Mostrar mensagens com a etiqueta Londres. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Londres. Mostrar todas as mensagens

sábado, abril 02, 2016

Quando a câmara fixa a performance

Erwin Wurm
Untitled (Claudia Schiffer series) 2009

Pose ou performance? Tal como a mostra dedicada em 2013 pelo Victoria & Albert Museum a David Bowie não respondia à frase incompleta lançada quando se entrava no espaço expositivo e lia “David Bowie Is...”, também não é objetivo de Performing For The Camera, patente na Tate Modern até 12 de junho, o explicitar desta dúvida. Até porque as fronteiras entre o que é pose e performance podem nem existir. E a proposta daquele conjunto de 14 salas, onde estão expostos trabalhos de 50 fotógrafos, é mais a de observar as relações possíveis entre a câmara e o ato performativo, seja essa uma ideia expressamente criada para ser fotografada ou representando o fotógrafo um veículo documental para o que observa perante uma performance.

A exposição está organizada em sete núcleos, o primeiro representando o esforço documentarista do fotógrafo perante performances de facto, organizadas por artistas entre galerias de arte ou o espaço público. São aqui protagonistas nas imagens as figuras de Yves Klein (entre outras situações, captado na Galerie Internationale d’Art Contemporain em 1960) ou de Yayoi Kusama (em vários “happenings” realizados em Nova Iorque nos anos 60 e 70). A fotografia aqui serve assim de olhar que fixa o processo criativo. Documenta a performance.

O segundo núcleo mostra imagens que resultam de performances expressamente criadas para serem fotografadas. Estão aqui as mais antigas fotografias de toda a exposição, assinadas pelo pioneiro Félix Nadar (1820-1910). E é ainda neste segmento que encontramos a belíssima série que resultou de uma parceria entre Eikoh Hosoe e o bailarino Tatsumi Hijikata, em finais dos anos 60. A ideia do registo da ação criativa, explorando a fotografia os instantes que imaginam os movimentos do imediatamente antes e do logo depois mostram na secção Photographic Actions imagens como a que Andy Warhol captou quando Keith Haring pintava o corpo de Grace Jones ou as que mostram, em três momentos, o instante em que Ai Wei Wei quebrou uma jarra da Dinastia Han, em 1995.

Uma das colaborações entre Eikoh Hosoe 
e o bailarino Tatsumi Hijikata (1969)
A segunda metade do percurso faz-se inicialmente entre figuras icónicas da performance pensada para a câmara, naturalmente com destaque para fotografias de Cindy Sherman, incluindo ainda a série Arthur Rimbaud in New York, de David Wojarowicz. Há depois uma sala que explora relações entre o retrato e a linguagem publicitária, com Jeff Koons como uma das imagens em evidência. E termina com uma série de auto-retratos e uma sala focada na ideia de retrato da vida real como performance, na verdade refletindo aqui sobre uma maneira de pensar a imagem muito característica da comunicação na era das redes sociais. E aqui vale a pena juntar o nome de Amalia Ulman (e s seus trabalhos de 2015) à galeria de ilustres que a exposição nos mostra. Esta é uma história ainda em construção.

sábado, maio 03, 2014

O que procuramos nas ruinas? (2)

Este texto, sobre a exposição 'Ruin Lust' patente na Tate Britain, em Londres, foi originalmente publicado na edição de 19 de abril do suplemento Q. do DN, com o título 'Olhar o Passado e o Futuro Entre as Ruinas'. 

Em Ruin Lust, o pequeno livro/catálogo que a Tate lançou juntamente com a exposição, Brian Dillon (1) descreve as ruínas como “uma memória da realidade universal do colapso e do apodrecimento; um aviso do passado sobre o nosso próprio destino e de qualquer outra civilização; um ideal de beleza que seduz precisamente pelas suas falhas e erros; o símbolo de um estado de alma melancólico e divagador; uma imagem de equilíbrio entre a natureza e a cultura; um monumento pelos que caíram em guerras recentes ou antigas; um retrato de uma economia desmedida e do declínio industrial; um terreno desolado (...) onde temos espaço e tempo para imaginar um futuro”. (2)

'St Mary Le Port', de J Piper (1940)
O percurso transporta-nos através do tempo, revelando uma maior presença de obras do século XX que de tempos mais antigos. As guerras, em particular as duas guerras mundiais do século passado, foram de resto um motivo de reencontro de artistas com a representação de ruínas. Como evidencia a expoisção nos textos que nos apresenta, perante a dimensão da destruição que estes dois conflitos geraram, “muitos artistas regressaram à ideia histórica da ruin lust para tentar compreender ou aprender a conviver com as consequências das modernas maquinarias de guerra”. O termo ruinenlust seria mesmo ressuscitado depois da guerra pela académica e escritora Rose Macaulay no estudo Pleasure of Ruins, de 1953. A escritora, que perdera a sua casa e biblioteca durante o blitz, desenvolveu ao longo da sua vida uma história detalhada da evolução do nosso relacionamento e do gosto pelas ruínas. Dillon defende que “a definição de ruína” foi de facto “testada pela guerra mas muitos artistas estavam menos ansiosos que Macuallay sobre se seria justificável evocar naquela altura as estéticas das ruínas de séculos anteriores”.

