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domingo, outubro 15, 2023

Woody Allen
— escutando a música das palavras

Niels Schneider e Lou de Laâge:
Paris visto por Woody Allen

Woody Allen muda de cenário, mas prossegue a metódica observação das relações homens/mulheres: Golpe de Sorte é uma história de Paris, falada em francês, com a contribuição essencial de Vittorio Storaro na direcção fotográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 outubro).

O novíssimo filme escrito e dirigido por Woody Allen, Golpe de Sorte, tem sido apresentado através de referências e coordenadas da sua própria obra. O que, bem entendido, faz todo o sentido: as memórias da teia melodramática de Match Point (2005) ecoam, agora, nas atribulações do casal Fanny/Jean (Lou de Laâge/Melvil Poupaud) e no misto de sedução e traição que Alain (Niels Schneider), antigo colega de liceu de Fanny, vai introduzir na felicidade liofilizada do seu casamento.
Estamos, então, perante uma variante cinéfila do tradicional “triângulo amoroso”? A resposta é também afirmativa, embora carecendo de uma precisão essencial. Assim, há muito cinema contemporâneo, dos mais variados géneros, em que a consciência das heranças dos modelos clássicos gera “citações” mais ou menos maneiristas, no limite pouco disponíveis para a vida das próprias personagens. Não é esse o caminho de Woody Allen: ele assume-se como herdeiro de um património (melodramático, justamente) que o conduz a permanentes variações sobre as “coisas”, ora transparentes, ora obscuras, de que são feitas as relações entre homens e mulheres.
Woody Allen tem dito que o facto de ter rodado Golpe de Sorte em Paris (trata-se mesmo de uma produção sem participação americana) não envolve qualquer mudança significativa no seu trabalho. Em boa verdade, os estúdios de Hollywood foram deixando de o financiar, mas, para ele, Paris e Nova Iorque são mesmo cidades “muito parecidas”. Dito de outro modo: as matrizes narrativas não mudaram.
De tal modo que, com desarmante naturalidade (nada a ver com naturalismo), Golpe de Sorte consegue uma proeza tão cristalina que quase nos esquecemos dela. A saber: a musicalidade das palavras escritas por Woody Allen está presente em todo o seu esplendor, mesmo com diálogos totalmente em francês.
À maneira de muitos grandes artistas (não apenas do cinema), o seu labor segue uma lógica obsessiva em que, também com inevitáveis sugestões musicais, somos convocados para uma festiva exposição de temas e variações. E se, como bem sabemos, tal lógica não é estranha a ficções de dilaceradas emoções — pelo menos a partir do prodigioso e muito esquecido Interiors/Intimidade (1978) —, a sua evolução nunca menosprezou as nuances da comédia dramática, agora de novo na sua máxima depuração nesta história de desejos malignos, destinos fatais e acasos quase divinos.
Há em tudo isto uma assumida filiação na herança de Ingmar Bergman — lembremos esse filme “bergmaniano” por excelência, central na evolução da filmografia de Woody Allen, que é Maridos e Mulheres (1992). Com um factor que perverte os próprios fundamentos de tal herança: mesmo nas histórias mais urbanas de Woody Allen, deparamos com a nostalgia de uma pureza natural que, através das árvores e dos jardins, se imiscui nos automatismos da cidade. Neste caso, através da admirável direcção fotográfica de Vittorio Storaro, um trabalho de luz e cor que, se o destino fosse fiável, seria um Oscar antecipado.

quinta-feira, setembro 14, 2023

Woody Allen
— um americano apaixonado pela Europa

Vittorio Storaro e Woody Allen
durante a rodagem do novíssimo Golpe de Sorte

À beira de celebrar 88 anos de idade, Woody Allen regressa a Portugal como músico de jazz, poucos dias depois da revelação, em Veneza, do seu 50º filme como realizador. A sua filmografia revela-nos um criador sempre ligado ao imaginário americano e, ao mesmo tempo, fortemente marcado pelo cinema europeu — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 setembro).

