nascendo a Fénix Negra. Mais do que isso: o seu carácter maligno apresenta-se perversamente ampliado pela figura de Vuk (Jessica Chastain), uma “alien” proveniente de uma civilização apostada em ajustar contas com os humanos e, mais do que isso, capaz de manipular o comportamento de Jean, virando-a contra os outros elementos dos X-Men. Para esses elementos, o drama instalado decorre da ameaça que ela passou a representar: salvar Jean significará perder o mundo?
Claro que um objecto como X-Men: Fénix Negra é gerado por um sofisticado sistema de produção. O realizador estreante, Simon Kinberg (inglês, 45 anos), é um profissional especializado neste domínios, com várias contribuições para a série “X-Men”, quer como argumentista, quer como produtor. É mesmo detentor de uma nomeação para melhor filme do ano, enquanto coprodutor de Perdido em Marte (2015), de Ridley Scott.
Mas neste universo de mutantes, o risco de alguma mudança não é moeda corrente... Francamente desconcertante é o esbanjamento dos elementos dramáticos que, apesar de tudo, o filme tenta colocar em jogo. Assim, o capítulo da infância de Jean, com o trauma da morte dos pais e o seu acolhimento pela “escola de heróis” dirigida por Charles Xavier, o Professor X, parece lançar X-Men: Fénix Negra no sentido, pelo menos, de alguma vibração emocional...
O certo é que vai prevalecendo a sensação de que objectos como este resultam, em última instância, das rotinas dos departamentos de efeitos especiais. De tal modo que, a partir de certo momento, parece que aos actores apenas foi pedido que façam uma pose espantada (?) perante o “barulho das luzes” em que surgem digitalmente envolvidos... Quando entre esses actores está gente tão talentosa como Michael Fassbender ou Jessica Chastain, é caso para perguntar se alguém reaparou no desperdício humano e artístico que tudo isto envolve.

quinta-feira, abril 25, 2019

O "espírito" de Abril
(ou a estreia dos "Vingadores")

[ disney.pt ]
1. Protagonistas da cena política e mensageiros do espaço mediático falam-nos do "espírito" de Abril. E com boas razões para o fazer — foi há 45 anos, a 25 de Abril de 1974, que o Movimento das Forças Armadas pôs fim a uma ditadura que estava a enviar os mais jovens (da minha geração) para a guerra.

2. Mas importa perceber em que contexto tal acontece. Os discursos daqueles protagonistas e mensageiros mantêm-se confinados a um voluntarismo de pueril utopismo, não revelando a mais simples disponibilidade para... olhar à sua volta.

3. Na verdade, mediaticamente e nos circuitos virtuais, a data surge polarizada em torno da estreia do filme Vingadores: Endgame, confirmando que a circulação de muitos valores dominantes no espaço cultural passou a ser gerida por entidades como a Marvel Pictures.

4. A nossa cultura democrática pode, e deve, exigir-nos que pensemos tal conjuntura a partir de toda uma complexa e, por vezes, perturbante dinâmica passado/presente (que, como é óbvio, nada tem a ver com a demonização de entidades como a Marvel).

5. Trata-se apenas de começar por reconhecer que o "espírito" de Abril não existe como uma espécie de milagroso "abre-te Sésamo", capaz de nos converter em emissários e agentes de uma pureza histórica que, como num filme de super-heróis, nos oferece as flores de um futuro radioso. De facto, neste tempo em que o "social" passou a ser uma questão de redes, a poesia não está na rua — e não creio que seja matéria dominante nos ecrãs de cinema.