Na segunda metade do século XX muita da resposta artística à cidade estava preocupada com os sucessos e fracassos de projetos como o da visão de Le Corbusier para Paris ou a de Albert Speer para a Germania sonhada por Hitler, defendendo Brian Dillon que alguns artistas britânicos “regressaram a visões passadas da estética das ruínas como modelos para pensar sobre a cidade no presente”. Somos assim conduzidos às fotografias que John Savage tirou em Londres nos anos 1970, nas quais – aponta Dillion – parte da cidade parece ainda que foi bombardeada, ao mesmo tempo que noutros lugares vemos sinais já decadentes da reconstrução do pós-guerra.

Numa perspetiva diferente, o artista norte-americano Robert Smithson definiu em 1967 a expressão ruins in reverse para explicar de que modo a arquitetura contemporânea parecia “não cair em desuso, mas em erguer-se em ruínas”... Na mesma década, como refere a exposição, o escritor JG Ballard entendeu a arquitetura de betão do pós-guerra como uma premonição da sua própria ruína.

Ruin Lust apresenta ainda um conjunto de obras de Tacita Dean, em cujos filmes, fotografias, desenhos e instalações explora velhas estruturas e máquinas que nos recordam de formas como, no passado, se olhava o futuro.

No fim, o percurso sugere-nos que contemplamos de facto as ruínas com um ponto de vista que não se esgota num exercício mental de viagem no tempo. Porque a ruína que seremos um dia está, de certa forma, retratada em sinais, lugares e construções do presente que somos. 

(1) Brian Dillon é um escritor, crítico e curador de origem britânica. No seu trabalho explorou já por diversas vezes ruínas antigas e modernas, assim como estudou a história da sua representação na arte e na cultura. Entre os livros que editou contam-se Objects in this Mirror: Essays; Sanctuary; In the Dark Room; e Ruins, an anthology of artists and critics reflections on ruination. É o editor britânico da revista Cabinet e ensina no Royal College of Art.
(2) in Ruin Lust, de Brian Dillon (Tate, 2014), pag. 5

domingo, abril 20, 2014

Há vikings em Londres! (parte 4)


Continuamos a publicação de um texto sobre a exposição ‘Vikings: Life and Legend’, patente no British Museum, que foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN de 12 de abril com o título ‘Para acabar com a visão romântica dos vikings’.

A peça central (e sem surpresa a mais mediatizada) da exposição é um grande navio de guerra, que domina a sala que encerra o percurso. O navio hoje conhecido como Roskilde 6 foi construído por volta do ano 1025 e perdido talvez uns 30 anos depois num naufrágio. Foi redescoberto em 1996 por alturas da construção de uma estrutura museológica na área portuária de Roskilde, localidade costeira dinamarquesa (muitas vezes citada internacionalmente pelo festival de música que acolhe anualmente). Foi contudo ligeiramente danificado antes de se dar conta de que as madeiras ali estavam soterradas. Esta é a maior embarcação viking alguma vez descoberta, com uma extensão reconstruída de 37 metros, montada numa estrutura metálica. O Roskilde 6 corresponde às dimensões maiores historicamente esperadas para um navio viking. Do navio o que chegou aos nossos dias foi um fragmento de uma secção do fundo e quase 32 metros da sua longa quilha.

Usando várias técnicas, entre as quais as usadas em dendrocronologia (4), o navio foi não apenas datado, como deu a saber de onde provinham as árvores de cujas madeiras é feito. Calcula-se assim que as madeiras ali usadas tenham sido cortadas entre 1018 e 1032, o ano 1025 sendo a média que se entendeu assim usar, explica Jan Bill num pequeno subcapítulo sobre o navio em Vikings Life and Legend. Os padrões de crescimento dos troncos fazem supor que as origens destas madeiras estejam algures na região do fjord de Oslo.

Apenas um quinto do casco chegou aos nossos dias, ao contrário do mastro e vela, que desapareceram completamente. Os fragmentos permitiram mesmo assim uma reconstrução, que ganha materialidade na estrutura que domina a sala e nos vários desenhos e animações que podemos consultar em ecrãs que ali encontramos. A reconstituição do Roskilde 6 apresenta um navio de 37,27 metros de comprimento, boca (ou seja, a secção transversal) de 3,99 metros e uns meros 83,5 cm de calado (a profundidade do ponto mais baixo da quilha). As madeiras usadas são de carvalho.

Segundo explica Jan Bill, “fontes na era viking tardia raramente mencionam as dimensões dos vários tipos de navios”. Algumas sagas de reis, acrescenta, contam que a bordo dos grandes navios de guerra (como este) haveria entre 30 e 60 pares de remos. Bill observa contudo que, quando Snorri Sturluson (5) redigiu estas sagas (no século XIII), os “navios de guerra eram consideravelmente maiores que nos tempos dos vikings e que, talvez, Snorri exagere um pouco”.