Nasceu a 30 de novembro de 1935, em Nova Iorque. A poucas semanas de celebrar o seu 88º aniversário, Woody Allen está de volta a Portugal, não exactamente como cineasta, mas músico: com dois concertos na agenda, ele vem celebrar o jazz e, em particular, os sons da tradição de Nova Orleães tão frequentemente ouvidos nas bandas sonoras do seus filmes.
Ligado a um imaginário americano em que a iconografia de Nova Iorque ocupa um lugar central, ele é também um autor cuja cinefilia mantém laços fortes com a Europa, com o cinema europeu e alguns dos seus autores mais emblemáticos. Ironicamente, nos últimos tempos, pode dizer-se que Woody Allen tem trabalhado quase como um realizador “europeu”; aliás, a par da sua actual digressão, esteve há poucos dias no Festival de Veneza para apresentar, extra-concurso, a sua 50ª longa-metragem, Coup de Chance, o seu primeiro filme falado em francês.
No plano profissional, o seu trabalho há muito deixou de ser uma prioridade dos grandes estúdios de Hollywood: títulos como Annie Hall, Intimidade, Manhattan e Stardust Memories/Recordações, todos feitos na segunda metade da década de 1970 com chancela da United Artists, correspondem a uma “idade de ouro” de produção que os tempos decompuseram — em boa verdade, a United Artists já nem sequer existe. Agora, Coup de Chance, porventura o ponto final da sua filmografia, além de falado em francês, é também o seu primeiro título com produção cem por cento europeia. Entretanto, os conflitos familiares com Mia Farrow deixaram marcas na percepção de Woody Allen por muitas pessoas, quer nos EUA, quer na Europa: foi acusado de abuso de uma das filhas do casal, depois ilibado pelos tribunais e condenado por algumas investigações jornalísticas (incluindo a mini-série Allen v. Farrow, disponível na HBO Max).

Comédia & drama

A imagem de cómico foi aquela que começou por definir a identidade de Woody Allen, o seu prestígio e a sua popularidade — com o cinema sempre enredado com o teatro. Estreou-se no cinema como argumentista e intérprete de Que Há de Novo, Gatinha? (1965), comédia burlesca dirigida por Clive Donner, com um elenco que integrava Peter Sellers, Peter O’Toole, Romy Schneider e Ursula Andress. Nesse período inicial, obteve um grande sucesso na Broadway com a peça Don’t Drink the Water, uma sátira em ambiente de Guerra Fria, estreada em 1968. Um ano mais tarde, protagonizava e realizava Take the Money and Run (entre nós O Inimigo Público), retrato “documental” de um desastrado ladrão de bancos: o humor nascia de diálogos tão curtos quanto desconcertantes, a par de uma metódica criação de situações de glorioso absurdo.
Seguiram-se comédias como O ABC do Amor (1972), uma bizarra enciclopédia sobre os mistérios do sexo, inspirada num “best-seller” da época, ou Nem Guerra, Nem Paz (1975), variação sobre as guerras napoleónicas, parodiando a herança de Tolstoi. Na sua ambígua ligeireza e elegância narrativa, Annie Hall (1977) recuperava modelos da comédia dramática de Hollywood e ficou como uma espécie de primeiro inventário de alguns temas obsessivos de Woody Allen: as relações sempre equívocas entre homens e mulheres, a discussão da identidade judaica e a constante sedução do pensamento psicanalítico.
Ironicamente, todo estes modos de ser um autor e actor cómico terão contribuído para nem sempre se dar a devida atenção ao facto de, muito cedo, a obra de Woody Allen exibir algumas radicais componentes dramáticas. Assim, em 1978, apenas um ano após o impacto de Annie Hall, ele escrevia e dirigia o seu primeiro filme em que não participava como actor: Intimidade (título original: Interiors). A dissecação das contradições e fantasmas de uma família, além de sustentada por um elenco de luxo (Diane Keaton, Geraldine Page, Mary Beth Hurt, Maureen Stapleton, Sam Waterston, etc.), revelava um Woody Allen que se assumia como discípulo de um mestre europeu: Ingmar Bergman.
Isto sem esquecer que Intimidade é também um dos momentos fulcrais da relação criativa com um dos génios da fotografia no cinema americano: Gordon Willis, responsável pelas imagens dos dois primeiros capítulos de O Padrinho (1972 e 1974). Em 1979, de novo com Willis, Woody Allen realizava Manhattan, desta vez num prodigioso preto e branco (em formato largo, “scope”), com a inesquecível integração de uma obra clássica da música “made in USA”: Rhapsody in Blue, de George Gershwin, num registo da Filarmónica de Nova Iorque sob a direcção de Zubin Mehta.