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA
1974

quarta-feira, abril 24, 2019

Stan Lee, Vingadores e... Billy Joel

STAN LEE
A promoção do novo filme da Marvel, Vingadores: Endgame, fundamenta-se numa estratégia de ocupação & saturação de todas as plataformas de comunicação — o objectivo é impor um efeito imediato, global e incontornável. Um dos exemplos mais curiosos dessa asfixia mediática que todos atinge (e que, de uma maneira ou de outra, todos confirmamos) surgiu em forma de teledisco: eis o clássico We Didn't Start the Fire, de Billy Joel, reinterpretado pelo elenco do filme (com uma letra que transfigura as memórias pessoais de Billy Joel em antologia de episódios da série Vingadores); em baixo, o original, lançado em 1989.



sábado, fevereiro 17, 2018

Os clichés da Marvel

* BLACK PANTHER, de Ryan Coogler
[ DN, 15-02-2018 ]

Eis um filme que tem sido celebrado nos EUA como uma aventura de super-heróis “diferente”. Porquê? Porque no seu centro está uma figura de pele negra: o rei de Wakanda (país africano fictício), interpretado por Chadwick Boseman. É uma leitura contaminada por todo um contexto de afirmação da identidade afro-americana, cujo dramatismo tem sido agravado por posições, no mínimo, ambíguas do presidente Donald Trump.
Resta saber se a contínua repetição de clichés da produção dos estúdios Marvel pode, ou deve, ser encarada em função das características raciais dos seus protagonistas. É verdade que o filme tenta, pelo menos, alguma originalidade na concepção cenográfica de Wakanda, mas cedo se limita a prolongar os lugares-comuns de um estilo que se satisfaz com a cópia da agitação visual de um qualquer jogo de video.

sábado, julho 29, 2017

Luc Besson: Europa & América

Dane DeHaan, Luc Besson e Cara Delevingne
O francês Luc Besson volta a apostar na possibilidade de desafiar os americanos no seu próprio terreno — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Junho) com o título 'Blockbuster à moda de Hollywood assinado por um francês'.

Será que a adaptação das aventuras de Valérian e Laureline é uma boa aposta para competir com os “blockbusters” americanos? A pergunta justifica-se, uma vez que estamos perante um projecto com o mesmo tipo de recursos técnicos e ambição espectacular das grandes “máquinas” de Hollywood, mas de raiz europeia, mais especificamente, francesa. Dito de outro modo: inspirado na banda desenhada de Pierre Christin e Jean-Claude Mézières, Valérian e a Cidade dos Mil Planetas é a mais recente proeza do produtor/realizador Luc Besson, neste caso acumulando as tarefas de argumentista.
Nas contas do mercado americano, decisivas para um objecto desta dimensão, os primeiros números indicam que Besson dificilmente conseguirá o sucesso de alguns dos seus títulos anteriores, nomeadamente O Quinto Elemento (1997), também uma aventura de ficção científica, com Bruce Willis no papel central. Estreado no dia 21, nos EUA, o filme ficou-se por um modesto quinto lugar no top de receitas, com um total de 17 milhões de dólares — é um valor muito fraco para um investimento de 200 milhões (cerca de 170 milhões de euros), segundo a revista Forbes a “maior produção de sempre do cinema europeu”. A comparação com a performance de Dunkirk, lançado no mesmo dia, é elucidativa: o épico de guerra de Christopher Nolan (já em exibição entre nós) custou 150 milhões de dólares, tendo rendido uns sólidos 50 milhões no fim de semana de abertura.

Sob o signo de Hollywood

Estamos, de facto, perante o tipo de aventura que, muito por acção do marketing de Hollywood, se transformou em componente “obrigatória” do Verão dos mercados internacionais. Aqui encontramos, algures no século XXVIII, um par mais ou menos romântico — interpretado por Dane DeHaan e Cara Delevingne, respectivamente Valérian e Laureline — numa missão inter-galáctica que os conduz ao planeta Alpha, um exemplo modelar de convivência de espécies provenientes de “mil planetas”.
A missão dos heróis não se esgota nos problemas de Alpha: face aos dramas que se deparam, está em jogo... “o futuro do universo” — assim mesmo, tal como está escrito na sinopse oficial, disponível no site do filme (valerianmovie.com). Dir-se-ia que os “blockbusters”, americanos ou europeus, gastam todas as energias, e também os seus monumentais orçamentos, na gestão dos complexos efeitos especiais, menosprezando o tratamento narrativo — o universo vai ser destruído e... chega.
Paradoxalmente ou não, o principal trunfo de Valérian e a Cidade dos Mil Planetas é a sua concepção visual. As imagens geradas por computador (CGI), permitem a criação de mundos alternativos, habitados por personagens caracterizadas pelas mais inesperadas variações sobre os parâmetros e formas do corpo humano.