O homem para quem este navio foi construído era muito possivelmente alguém da elite ou da Noruega ou Dinamarca. São conhecidos os nomes dos reis e dos nobres viking deste tempo. Mesmo assim, adverte o livro, “é dificil sugerir quem possa ter sido o seu proprietário”.

Na mesma altura em que a Dinamarca e as regiões meridionais da Suécia estavam sob a mão do rei Cnut (6) e a Noruega era governada por Olaf II Haraldsson (7) (que mais tarde seria canonizado). As forças militares dos dois estadistas foram protagonistas de um encontro determinante no rio Helge, algures entre os anos 1025 e 1026. Enfraquecido nesta batalha, Olaf seria derrorado por Cnut em 1028, fugindo o rei norueguês para as terras do seu irmão, o príncipe de Kiev e Novgorod. A incerteza quanto à data precisa em que o Roskilde 6 foi construído não permite, diz Jan Bill, saber ao certo se quem o mandou construir foi Cnut ou Olaf. “A reação às pretensões de Cnut sobre o trono norueguês foi a de conduzir uma guerra anfíbia contra a Dinamarca, o que seria mais que uma razão para construir um navio deste tipo”, explica o livro. Porém, se o navio foi construído depois de 1028, “facilmente terá sido mandado fazer por um dos aliados de Cnut ou por ele mesmo”. De resto, e neste último caso, “usar a madeira de florestas de reis conquistados para fazer um navio tão magnífico teria sido como uma mensagem cujo significado não teria passado despercebido pela elite da época, para quem a honra e o domínio das artes do mar eram tão importantes”, acrescenta o texto. Mas mais difícil que pensar quem terá sido aquele que mandou construir o navio será, lembra ainda em remate, calcular o que o terá levado a Roskilde, onde ficou desde então.

A escavação arqueológica em Roskilde, que decorreu entre 1996 e 97, recuperou cerca de 200 peças, muitas delas partidas, que entretanto foram recuperadas e justapostas depois para construir os fragmentos maiores que vemos na exposição. A reconstrução do navio foi feita sob a coordenação do arquiteto Morten Gothche, do Museu do Navio Viking em Roskilde (o Vikingeskibs Museet), que pensou também a estrutura sobre a qual os fragmentos que chegaram aos nossos dias estão agora apresentados. A estrutura, como descreve Kristiane Straetkven, “dá a melhor ideia possível de como teria sido a aparência do navio”.

Com o navio termina a visita e com ela um olhar novo e informado sobre a idade dos vikings. O fim deste período é apontado a uma altura em que os reinos da Dinamarca, da Noruega e da Suécia ganham uma individualidade mais evidente, e já sob o estabelecimento do cristianismo como a fé dominante na região. A batalha de Hastings, em 1066, é igualmente vista como um momento de derrota, a juntar ao fracasso do estabelecimento de um povoamento no Canadá e à disrupção de rotas comerciais no Médio Oriente. Mas mais que explicar como tudo começou e acabou, Vikings Life and Legend é a história do que aconteceu entre esses momentos. O durante, sem os ingredientes que o romantismo juntou à história. Mas sem esquecer que dele nasceu o fascínio que hoje leva a cada novo dia uma enchente àquelas salas do British Museum.

(4) Método de datação que usa os anéis dos troncos das árvores para saber a sua idade. 
(5) Snorri Sturluson (1179-1241) Historiador, poeta e politico islandês. É o autor de alguns dos mais importantes textos de referência da mitologia nórdica. Crê-se que seja o autor da saga sobre a vida de Egill Skallagrímsson, um poeta e agricultor viking do século X, e que se pensa ter sido escrita em 1240. 
(6) Cnut, o Grande (ca. 985 – 1035) De origem dinamarquesa e eslávica, foi rei da Dinamarca, Noruega, Inglaterra e parte da Suécia. O seu vasto império desmoronou-se e acabou divido depois da sua morte.
(7) Olaf II Haraldsson (também conhecido como Olavo II, da Noruega) (995-1030). Foi canonizado como Santo Olavo dez anos depois da sua morte, na baltalha de Stikle

sábado, abril 19, 2014

Há vikings em Londres! (parte 3)


Continuamos a publicação de um texto sobre a exposição ‘Vikings: Life and Legend’, patente no British Museum, que foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN de 12 de abril com o título ‘Para acabar com a visão romântica dos vikings’.