A família como teatro

A relação com alguns notáveis directores de fotografia define mesmo vários “capítulos” criativos na história cinematográfica de Woody Allen. Assim, depois de Gordon Willis, começou um ciclo de colaborações com o italiano Carlo Di Palma, ligado, em particular, à evolução das imagens a cor no trabalho de Michelangelo Antonioni (a partir de 1964, com O Deserto Vermelho). Nesta perspectiva, Ana e as suas Irmãs (1986), primeiro de doze títulos de Woody Allen fotografado por Di Palma — incluindo também uma experiência a preto e branco, Sombras e Nevoeiro (1991), citando a herança visual e temática do expressionismo alemão —, ocupa um lugar charneira na obra do actor/argumentista/cineasta. Muitas vezes citado como um fresco familiar marcado pela herança de Fanny e Alexandre (1982), de Ingmar Bergman, Ana e as suas Irmãs revisita as teias da paixão e da traição, da inocência e da culpa, reafirmando o universo de Woody Allen como um fascinante “teatro” de transfiguração dos actores. No papel das três irmãs, Mia Farrow, Barbara Hershey e Dianne Wiest são figuras de incríveis nuances emocionais, num elenco em que também encontramos, por exemplo, Michael Caine, Maureen O’Sullivan (mãe de Mia Farrow) e o “bergmaniano” Max Von Sydow.
Mais recentemente, a fotografia dos filmes de Woody Allen passou a ser assinada por outro italiano, Vittorio Storaro, mestre da luz e da cor que, para lá da sua múltipla relação com a obra de Bernardo Bertolucci — incluindo O Conformista (1970), O Último Tango em Paris (1972) e O Último Imperador (1987) —, assinou as imagens de Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, e Reds (1981), de Warren Beatty. A sua relação iniciou-se com Café Society (2016), visão amarga e doce da década de 1930 em Hollywood, prolongando-se até ao novíssimo Coup de Chance — com o título Golpe de Sorte [trailer], a sua estreia portuguesa está agendada para 5 de outubro.

terça-feira, agosto 15, 2023

Ser ou não ser Zelig

Woody Allen interpretando Leonard Zelig,
ou a comédia da identidade

Há no filme Zelig, de Woody Allen, um jogo entre a verdade e a mentira das imagens que ecoa no nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 julho), assinalando a data dos 40 anos do seu lançamento.