A dança de Rihanna

As sequências iniciais são, sem dúvida, as mais sugestivas. As paisagens paradisíacas do planeta ameaçado pelos exércitos do Mal nascem de derivações “poéticas” sobre elementos da nossa natureza (areia, oceano, plantas, etc.), num jogo de formas e cores que, certamente não por acaso, faz lembrar os cenários, igualmente virtuais, utilizados por Besson em Love Profusion (2003), o belíssimo teledisco que dirigiu para a canção de Madonna. Os habitantes desse mundo ameaçado, pele cor de mármore e olhos muito brilhantes, surgem como uma sugestiva variação sobre os seres azuis, longilíneos, do filme Avatar (2009), de James Cameron.
Dir-se-ia que este obsessivo investimento no “look”, aliás sustentado por um sofisticado trabalho de direcção fotográfica do veterano Thierry Arbogast, colaborador habitual de Besson, vai secundarizado o labor específico dos actores. Dane DeHaan nunca consegue, nem mesmo através da ironia, emprestar algum fulgor ao seu Valérian, sendo sempre superado pela mais competente Cara Delevingne.
Em qualquer caso, Besson parece ter acreditado que a escolha de alguns nomes de prestígio para papéis secundários poderia ser um trunfo comercial. Clive Owen e Ethan Hawke fazem o que podem, o primeiro na figura de um militar, o segundo numa composição mais ou menos burlesca como patrão de um bizarro cabaret. A presença mais insólita é Herbie Hancock, lenda viva do jazz, interpretando o Ministro da Defesa como quem está a ler o teleponto de um noticiário televisivo...
Sobra a convidada mais especial: Rihanna. A super-estrela pop surge, não para cantar, antes para interpretar uma bailarina de nome Bubble, principal atracção dos espectáculos apresentados pela personagem de Hawke. O seu número de dança e transfiguração, dir-se-ia um teledisco puramente onírico, distingue-se por uma energia contagiante, a energia que, infelizmente, falta a quase todas as outras cenas do filme.

sexta-feira, julho 21, 2017

SOUND + VISION Magazine
— FNAC, hoje

DICK TRACY (1990)
Numa altura em que a banda desenhada continua a inspirar alguns "blockbusters" de Verão, propomos uma viagem em torno das muitas e fascinantes ligações dos filmes com as histórias aos quadradinhos — imagens, músicas e aventuras por redescobrir.

* SOUND + VISION Magazine
> FNAC Chiado — hoje, 21 de Julho (18h30)

segunda-feira, julho 17, 2017

SOUND + VISION Magazine
— FNAC, 21 Julho

Christopher Reeve
SUPERMAN (1978), de Richard Donner
Numa altura em que a banda desenhada continua a inspirar alguns "blockbusters" de Verão, propomos uma viagem em torno das muitas e fascinantes ligações dos filmes com as histórias aos quadradinhos — imagens, músicas e aventuras por redescobrir.

* SOUND + VISION Magazine
> FNAC Chiado — 21 de Julho (18h30)

terça-feira, julho 11, 2017

SOUND + VISION Magazine
— FNAC, 21 Julho

Jack Nicholson
BATMAN (1989), de Tim Burton
Numa altura em que a banda desenhada continua a inspirar alguns "blockbusters" de Verão, propomos uma viagem em torno das muitas e fascinantes ligações dos filmes com as histórias aos quadradinhos — imagens, músicas e aventuras por redescobrir.