Os achados mais recentes, que dão conta da vasta dispersão do mapa de contactos e de influências da idade viking permitem criar uma nova perspetiva global da sua época. O conhecimento que hoje temos dos vikings é baseado numa série de evidências “que diferem em qualidade e quantidade por razões ligadas a tradições culturais e estados de preservação”. As poucas inscrições rúnicas (3) que chegaram aos nossos dias (muitas delas encontradas em pedaços de madeira, representando ora o equivalente a cartas ora a anotações) permitem mesmo assim abrir algumas frestas sobre uma série de assuntos, como por exemplo o relato de viagens. Estas inscrições não servem contudo nunca, explica Gareth Williams, para a narração de uma história da idade viking de um ponto de vista escandinavo. O completar da informação provém assim das sagas (muitas delas redigidas em norueguês antigo e reunidas na Islândia), assim como de relatos em latim. Estes registos datam contudo dos séculos XII e posteriores. Ou seja, são posteriores à chamada idade viking. Anacronismos e a “inserção de elementos fantásticos no seio de outros acontecimentos aparentemente históricos, assim como o desejo dos autores de contar uma grande história, refletindo ainda agendas políticas ou culturais, em muitos casos introduzindo mesmo padrões e motivos estabelecidos” não ajudam a uma definição mais clara das verdades que a história naturalmente procura, explica Williams em Vikings Life and Legend. O autor reconhece que é difícil definir até que ponto os acontecimentos são distorcidos entre a data em que ocorreram e aquela em que foram descritos em sagas redigidas algumas gerações depois, pelo que defende que não devem ser tomadas como fontes credíveis para a construção de uma narrativa histórica sobre a idade dos vikings, ressalvando contudo que “não podem ser ignoradas”.

Muitas das evidências mais recentes provêm de sociedades com as quais os vikings contactaram, os dados colhidos pela arqueologia (e têm sido achadas povoações inteiras, fortes e quintas) e, com algum peso, o estudo das moedas aqui e ali encontradas, sendo fundamentais na construção do conhecimento que hoje temos sobre estes povos e este tempo. Gareth Williams aponta ainda algumas “fontes tangíveis” como a história da linguagem e até mesmo a toponímia como importantes elementos a ter em conta.

Apesar de serem sobretudo referidos os feitos navais (de comércio ou militares) dos vikings, o grosso da população escandinava do seu tempo vivia essencialmente da agricultura ou trabalhando como artífices. A sua expansão além do espaço escandinavo fez-se contudo pelo mar. E levou-os longe. A primeira sala da exposição revela-nos a imensidão do mapa de relacionamentos dos vikings. Naturalmente com o foco central na Escandinávia e Norte da Europa, mas com uma extensão de rotas que os levou tanto a terras canadianas como às fronteiras do antigo império romano, chegando mesmo a espaços na Ásia Central.

No capítulo Contacts & Exchange, Gareth Williams e Sunhild Kleingärtner descrevem as populações viking como cultural e etnicamente mais diversificadas que aquilo que muitas vezes se crê (sublinhando que “as terras escandinavas eram elas mesmas diversas geográfica, política, ecomómica e culturalmente”). Os contactos que estabeleceram com populações por vezes tão distantes não se limitavam ao plano económico das trocas comerciais ou das mais violentas incursões pela força. Houve trocas sociais, incluindo alianças, trocas de presentes, casamentos políticos.

Um dos principais motores para a expansão viking para lá da Escandinávia nasceu de uma vontade de gerar riqueza. Já havia contactos externos destes povos antes da “idade viking”, mas é no final do século VIII que as suas fronteiras se alargam a outras latitudes. Há, por exemplo, vestígios de um antigo interposto comercial em Statraya Ladoga, na Rússia, em meados do século VIII, tendo os achados arqueológicos sugerido que ali vivessem escandinavos, eslavos e gentes do báltico. Bem longe dali, o mundo árabe conheceu um contacto direto com os vikings em duas regiões distintas: na (atual) Espanha muçulmana e Marrocos – há, por exemplo, relatos de um raide viking no Sul da Península Ibérica em 844 naquele que é o mais antigo dos registos de incursões pelo Mediterrâneo – e, mais distante ainda, no Médio Oriente e Ásia Central.

A idade dos vikings é contemporânea de uma época de florescimento dos reinos escandinavos da Noruega, Dinamarca e Suécia. Anne Pedersen caracteriza, no capítulo Power & Aristocracy, como eram os centros de poder numa época em que nestes territórios “não havia capitais nem instituições centrais de governo e administração como hoje as conhecemos” e que os reis desse período viajavam entre as suas diversas residências, “reforçando a sua autoridade através dos monumentos” que iam erigindo. A rivalidade entre governantes e as grandes famílias poderosas de então motivaram alguns conflitos militares e têm hoje evidência material em objetos pessoais que definiam aparências e comportamentos. Os navios, as construções monumentais e o “uso deliberado da paisagem” eram elementos de uma “linguagem do poder” da realeza escandinava da época. A escala das construções que as escavações arqueológicas evidenciam, e o tipo de objetos que nos chegaram ao presente, todos eles expressões materiais dessas afirmações de poder, dão também conta do conhecimento técnico alcançado e de um patamar de controlo sobre recursos humanos e naturais que ali foi atingido. Fivelas, esporas e peças de joalharia provenientes de sítios arqueológicos na Alemanha, Dinamarca, Inglaterra, Dinamarca ou Rússia materializam nas vitrinas da exposição este saber de artífices, a prata, o cobre e o ouro ostentando evidentes sinais de riqueza e poder.