A obra-prima de Woody Allen, Zelig, estreou-se há 40 anos, em Nova Iorque, a 15 de julho de 1983. Dois dias mais tarde, no New York Times, Vincent Canby comparava-o com o clássico Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles: “Zelig é Citizen Kane miraculosamente transformado em delirante comédia.”
O paralelismo está longe de ser um banal juízo de valor. Será preciso lembrar que pensar os filmes é um trabalho que pouco, ou nada, tem a ver com o infantilismo “científico” que, eventualmente, se vai esgotar nas clássicas estrelinhas? A evocação de Welles envolve uma questão cuja perturbação — mediática e política, numa palavra, cultural — continua a pontuar os nossos quotidianos. A saber: não apenas a relação de cada um de nós com a verdade, mas o modo de produção dessa verdade.
Welles encenava a odisseia da personagem que ele próprio interpretava, Charles Foster Kane, um magnate da imprensa com ambições políticas. Em termos esquemáticos, digamos que o filme evolui como um puzzle gerado pela palavra (“Rosebud”) que Kane pronuncia antes de morrer; em sucessivos flashbacks, várias personagens respondem a uma investigação jornalística sobre a identidade de Kane — é um enigma individual que se vai dispersando, não se fixando em nenhuma imagem (nem mesmo através do “esclarecimento” final, dos mais ambíguos que alguma vez foi apresentado por uma narrativa cinematográfica).
Zelig evolui também como um puzzle individual, em torno da figura de Leonard Zelig (interpretado pelo próprio Allen, também responsável pelo argumento). Com uma diferença que está longe de ser secundária: enquanto Kane é aquele que, mesmo com o auxílio de materiais de arquivo e múltiplos testemunhos, se vai escapando a qualquer identificação ou compreensão definitiva, Zelig existe através de uma transfiguração de imagens potencialmente infinita.
Assim, Zelig não se relaciona com os outros, mas com as imagens que os definem. Mais do que isso: Zelig vai existindo através das mais incríveis “duplicações”, adaptando-se, como um camaleão, a qualquer contexto. Vêmo-lo em cenários políticos ou reuniões secretas, assumindo-se como paciente num hospital (veja-se a ilustração deste texto) ou político na Casa Branca, ou ainda gangster num cabaret de duvidosa frequência. A comédia nasce, não daquilo que a personagem faz, mas das “personalidades” que pode assumir para, finalmente, desembocar num mistério romanesco: o amor que encontra na psiquiatra que o trata (Mia Farrow) surge como teste final da sua cura… Será preciso acrescentar que estamos perante uma fábula sobre o ser ou não ser?
Ser ou não ser pessoa, entenda-se, mas também ser ou não ser imagem, filme, transmissão visual. Dir-se-ia que, duas décadas antes da promiscuidade virtual induzida pelo Facebook (e outras redes de discutíveis valores sociais), Allen formula a hipótese de alguém existir apenas através de uma delegação identitária que, em última instância, esvazia a sua dimensão humana — um pouco como as “infuencers” que só existem através das mercadorias que promovem, curiosamente não suscitando qualquer dúvida pedagógica de muitas militâncias feministas.
Há outra maneira de sublinhar a singularidade estética e o génio criativo de um filme como Zelig. Com a fundamental colaboração do director de fotografia Gordon Willis (responsável, por exemplo, pelas imagens da trilogia de O Padrinho), Allen conseguiu uma verdadeira proeza na história dos efeitos especiais. Nada a ver com a destruição de um planeta, cena sim, cena não, à maneira de alguns espectáculos da Marvel & Cª. As imagens (fotográficas e em movimento) de Zelig são trabalhadas para a inserção das várias encarnações da personagem central nos mais diversos cenários, e também para a produção de um efeito de desgaste material (riscos, cortes, etc.) capaz de sugerir o tempo que passou até ao presente do próprio filme.
Esse efeito, de uma só vez dramático e irónico, é tanto mais sugestivo quanto o filme conta com algumas personalidades que aceitaram participar em nome próprio, contribuindo para reforçar a sensação ambígua de assistirmos a um documentário (“mockumentary”, segundo a gíria anglo-saxónica), incluindo Susan Sontag, o nobelizado Saul Bellow e Bruno Bettelheim. Sontag, a primeira a aparecer, coloca mesmo a figura de Leonard Zelig num plano mitológico: “Ele foi o fenómeno da década de 1920. Acreditamos que, nessa altura, era tão conhecido como Lindbergh, o que é realmente impressionante.”
Vale a pena acrescentar algumas palavras da própria Sontag, do seu ensaio “Sobre o estilo” (1965), incluido na colectânea Contra a Interpretação (ed. Gótica, 2004). Resistindo à noção redutora segundo a qual a obra de arte está obrigada a manter alguma proximidade com a nossa “realidade vivida”, diz ela: “Superar e transcender o mundo em arte é também um meio de encontrar o mundo, e de treinar e educar a vontade para estar no mundo.”

domingo, junho 27, 2021

Kate Winslet
— a aristocrata do povo [3/3]

Kate Winslet tem mais uma composição invulgar na mini-série Mare of Easttown (HBO): talentosa e versátil, a estrela de Titanic nunca cedeu à fabricação de um estereótipo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 maio).