* SOUND + VISION Magazine
> FNAC Chiado — 21 de Julho (18h30)

sábado, abril 01, 2017

Crónicas de um rapto


A longa história de um cativeiro de 111 dias, vivido por um técnico financeiro que prestava serviço numa ONG no Cáucaso em 1997 habita o tutano das mais de 400 páginas da mais recente obra do canadiano Guy Delisle (o mesmo de Pyongyang - Uma Viagem à Coreia do Norte). E, S'Enfuir - Récit d'un Otage, que se baseia nas memórias do relato do próprio protagonista, que o autor conheceu por volta do ano 2000, é uma crónica mais de silêncios, de esperas, de dúvidas e medos do que uma trama de ação ou até mesmo de alma geopolítica. Ser raptado é pior do que ser prisioneiro, diz-nos o protagonista nesta crónica desenhada de Delisle. Até porque o preso sabe porque ali está e até quando ali fica. Ao passo que ao raptado resta contar os dias, sem saber exatamente quando tudo irá terminar. Ou, até mesmo, como irá terminar.

S'Enfuir - Récit d'un Otage segue à risca essa ideia. E depois de nos mostrar o momento do rapto e transporte do sequestrado para lá da fronteira, coloca-nos nos vários quartos nos quais vai sendo encarcerado, de pulso agrilhoado com algemas a um aquecedor ou o que mais de sólido ali houver por perto, restando-nos acompanhar, com ele, o minimalismo do quotidiano que lhe é dado a conhecer numa sucessão monótona de dias em que, além das pausas para comer, ir à casa de banho, ocasionalmente com direito a lavar-se, pouco mais acontece.

Delisle é magnífico ao sugerir a lentidão da passagem do tempo. Numa das sequências a evolução da luz solar nas paredes do quarto é tudo o que vemos. Nós e o raptado. Vivemos depois a sua contagem dos dias, os pensamentos, os medos. E, a dada altura, as histórias de batalhas das campanhas de Napoleão que conta a si mesmo para passar o tempo. A sopa, é rotina minimalista. Mas quando tem um sabor diferente, traz momentos de raro prazer. Os ruídos, nas salas contíguas ou no exterior são presença contínua, mas nunca clara... Os raptores ora o visitam mudos, ora gritam numa língua que o raptado não compreende. Ocasionalmente convidam-no para ver televisão. Por vezes há mais gente em casa... Mas ao fim do dia volta a deitar-se no seu mundo: um colchão, uma algema, o silêncio ao seu redor e um sonho apenas: sair dali. Que filme que daqui poderia nascer!

domingo, outubro 30, 2016

Cumberbatch / Strange

Por uma vez, com Doutor Estranho, a Marvel faz algo mais do que entregar a gestão de um filme ao departamento de efeitos especiais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título 'A inteligência das formas'.

Não será por acaso que o Mestre de Doutor Estranho é um Ancião que, afinal, é uma Anciã (ambiguidade que a língua inglesa contorna com a habitual frieza: “The Ancient One”). Que essa personagem seja interpretada pela especialista de todas as ambiguidades que é Tilda Swinton, eis o que sinaliza de modo exemplar a trajectória do herói: para além de qualquer diferença sexual, até mesmo para além de qualquer diferença humana, a sua saga tem a ver com aquilo de que não é possível sair. A saber: o Tempo (com maiúscula, se me permitem, já que convém mantermos alguma pompa face a tão extremo desafio).
Há outra maneira de dizer isto e é surpreendentemente simpática para o filme que entroniza o sempre brilhante Benedict Cumberbatch no país dos ordenados com, pelo menos, sete algarismos (nada conta, caro Sherlock): por uma vez, os estúdios Marvel esforçaram-se na fabricação de algo mais que imagens de telemóvel que já ninguém vê (e sons ensurdecedores cada vez mais difíceis de suportar), sabendo tirar partido das atribulações de um herói que vive numa paisagem que celebra, ponto por ponto, os poderes do próprio espectáculo do cinema. A saber: a ligação festiva de qualquer espaço com qualquer outro espaço e essa vertigem temporal que nos arrasta e liberta como um jogo de vídeo, desta vez deliciosamente filosófico.
Até mesmo o cliché do “filme de efeitos especiais” adquire, aqui, uma inesperada justeza. Mais do que um fogo de artifício mais ou menos vistoso, assistimos a um trabalho de manipulação das linhas e dos volumes que volta a celebrar o ecrã como uma janela para todos os mundos alternativos que nos atrevermos a imaginar. A inteligência das formas é sempre um valor mais que estimável. E é bom que, no seio da poderosa Marvel, ainda haja quem não o tenha esquecido.