A estas peças as histórias do quotidiano viking que aqui presenciamos juntam objetos “estrangeiros” que, por razões essencialmente pragmáticas, eram usados (alguns depois de transformados) em algumas comunidades não necessariamente para o executar de tarefas do dia-a-dia mas, sobretudo, como outra forma de expor riqueza e estatuto. Sunhild Kleingartner assinala como exemplo algumas peças de joalharia feminina que não são mais senão reutilizações de elementos de cintos carolíngios, acrescentando mesmo que “a joalharia da idade viking incorporava objetos que tinham sido usados como forma de pagamento nas regiões de onde provinham”. A descoberta, por exemplo, de moedas de origem árabe em escavações em Scania, no Sul da Suécia, evidencia este modelo de relacionamento. O texto vinca que a utilização deste tipo de elementos em colares e pulseiras era também uma marca de afirmação ou reconhecimento de “alianças sociais”, o que “enfatizava o valor destes objetos e sublinhava a sua função como símbolos de status”.

A exposição (e o catálogo) assinalam também um relacionamento entre os vikings e as noções de crença e religião. Mas, como observa Neil Price no capítulo Belief & Ritual, estes povos “não tinham uma palavra para religião”, lembrando que “o mais próximo equivalente seria uma identificação com a mais lata terminologia dos ‘costumes’ no sentido de práticas tradicionais que se considerava apropriado seguir”. Gestos e hábitos que, assim, mostravam um relacionamento mais próximo com comportamentos sociais do que com os tipos de relacionamento do homem com o divino que caracterizam as fés do nosso tempo, como aqui se explica. A espiritualidade dos vikings estava, na verdade, mais ligada a interações com o mundo natural (mesmo quando nele se procuravam poderes maiores e, como diríamos hoje, sobrenaturais).

(3) Runas são letras dispostas em alfabetos usados entre alguns povos do Norte da Europa antes da adoção do latim.

sexta-feira, abril 18, 2014

Há vikings em Londres! (parte 2)

Continuamos a publicação de um texto sobre a exposição ‘Vikings: Life and Legend’, patente no British Museum, que foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN de 12 de abril com o título ‘Para acabar com a visão romântica dos vikings’.

A idade dos vikings não se explica nem esgota apenas num contexto escandinavo nem no mapa do Norte da Europa. Na introdução do catálogo que o British Museum apresenta com esta exposição, Gareth Williams (um dos seus três principais autores) observa que os vikings criaram uma rede de contactos pelos quais exerceram influências distintas junto dos diversos povos com os quais interagiam. É celebre, de resto, o exemplo da Guarda Varegue, um corpo de elite de origem viking que esteve ao serviço pessoal dos imperadores de Bizâncio entre os séculos IX e XIV. (2)
Esse mapa de trocas e contactos representa assim o primeiro módulo da exposição que, sob a designação Contacts & Exchange (contactos e trocas), dá conta da impressionante abrangência cultural e geográfica da esfera de influência viking. Os módulos seguintes, focam questões militares e a sua expansão como conquistadores, os modelos de poder (e caracterização da aristocracia que o detinha) e ainda os espaços das crenças e rituais que caracterizavam o comportamento social das comunidades escandinavas deste tempo. 

A história da palavra viking não tem um sentido único nem é precisa. No norueguês antigo, explica Gareth Williams, as palavras víkingr e viking tinham significados associados a ideias de assaltos e de pirataria. Hoje, como adverte no texto de introdução ao catálogo, a expressão é usada para referir a cultura de origem escandinava que floresceu aproximadamente entre o ano 800 e 1050. As origens da palavra são “obscuras”, diz, reparando uma possível relação com a palavra vik (baía ou recanto na costa), que ainda hoje observamos em nomes como, por exemplo, o da capital islandesa: Reykjavik. Há assim a hipótese de esta designação decorrer diretamente de piratas que usavam esses recantos para se esconder, daí saindo para atacar navios que passassem perto. O texto aponta também como possível origem uma ligação ao fjord frente a Oslo, que ainda hoje é conhecido pelo nome alternativo de viken (ou seja, a baía). O autor refere uma terceira possibilidade com uma explicação mais do foro comercial, apontando a designação latina de vicus (ou wic em inglês arcaico), designando centros de trocas nas regiões costeiras do mar do Norte, muitos deles em rios navegáveis, como Wijk bij Duurstede (Holanda), Ipswich (Reino Unido) ou até mesmo nomes antigos de cidades como Eofirwic (York) ou Lundenwic (Londres).