[ 1 ]  [ 2 ]

Apesar das dificuldades financeiras da família durante a infância e adolescência, Kate Winslet teve uma sólida formação teatral, ganhando experiência nos palcos e começando a trabalhar, a partir dos 16 anos, em pequenos papéis de séries televisivas. Talvez se possa dizer que esses princípios lhe serviram, acima de tudo, para aprender a respeitar a complexidade de cada personagem, seja qual for o seu perfil dramático.
Num filme recente, Ammonite, escrito e realizado por Francis Lee, assume a personagem de Mary Anning, lendária paleontologista da primeira metade do século XIX. Analisando a ambivalência dos seus comportamentos sexuais, nomeadamente na relação com a geóloga Charlotte Murchison (Saoirse Ronan), Kate Winslet declarou à revista Vanity Fair (setembro 2020): “Poder representar esta personagem que revela tão especial afecto por alguém do mesmo sexo foi uma das experiências mais gratificantes de toda a minha carreira.” Porquê? Precisamente porque o desafio que a personagem envolve convoca e, de alguma maneira, exige capacidade de resistência ao comodismo das ideias feitas: “Estamos de tal maneira condicionados pelas abordagens tradicionais dos ideais românticos no cinema… Mas quando retiramos esses estereótipos, é como uma lufada de ar fresco.”
As suas composições mais ricas, complexas e fascinantes implicam, justamente, o enfrentamento de convenções que, sendo dramáticas, são também morais. Algo do género acontece no filme que lhe valeu aquele que é, até agora, o seu único Oscar (num total de sete nomeações): O Leitor (2008), de Stephen Daldry, baseado num “best-seller” de Bernhard Schlink, odisseia de sobrevivência de uma mulher na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial.
Há em O Leitor um maneirismo narrativo que impede a actriz de levar a sua performance às últimas consequências. Vale a pena, por isso, contrapor-lhe duas interpretações, sem dúvida menos conhecidas, mas de rara subtileza e intensidade. A primeira está em Pecados Íntimos (2006), de Todd Field, um verdadeiro labirinto existencial protagonizado por duas mulheres (Kate Winslet e Jennifer Connelly) que se confrontam com a fragilidade do território conjugal, num processo tendencialmente trágico. O outro exemplo é, a meu ver, um dos filmes maiores da produção americana do século XXI, infelizmente amaldiçoado por um falhanço comercial que o tornou quase invisível: Revolutionary Road (2008), adaptação do romance de Richard Yates por Sam Mendes (na altura casado com Kate Winslet).
Revolutionary Road
nasceu da vontade de refazer o par de Titanic: Kate Winslet e Leonardo DiCaprio interpretam um casal a viver numa zona suburbana do Connecticut, em meados da década de 1950, numa trajectória que não deixa de nos remeter para a série Mare of Easttown. Claro que são épocas e lugares distintos e todo o enquadramento social é diferente, mas deparamos com uma idêntica pulsação dramática: há um abismo entre o destino imaginado pelas personagens e a crueza imposta pelas dores do quotidiano.
Certamente não por acaso, as melhores composições de Kate Winslet estão em filmes em que o gosto pela enigmática densidade das palavras envolve qualquer coisa de subtilmente teatral. Exemplo superior dessa arte de todas as ambivalências do factor humano é Carnage/Deus da Carnificina (2011), de Roman Polanski, precisamente a adaptação de uma peça, da autoria da francesa Yasmina Reza. Sem esquecer Roda Gigante (2017), de Woody Allen, drama também dos anos 50 que propõe uma revisão crítica, rara na tradição de Hollywood, do imaginário cultural ligado a Coney Island.
Razões de sobra para reconhecermos em Kate Winslet a simbologia de uma outra tradição, de uma só vez artística e afectiva: ela é mais uma actriz britânica que, a par de figuras lendárias como Vivien Leigh, Elizabeth Taylor ou Julie Andrews, triunfou em Hollywood através de um talento tecido de intransigência e versatilidade. Como se prova pelo brilhantismo de Mare of Easttown, esse é um talento que persiste na idade das plataformas de streaming.