segunda-feira, agosto 08, 2016

DC / Marvel — uma guerra de marcas

O Verão cinematográfico dos super-heróis é cada vez mais guerra de marcas e menos cinema — esta nota foi publicada no Diário de Notícias (4 Agosto).

Face a um filme como Esquadrão Suicida, de David Ayer, já não é só uma problema de repetição de fórmulas “espectaculares” e acumulação dos célebres efeitos especiais, cada vez mais repetitivos e redundantes (no campo sonoro, apenas apostados em reduzir o espectador a uma surdez de incauto zombie). De facto, este cinema de super-heróis chegou a um impasse total, coleccionando números mais ou menos circenses em que já nada importa a não ser a proliferação de luzes, ruídos e cenários em cacos — a velha oposição entre o Bem e o Mal, pedra de toque da nobre tradição deste tipo de histórias, foi mesmo reduzida a pó, prevalecendo um cinismo agressivo que já nem se preocupa em disfarçar o seu mercantilismo niilista.
Na prática, assistimos a uma reunião de personagens mais ou menos secundárias do universo DC Comics, obviamente empenhada em fazer frente ao domínio das produções da Marvel. É uma guerra de marcas e produtos que se trava, em última instância, sem qualquer consideração pelo carácter específico do cinema e das suas narrativas. Como diria o outro, muito barulho para nada...

sexta-feira, abril 15, 2016

Berlim, depois do muro


"Berlim é pobre, mas sexy"... É com estas palavras que mergulhamos na capital alemã, cidade reinventada duas décadas passadas sobre a queda do muro como destino desejado para jovens e artistas que ali procuram, como diz Mathilde Ramadier, “melhor qualidade de vida, a demanda de uma certa lentidão desprovida do stress urbano, a conquista de um mercado de trabalho mais moderno, mais prometedor, mais criativo”... Assim entramos em Berlin 2.0, uma novela gráfica que nos coloca perante a promessa de sonho que Berlim parece hoje exercer sobre tantos mas que, sob ecos da experiência pessoal da própria autora, revela também o outro lado da visão de um modelo ultraliberal que, como deixa aqui em jeito de alerta, tem outras faces a considerar.

Com formação como artista gráfica, tendo também estudado filosofia e psicologia, a francesa Mathilde Ramadier junta-se aqui ao desenhador espanhol Alberto Madrigal (que vive na capital alemã) para nos dar em Berlim 2.0 o retrato de uma experiência vivencial pessoal mas que, afinal, transporta também em si um retrato do lugar e dos demais que o habitam. Tal como o fez a autora, também a protagonista é uma francesa (de um país ali tão perto como ela mesma o diz) que parte para Berlim em busca de uma vida diferente em tempo de terminar uma tese. Tem uma bolsa que lhe permite uma base de rendimentos, mas precisa de trabalho. E é nesse processo que, depois da descoberta dos amigos, dos parques, da vida de cafés e discotecas, das festas em casa em que os sapatos ficam à entrada (um bom hábito higiénico nos países do Norte, sublinhe-se), tudo muito cool, tudo muito livre, que descobre o reverso da medalha em horários intensos a preços que nem sequer conhecem uma noção de ordenado mínimo. Porque, diz ela, não existe. E é no confronto com as realidades entre start ups muito jovens e modernas, mas mal pagas, e galerias de arte onde por detrás da criatividade das obras expostas moram outras artes, que a protagonista tece um retrato feito de contrastes.