Não há contudo uma resposta definitiva. Gareth Williams lança mesmo hipóteses de interpretação diferentes a partir de uma possível origem a partir de uma derivação da palavra wic: “Seria o wicing original o mercado pacífico dos estudos viking posteriores a 1970” ou antes o “arquétipo do pirata” ou ainda “um estrangeiro de origem indeterminada” que visitava estes centros populacionais costeiros “para fins pacíficos ou violentos”. O autor lembra que as fronteiras entre assaltar e fazer comércio por vezes são pouco nítidas ao longo da história, como recorda por exemplo com o caso do tráfico de escravos.

A construção mais “tradicional” de uma imagem dos vikings surgiu no século XIX e passa essencialmente através de histórias de guerreiros e de incursões navais. Esta noção, explica Gareth Williams em Warefare & Military Expansion, terá as suas origens em relatos da época de origem anglo-saxónica, franca ou irlandesa, juntamente com as narrativas das sagas islandesas de finais do século XIII, contando ainda com “um elemento substancial do romantismo do século XIX”. Os estereótipos dos marinheiros violentos, com armas superiores e capazes de feitos incríveis a bordo dos seus navios, como descreve, tem na verdade um pouco de verdade e de ficção. “Os vikings nem eram invulgarmente atrozes nem universalmente bem-sucedidos em batalha” e desde os anos 1960 os historiadores interpretam as sagas de um ponto de vista mais crítico, os achados arqueológicos mais recentes tendo também contribuído para um conhecimento mais abrangente dos povos e seus comportamentos. Por isso mesmo, acrescenta o autor, o retrato exclusivamente violento dos vikings foi parcialmente derrubado por uma visão mais pacífica da sua idade dos vikings. Isto não apaga todavia a importância de aspetos militares fundamentais na caracterização das sociedades escandinavas entre os séculos IX e XI. A profusão de armas expostas no Museu Britânico evidencia, de resto, a presença clara de uma produção de objetos de ataque e defesa entre machados, espadas, arcos e flechas e escudos (um deles, particularmente raro e robusto, achado em Gokstad, na Noruega, data do século IX, é feito em madeira de pinho e tem 94 centímetros de diâmetro). O seu empunhar sublinha, naturalmente, a imagem romântica do viking guerreiro.

(2) Varegue era a designação usada pelos gregos e os eslavos de leste para referir os vikings.

quarta-feira, abril 16, 2014

Há vikings em Londres! (parte 1)

Iniciamos hoje a publicação de um texto sobre a exposição ‘Vikings: Life and Legend’, patente no British Museum, que foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN de 12 de abril com o título ‘Para acabar com a visão romântica dos vikings’.

Não podia ter sido mais bem escolhido caso se tratasse de um casting para um filme. Alto, robusto e de barbas claras, um funcionário do British Museum controlava as chegadas às bilheteiras daqueles que tinham feito inscrições prévias, via internet, à porta de uma nova exposição temporária sobre a idade dos vikings que, até 22 de junho, estará patente numa nova área agora inaugurada na ala Sainsbury do conjunto de edifícios que fazem a sede do museu e que assim o volta a colocar no mapa das grandes exposições mundiais, um ano depois de ali ter feito enorme sucesso uma outra dedicada ao quotidiano de Pompeia e Herculano, duas cidades romanas soterradas por uma gigantesca erupção do Vesúvio no ano 79 da nossa era.

Vikings: Life and Legend é a primeira grande exposição sobre os vikings que o British Museum apresenta em mais de 30 anos e nasce de uma parceria entre o National Museum of Denmark and the Staatliche Museen zu Berlin, em conjunto as três instituições propondo-nos um olhar sobre a idade viking (que se define num intervalo entre os séculos VIII e XI). A exposição, adverte o catálogo, não procura ser um olhar panorâmico sobre o tempo dos vikings, mas antes um reflexo do que têm sido as mais recentes descobertas arqueológicas sobre a sua presença e o seu tempo, assim como traduz o conhecimento revelado por alguns dos últimos trabalhos académicos nesta área do conhecimento. O achado recente em Weymouth (Dorset, Reino Unido) de uma vala com corpos de homens executados (1) abriu, por exemplo, novas luzes sobre os “vikings reais” (como descreve um dos press releases da exposição). O espólio achado no vale de York (com a ajuda de detetores de metais), e que corresponde ao maior achado viking desde 1840, está ali representado na íntegra, este conjunto de moedas, pulseiras e pratas sendo um exemplo da abordagem aos mais recentes trabalhos de arqueologia que a exposição traduz. Tematicamente arrumada numa sucessão de salas, a mostra tem como principais focos de atenção precisamente os achados arqueológicos, recorrendo a mapas, reconstituições e novas tecnologias ao serviço da imagem e da informação para, das peças, fazer nascer um discurso narrativo. A joia da coroa de Vikings: Life and Legend é um navio de guerra, o maior alguma vez encontrado, que domina a sala final do percurso expositivo

(1) Uma vala com 54 corpos decapitados (e 51 cabeças) foi encontrada em junho de 2009 no Ridgeway Hill em Dorset (Reino Unido), região costeira junto ao Canal da Mancha. Crê-se que sejam vikings, ali executados por anglo-saxões entre os anos 910 e 1030, depois de uma tentativa falhada de assalto por mar. Os indivíduos tinham na sua maioria idades inferiores ou à volta dos 25 anos, salvo um ou outro mais velho.

quinta-feira, novembro 28, 2013

Porque não deixamos de ir a Londres?