sexta-feira, novembro 01, 2019

A poeira segundo Francis Bacon

FRANCIS BACON
Auto-retrato (1978)
A pintura de Francis Bacon deixou-nos um legado que envolve tanto de físico como de metafísico. No limite, ele ensina-nos a repensar o modo como olhamos para os nossos corpos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título 'Elogio da poeira'.

No espaço de poucos dias tive oportunidade de descobrir o maravilhoso filme de Woody Allen, Um Dia de Chuva em Nova Iorque, e revi a obra-prima de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now (também uma descoberta, já que se tratava da nova montagem, desta vez “final”, concebida por Coppola, entre nós apresentada pelo CCB).
O cruzamento dos dois filmes envolve uma personalidade que, de alguma maneira, os aproxima. De facto, as respectivas imagens têm assinatura do mesmo director de fotografia, o italiano Vittorio Storaro (nascido em Roma há 79 anos), um dos mestres absolutos da luz e da cor em toda a história do cinema.
Não será necessário lembrar muitos títulos para ilustrar o génio de Storaro. Bastarão, por certo, os três que lhe valeram outros tantos Óscares de melhor fotografia: Apocalypse Now foi o primeiro, seguindo-se Reds (1981), de Warren Beatty, e O Último Imperador (1987), de Bernardo Bertolucci. A colaboração com Bertolucci envolveu um total de nove filmes, de Antes da Revolução (1964), o único em que Storaro foi apenas assistente de imagem, a O Pequeno Buda (1993), passado por O Último Tango em Paris (1972) ou Um Chá no Deserto (1990).
No caso de O Último Tango em Paris, uma inspiração decisiva para o trabalho de Storaro foi a pintura do britânico Francis Bacon (1909-1992). Pela pluralidade dos seus castanhos, mas também pela abordagem dos corpos humanos. Bertolucci levou mesmo Marlon Brando a ver uma exposição de Bacon para lhe explicar como imaginava a personagem de Paul.
Era um princípio físico envolvido com uma hipótese metafísica. Segundo a ensaísta Claretta Micheletti Tonetti (The Cinema of Ambiguity, 1995), Bertolucci queria que Brando “se comparasse com as figuras humanas de Bacon porque sentia que, tal como essas figuras, o rosto e o corpo de Marlon se caracterizavam por uma plasticidade estranha e infernal.” Tal como uma figura de Bacon, Paul devia surgir com o “rosto devorado por algo que provém do interior.”
Que Brando seja o intérprete do coronel Kurtz em Apocalypse Now, eis uma “duplicação” de perturbante fascínio. Em boa verdade, o Kurtz inventado por Coppola a partir da novela de Joseph Conrad, O Coração das Trevas (publicada em 1902), é uma dessas figuras “devorada a partir do interior” que, no limite, desafia a identidade de quem dele se aproxima — é esse, justamente, o assombramento do capitão Willard (Martin Sheen), a caminho do reino dantesco de Kurtz.
Recentemente, o escritor e ensaísta francês Franck Maubert publicou um livrinho sobre a sua convivência, enquanto jornalista, com Bacon (Avec Bacon, Gallimard, 2019). Em pouco mais de uma centena de páginas, as suas memórias acrescentam uma nota de irresistível humor à vertigem que mobilizou Bertolucci, Storaro e Brando. Aliás, Maubert começa o livro lembrando que a primeira vez que viu um quadro de Bacon foi nos títulos de abertura de O Último Tango de Paris.
Delicioso é o modo como Bacon se refere à lendária desarrumação do seu atelier, em South Kensington (o título do primeiro capítulo de Maubert é o respectivo endereço: 7, Reece Mews, Londres). Bacon define o lugar como essencial ao seu trabalho, a ponto de ter especial estima pela sua poeira: “Um dia, dois conservadores da Tate vieram visitar-me. Queriam saber como surgira a composição de um detalhe de uma das minhas pinturas, a textura de um casaco de padrão espinhado. Não compreendiam como é que eu tinha conseguido fazer aquilo, que materiais teria utilizado. Achei imensa graça: tinha pintado com a unha, utilizando poeira apanhada no chão do meu atelier, dando ao casaco um aspecto mais verdadeiro que o original. Quando lhes dei conta disso, foram-se embora, indignados.”
Bacon deixou-nos muitos retratos e auto-retratos (como aquele que aqui se reproduz) tocados por essa energia paradoxal: sentimos os rostos ameaçados de desagregação, ao mesmo tempo que acedemos à mais intensa verdade material do corpo humano. Lição para os olhos: no nosso presente de normalização digital das imagens, corremos o risco de perder esse realismo que circula pelas imponderáveis razões da poeira.