Fica claro que se trata, logo à partida, de um percurso pessoal. Mas quando o espaço de vida da protagonista se cruza com o ambiente que lhe serve de palco, acabamos a sentir que, no fundo é da cidade no presente, que, afinal Berlim 2.0 acaba por falar. Não há por isso aqui muitas memórias antigas, alusões históricas, explicações enraizadas no passado. Tudo ali começou de novo há pouco tempo. Renasceu. É 2.0... O desenho de Madrigal, que é discreto, moderno e tranquilo, tem por isso cautela em não fazer dos cenários um desfile de postalinhos clássicos de Berlim. Bastam os recortes muito característicos dos prédios e um ocasional olhar conjunto (onde a torre junto a Alexanderplatz se destaca), para dizer que ali estamos. Bom, talvez a alusão ao Porn Film Festival, à omnipresença da música eletrónica ou o bairro de Friedrichshain sejam os postalinhos “modernos” da Berlim de hoje. Mas o livro chama-se mesmo Berlim 2.0. Faz sentido que tenha a sua iconografia atual devidamente assim mitificada.

Há um epílogo de duas páginas no qual se explicam algumas das realidades sociais e económicas da vida berlinense no presente e pelo qual a autora parece querer reforçar a relação desta narrativa com a realidade, inscrevendo este livro num espaço que respira também assim uma alma documentarista.

sexta-feira, março 25, 2016

DC Comics v. Hollywood

Batman v. Super-Homem: O Despertar da Justiça chegou às salas de todo o mundo — esta nota foi publicada no Diário de Notícias (24 Março), com o título 'Ben Affleck fechado no seu fato de borracha'.

Não simplifiquemos: desde os tempos heróicos de Georges Méliès (há mais de 100 anos!...) até ao presente, a história do cinema é indissociável dos célebres efeitos especiais (que, de facto, foram inventados pelo próprio Méliès). Acontece que, face a um apoteótico desastre como este Batman V. Superman, a inteligência criativa de Hollywood parece ter sido metodicamente destruída pelos técnicos e tecnocratas que confundem a complexidade de qualquer narrativa com a produção de explosões e ruídos ensurdecedores, dispensando qualquer atenção a personagens e situações.
Na prática, tentando rivalizar com a Marvel, a DC Comics consegue a proeza pouco invejável de destruir a riqueza simbólica e a energia espectacular de duas figuras, Batman e Super-Homem, que pertencem ao fascinante património da grande cultura popular made in USA. Além do mais, chega a ser penoso ver um actor tão dotado como Ben Affleck passar o tempo a tentar fazer algum gesto significativo no imobilismo cruel do seu fato de borracha...

quinta-feira, março 24, 2016

Batman v. Super-Homem (memórias)

1978
Muito antes do desastroso Batman v. Super-Homem: O Despertar da Jutiça, o cinema tinha verdadeiros projectos de espectáculo com os super-heróis da BD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Março), com o título 'Quando começou a idade moderna dos super-heróis...'.