Hoje, na minha coluna semanal no site Dinheiro Vivo, falo do que hoje mais vale a pena ver quando estamos por Londres: as exposições (sim, os museus).

"Em tempos ia a Londres para comprar ver concertos e comprar discos. Sim, era no século passado, não havia internet, muitas digressões não nos visitavam nesses tempos, ainda o CD não tinha destronado o vinil (afinal para um reinado que não durou muito) e as edições levavam semanas a chegar cá (as que chegavam). Pelo caminho visitava as livrarias, os museus, as galerias, mais uma passagem rápida pelos trapinhos em Camden Town (hoje é mais para os lados de Covent Garden)... 25 anos depois (colocando a “casa” da partida em 1988) Londres deve ser das piores cidades que conheço para comprar discos. Tirando uma mão-cheia de resistentes (e são poucas as lojas ainda verdadeiramente capazes de justificar uma visita), a música gravada deixou de ser motivo para fazer as duas horas e pouco de avião para ir de malas vazias e voltar mais pesado. Ainda há livrarias (muitas e boas, e a “velha” Foyles soube renascer e brilhar novamente). Trapinhos não faltam também. E agora até há cafés por todo o lado, coisa que em tempos só se encontrava em modo “decente” nos restaurantes italianos da cidade. Mas esta é uma cidade que não deixou de nos seduzir. E mesmo numa era em que a Monocle dita “tops” que mostram como Zurique, Copenhaga, Helsínquia, Tóquio ou Melburne são destinos bem mais cool, e a oferta low cost (e também a “high cost”) alargou os horizontes aos viajantes, o que faz com que Londres não tenha desaparecido do mapa do nosso desejo em lá regressar? Os museus!"

Podem ler aqui o artigo completo.

segunda-feira, abril 08, 2013

Roy Lichtenstein para ver em Londres

Entre as exposições que fazem de Londres um destino obrigatório nos próximos tempos conta-se um olhar panorâmico sobre a obra de Roy Lichtenstein que podemos ver na Tate Modern. Este texto foi originalmente publicado na edição de 1 de abril do DN com o título ‘Quando Mickey e Donald entraram na história da pintura’. 

Há um pequeno livro sobre o pintor Roy Lichtenstein que se apresenta com o cativante título ‘How Modern Art Was Saved by Donald Duck’ [literalmente, ‘Como a arte moderna foi salva pelo Pato Donald’]... Quem não souber o porquê da utilização desta expressão na obra assinada por Alastair Sooke ficará sem dúvidas ao chegar à segunda das treze salas que compõem uma exposição retrospetiva sobre o pintor que está patente até 27 de maio na Tate Modern, em Londres.

Dominando uma das paredes, um óleo sobre tela de perto de 1,70 cm de lado por 1,21 de altura expande a uma dimensão invulgar o que parece um quadradinho de BD. Donald, de cana de pesca na mão, alerta Mickey: “apanhei um [pexie] grande”! As cores são primárias (azul, amarelo, vermelho), representando ‘Look Mickey’ (1961) o momento em que Lichtenstein encontrou um caminho (e uma linguagem). Conta a “mitologia” que esta, que foi a sua primeira obra pop, terá resultado do desafio de um dos filhos do pintor ao mostrar-lhe um livro de comics (há contudo quem aponte outras origens possíveis). O certo é que depois desta abordagem ao universo dos comics, a obra de Lichtenstein (então com 37 anos) ganhou um sentido e uma voz. E o que encontramos no restante percurso que podemos visitar na Tate Modern dá conta do impacte que este óleo de 1961 teve no definir dos caminhos que a obra do autor tomaria daí em diante.

Com o título ‘Litchtenstein: A Retrospective’, a exposição começa por nos dar conta das primeiras “pinceladas” de Lichtenstein, pelos caminhos do expressionismo abstracto ainda em plena década de 50. Diferentes das de Pollock, mais “controladas”, sugerindo contudo uma noção de rigor que as suas obras pop depois tomariam.


O percurso entre as salas, cronologicamente ordenado, encontra o momento ‘eureka’ perante ‘Look Mickey’ e mostra depois como, a partir dos anos 60, os mundos da BD, da publicidade e da imprensa passam a habitar o centro das atenções do pintor, criando um espaço algures para lá das fronteiras “tradicionais” da arte e os domínios da criação ao serviço do comércio. Lembra um dos textos nas paredes da exposição que o que Roland Barthes disse sobre a pop art se aplica particularmente bem à obra de Roy Lichtenstein, ao afirmar que “há duas vozes, como numa fuga. Uma diz ‘isto não é arte’; a outra diz, ao mesmo tempo, ‘eu sou a arte’”.