terça-feira, outubro 29, 2019

Woody Allen em Nova Iorque
— sempre, para sempre

Timothée Chalamet + Elle Fanning
Com ternura e desencanto, Woody Allen continua a filmar histórias de amor na sua cidade: Um Dia de Chuva em Nova Iorque é um dos maiores acontecimentos cinematográficos deste ano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Outubro).

Romantismo? A palavra está gasta, usada e abusada pelos “famosos”, pervertida na sua história e simbologia pela publicidade que encena pares amorosos a descobrir o sentido da vida através de uma nova aplicação de telemóvel… Enfim, não desesperemos. Pelo menos nas histórias que os filmes contam, ainda há quem acredite numa réstia de romantismo. É o caso de Woody Allen. O seu símbolo romântico, por excelência, não é uma pessoa, mas uma cidade: Nova Iorque.
Assim aconteceu em Annie Hall (1977), Manhattan (1979) ou Celebridades (1998), para apenas citarmos alguns dos títulos mais óbvios. Agora, com Um Dia de Chuva em Nova Iorque, 50ª longa-metragem da sua filmografia, Woody Allen, à beira de completar 84 anos (no dia 1 de Dezembro), reafirma uma obstinada crença romântica em Nova Iorque, mesmo se a sua visão das personagens se apresenta marcada por um paciente e pedagógico desencanto.
Observe-se o par central deste filme. Gatsby e Ashleigh são jovens namorados, estudam na mesma universidade e partem para uma breve deslocação a Nova Iorque; para o desenvolvimento de um trabalho de investigação, Ashleigh conseguiu agendar um encontro com um conhecido realizador de cinema, propondo-se Gatsby aproveitar a ocasião para lhe mostrar alguns dos locais mais emblemáticos (e também mais caros) de Nova Iorque…
Digamos, para simplificar, que Timothée Chalamet e Elle Fanning — intérpretes de Gatsby e Ashleigh — raras vezes tiveram a possibilidade de trabalhar personagens que, como estas, combinam a transparência emocional com um radical mistério existencial. A prodigiosa performance de Fanning, em particular, consegue expor uma candura emocional que, a pouco e pouco, vai sendo marcada pelas agruras que o dia a dia não programa, muito menos anuncia. Isto porque o génio narrativo de Woody Allen, a sua capacidade de transfigurar a ligeireza do mais banal quotidiano em espelho das convulsões da alma humana, se confunde com um cepticismo cada vez mais paradoxal.
Que filma, então, Woody Allen? Uma comédia romântica, sem dúvida, de uma maneira ou de outra filiada na nobre tradição de Hollywood que passa pelo trabalho de cineastas como Vincente Minnelli, George Cukor ou Blake Edwards. E não há dúvida que a espantosa direcção fotográfica de Vittorio Storaro nos remete para as memórias visuais e melodramáticas de muitos dos respectivos filmes.
Mas se esse foi um género de alegre redenção (o que, convenhamos, pode ser discutido…), em Um Dia de Chuva em Nova Iorque, mesmo através do subtil humor de muitas das suas cenas, deparamos com a gélida revelação das muitas formas de falsidade que as relações humanas contêm ou alimentam — Gatsby e Ashleigh definem um par romântico para o século XXI, mas o tempo presente não confirma a mitologia que os inspira.
Cenas como a conversa de Ashleigh com o cineasta que não está nos seus melhores dias, ou o antológico diálogo em que a mãe de Gatsby lhe revela os segredos do seu passado, são exemplos modelares de uma sublime arte narrativa. Woody Allen não desiste de retratar os humanos sem excluir qualquer uma das suas imperfeições, não desistindo também de fazer valer uma ternura que circula nos interstícios das relações humanas, sempre com destino incerto.
Sinal dos tempos: as ruas das nossas cidades enchem-se de cartazes a celebrar super-heróis esvaziados de qualquer humanidade, mas o grande cinema americano está aqui, através do labor de um cineasta que se mantém fiel às suas raízes artísticas. Dito de forma simples, simplesmente cinematográfica: Um Dia de Chuva em Nova Iorque é um dos grandes filmes de 2019.