Em 1978, quando surgiu o Superman, de Richard Donner, com Christopher Reeve, ficou célebre um desabafo feliz do realizador: “O meu Super-Homem voa e voa maravilhosamente — isso é algo que ninguém me pode tirar.”
Tal contentamento pareceria deslocado se ouvíssemos agora Zack Snyder a celebrar os dotes voadores dos heróis de Batman v. Super-Homem: O Despertar da Justiça. De facto, os modernos recursos digitais banalizaram tais proezas (e o novo filme é também um amargo sintoma dessa banalização). Acontece que, em finais da década de 70, conseguir filmar o lendário vigilante de “S” no peito, vogando por cima dos arranha-céus de Metropolis, para mais com a capa vermelha em controlada e elegante ondulação, estava longe de ser coisa óbvia, muito menos automática. Para a história, com o seu orçamento de 55 milhões de dólares, Superman ficou mesmo como o mais caro filme feito até então (um ano antes, por um preço de 11 milhões, o primeiro título de A Guerra das Estrelas quase parecia um produto de cinema independente). Em termos industriais e comerciais, assistia-se ao triunfo do modelo de “blockbusters”, lançado em 1975 com um filme admirável de Steven Spielberg, chamado Tubarão.
1989
Nas últimas décadas, para o melhor e para o pior (cada vez mais para o pior...), a história cinematográfica dos super-heróis tem sido também a história das muitas manipulações técnicas que se aplicaram — ou, por vezes, se inventaram — para pôr gente a voar, cidades a ruir, galáxias a explodir. Se um filme como Superman conquistou um estatuto de clássico, isso deve-se, não à ostentação dos efeitos especiais, mas sim ao modo como a sua utilização estava ao serviço da intensidade dramática de um universo de aventuras e da vocação espectacular de uma personagem.
O mesmo se poderá dizer, aliás, do outro filme que baliza a idade moderna dos super-heróis, neste caso centrando-se na figura, igualmente inconfundível, do Homem-Morcego: Batman (1989), de Tim Burton, repôs a duplicidade de Bruce Wayne no imaginário cinéfilo, ao mesmo tempo inaugurando uma “tendência” que vale a pena sublinhar. A saber: a importância de algumas figuras “secundárias” na definição simbólica ou, sobretudo, irónica do próprio herói. Assim, as gargalhadas vorazes do Joker são essenciais no espírito de “ópera bufa” que Burton explora, a ponto de se poder dizer que o trabalho de Jack Nicholson na sua composição é mais emblemático (e ficou mais conhecido) que a própria interpretação de Batman por Michael Keaton. Para a história mitológica destas atribulações, recorde-se que um dos nomes que chegou a ser pensado para assumir a personagem do Joker foi David Bowie.

quinta-feira, março 19, 2015

'Aâma', um mundo a descobrir
na BD de ficção científica


Escrevo hoje, na Máquina de Escrever, sobre a série de quatro volumes de BD 'Aâma', de Frederik Peeters, uma das mais recomendáveis abordagens recentes ao universo da ficção científica e uma das mais interessantes criações recentes da nona arte:

Um homem acorda no topo de uma elevação. Ao seu redor uma desolada paisagem desértica sob um céu amarelo é cenário que não compreende nem cabe na sua memória. Quem é? Onde está? O que ali faz?… Como o olhar, que ganha nitidez depois de um sono longo, ténues memórias ganham forma. A grande ajuda chega na forma de um relato escrito por ele mesmo e que lhe é entregue por um robot com aparência de gorila e que se chama Churchill. E ele? Ele é Verloc, um homem que vive às avessas nos tempos que correm. Numa sociedade hipermoderna, onde tudo está previsto e controlado, ele prefere a companhia de velhos livros – tem uma loja – e quando chegou a hora de ponderar ter um filho optou por não seguir os métodos de concepção em vigor e, mesmo com todos os eventuais riscos, fez questão de também aí recuperar hábitos de outros tempos (na verdade nasce uma filha e terá uma força central na história). Como um estranho numa terra estranha, Verloc será assim o herói improvável numa verdadeira odisseia algures na galáxia. E foi com ele que o autor de BD suíço Frederik Peeters viveu durante quatro anos, entre 2011 e finais de 2014 tendo editado os quatro volumes de Aâma, uma das mais espantosas obras da BD recente e uma das mais interessantes experiências de ficção científica da década que estamos a viver.

Podem ler aqui o texto completo.

terça-feira, fevereiro 24, 2015

A aventura de Kingsman (1/2)

Afinal, é possível aplicar as mais modernas tecnologias sem ser para deitar abaixo arranha-céus, cena sim, cena não: Kingsman: Serviços Secretos faz-nos acreditar nos mais genuínos poderes do espectáculo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Fevereiro), com o título 'Brincando com as convenções dos filmes de James Bond'.

Nos últimos anos não têm faltado aventuras cinematográficas mais ou menos inter-galácticas, sustentadas pelos mais delirantes efeitos especiais e, quase sempre, protagonizadas por super-heróis. Kingsman: Serviços Secretos pertence a essa tendência, mas com uma diferença essencial: os protagonistas não se apresentam dotados de força sobrenatural, nem se deslocam à velocidade do som — são membros de uma sofisticada sociedade secreta que actua à margem das organizações clássicas (CIA, MI5, etc.), combatendo os mais sinistros líderes do crime.
Colhendo inspiração na série de histórias de banda desenhada criada por Mark Millar e Dave Gibbons, o filme dirigido por Matthew Vaughn explora um imaginário da aventura cujas raízes estão na tradição cinematográfica de James Bond. Com outra diferença importante: as peripécias não estão centradas numa personagem única, tratada como “vedeta” da própria aventura, já que a dinâmica do colectivo Kingsman provém, justamente, do seu sentido de grupo e do militante respeito por uma exigente noção de honra.
O ponto de partida decorre, aliás, de um processo de reparação moral. Envolvido numa missão algures no Médio Oriente, Harry Hart (Colin Firth), agente secreto com o nome de código ‘Galahad’, perde um dos seus homens. Sentindo-se culpado pelo ocorrido, faz questão em ser ele a entregar uma medalha de mérito à viúva e ao seu filho, o pequeno Eggsy. Hart dá a Eggsy um cartão com um contacto telefónico, garantindo-lhe que pode a ele recorrer em qualquer situação de apuro, bastando para tal ligar e pronunciar uma frase codificada... Dezassete anos mais tarde, detido pela polícia, Eggsy (Taron Egerton) irá mesmo usar o número que Hart lhe deu — e Hart oferece-lhe a possibilidade de participar numa série de testes visando a sua integração no Kingsman.
Pode haver drama, mas tudo isto se passa num universo carregado de ironia. Desde logo, porque o mundo secreto de Kingsman existe numa espécie de limbo social em que é tão importante saber guardar os segredos das suas actividades como manter uma fachada de serena respeitabilidade: a entrada nas instalações — onde permanecem o metódico Arthur (Michael Caine), coordenando as operações, e Merlin (Mark Strong), treinando os jovens candidatos — faz-se mesmo através de uma muito tradicional alfaiataria inglesa. Depois, porque, afinal à boa maneira de James Bond, os agentes secretos da Kingsman não estão a resolver problemas banais, mas a... salvar o mundo!
O mau da fita dá pelo nome de Valentine (Samuel L. Jackson). Montou uma estratégia maquiavélica para contrariar o crescimento exponencial da população do planeta Terra: o plano passa por uma oferta global de cartões de telemóveis que permitirão a qualquer cidadão, em qualquer país, aceder gratuitamente a comunicações e Internet. Na prática, Valentine está apostado em dizimar milhões de pessoas, preservando apenas uma casta de ricos e poderosos.
Distribuído internacionalmente por um grande estúdio americano (20th Century Fox), Kingsman é, no essencial, um produto de fabricação britânica. E não apenas porque Matthew Vaughn é inglês. Acontece que o essencial da rodagem decorreu em Inglaterra, quer em estúdio, quer em cenários lendários como o Imperial College de Londres (cujas instalações serviram para criar alguns espaços do quartel-general da organização de espiões). Além do mais, de Colin Firth ao quase estreante Taron Egerton, o elenco é maioritariamente inglês, contando-se entre as excepções Samuel L. Jackson e Mark Hamill (o célebre Luke Skywalker de A Guerra das Estrelas).
No contexto anglo-saxónico deste tipo de produções, com um orçamento de 81 milhões de dólares, Kingsman emerge como um filme “barato”, sobretudo face a títulos com super-heróis que tendem a custar, no mínimo, o dobro desse valor. O seu primeiro fim de semana nas salas americanas foi comercialmente consistente (36 milhões), embora tenha ficado pelo segundo lugar do top, liderado pelo omnipresente As Cinquenta Sombras de Grey.