quarta-feira, outubro 16, 2019

Woody Allen em Nova Iorque

Woody Allen continua a ser um dos maiores argumentistas/realizadores da produção americana e, claro, um caso único no panorama global do cinema. Está a chegar o belíssimo Um Dia de Chuva em Nova Iorque, com Timothée Chalamet e Elle Fanning: exuberantes, comoventes e paradoxais como nunca os vimos — Fanning, em particular, tem uma daquelas performances que, daqui a muitas décadas, será citada como uma proeza absoluta na sua carreira. Isto sem esquecer a prodigiosa direcção fotográfica de Vittorio Storaro. Eis o trailer [estreia: 24 Outubro].

terça-feira, fevereiro 04, 2014

Bergman x 17 (5)

SORRISOS DE UMA NOITE DE VERÃO (1955)
Grande acontecimento em Lisboa e Porto (e mais algumas cidades): a apresentação de 17 filmes de Ingmar Bergman (1918-2007), a maior parte em cópias restauradas — razões de sobra para rever algumas imagens emblemáticas da filmografia do mestre sueco.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]  [ 4 ]

Com o seu impecável traje de noite, Gunnar Björnstrand não está a introduzir uma nota cómica no meio de um drama de Ingmar Bergman... Nada disso: ele está mesmo no interior de uma comédia visceral, ironicamente consagrada na filmografia de Bergman como o filme que lhe trouxe uma dimensão internacional, em especial através da sua passagem em Cannes/1956 (no mesmo ano em que o festival acolheu, por exemplo, Pather Panchali, de Satyajit Ray, O Homem que Sabia Demais, de Alfred Hitchcock, ou ainda o derradeiro filme de Humphrey Bogart, A Queda de Um Corpo, de Mark Robson). A partir das atribulações de vários casais, num contexto campestre, algures na alvorada do séc. XX, Bergman encena os êxtases e ilusões do impulso amoroso, por certo, como sublinhou Pauline Kael, ainda influenciado pelo facto de, imediatamente antes, ter dirigido em palco a opereta A Viúva Alegre. Para a história, ficam dois herdeiros muito directos de tais atribulações: o musical A Little Night Music, de Stephen Sondheim (estreado na Broadway em 1973), e o filme Uma Comédia Sexual numa Noite de Verão (1982), de Woody Allen.