Caminhamos depois entre representações a preto e branco de objetos funcionais. Mergulhamos – na maior das salas da exposição – numa série de obras centradas nas temáticas do romance e da guerra (e entre elas algumas das mais célebres do pintor). Descobrimos depois algumas das suas (magníficas) paisagens marinhas e de pôr do sol, expressões escultóricas de um gosto pela art déco, reflexões sobre a própria arte (há citações a Matisse, a Picasso, a Monet). Passamos entre uma galeria dos seus “espelhos” pop. Contemplamos quadros da série ‘Perfect/Imperfect’ que resultam da condução de uma linha que nunca é interrompida. E, da fase tardia, podemos ver alguns nús, novas “pinceladas” e placidez das paisagens chinesas que encerram o percurso. A familiaridade que parte das fontes que o inspiraram acaba, afinal, por servir de cartão de visita a uma obra que, longe de unânime, representa uma expressão maior do diálogo entre cultura popular e a chamada ‘alta cultura’. No final podemos falar apenas de cultura.


A obra de Roy Lichtenstein (1923-1997) sempre dividiu opiniões. A partir de 1961 encontrou um caminho, tomando como principal fonte de inspiração (e reflexão) o universo da banda desenhada, a publicidade e as imagens criadas para a cultura de massas. E desde logo houve quem o aclamasse como uma voz maior no panorama da arte do seu tempo, mas também quem revelasse manifestações de repulsa.

Sem conhecer o trabalho que Andy Warhol estava já a desenvolver (com o tempo ambos apresentariam exposições na mesma galeria em Nova Iorque), Roy Lichtenstein acabaria por ser outra das forças maiores da ‘pop art’ e a exposição que a Tate Modern apresenta (e que corresponde à primeira grande mostra panorâmica da sua obra desde a morte do artista em 1997) dá sobretudo conta da descoberta e aprofundar de uma linguagem muito pessoal que soube também integrar elementos e referencias da história da pintura, não só através de nomes que cita, mas pelo revisitar de “espaços” com tradição no universo das artes plásticas como a pintura de paisagens, a representação do seu próprio atelier ou o estudo de nus.

A obra de Lichtenstein reflete frequentemente uma abordagem pessoal a imagens já existentes. É por isso interessante a forma como, nesta exposição, algumas dessas referencias e pontos de partida estarem representadas, concedendo ao visitante espaço para reconhecer como se manifesta o pintor perante o estímulo que desperta a obra.

quinta-feira, março 28, 2013

Crónica do fim de uma era

Foi há poucos dias. Entrei como tantas vezes o fiz pela grande porta que se abre para a sempre movimentada Ofxord St. Havia um cartaz a chamar a atenção do lançamento do novo álbum de Justin Timberlake, som vindo lá de dentro, os escaparates à entrada mostravam os quadradinhos de cor que, ainda à distância, sugeriam que os discos ainda respiravam por ali... Porém, bastou entrar na velha e grande loja central da HMV para sentir o efeito das notícias que, desde finais de 2012, dão conta do estado calamitoso a que chegara a saúde desta outrora grande rede de lojas e da cada vez mais improvável vontade de algum investidor em manter vivo naqueles espaços um negocio na área da música e do cinema.

Reparei desde logo no estado de dieta revelado pela grande parede lateral direita da loja, onde sempre me habituara a ver as novidades editoriais da semana, nestes últimos anos com os lançamentos em vinil a fazer até recordar algum do look da loja que conheci ainda nos anos 80. Desci ao piso inferior, para visitar aquela que, desde o encerramento da Tower Records em Picadilly, se tornara na maior e mais bem recheada secção de música clássica da cidade. Aí o panorama descia de dieta a semi-deserto, com bem mais de metade das prateleiras já despidas de discos, os poucos que restavam concentrados nos corredores centrais. No balcão o único empregado presente olhava em frente para os três clientes em busca de pechinchas em tempo de liquidação de stock. No seu olhar aquela inquietude de quem sabe que observa um corpo moribundo.

Pelo resto daquele andar, grandes caixas com discos empilhados à espera de quem os levasse e mais filas e filas de prateleiras (onde em tempos havia bandas sonoras, musicais, world music e jazz) a caminho de vazias. Regressei ao piso térreo para caminhar entre as filas de CD onde habitualmente encontrava de quase tudo o que havia para encontrar em regime pop/rock para reparar, agora ao pormenor, que também ali a coisa seguia pelo mesmo caminho. O vinil lá estava, finalmente, a ocupar um pedaço destas estantes, e já em seleção que, de tão escolhida, quase não interessava a ninguém. Saí de mãos a abanar. Atordoado. E com a sensação de que visitara um mausoléu que representa, certamente por poucas semanas mais, a imagem “viva” de uma era que acabou.

Lembro-me de ir a Londres com o percurso entre lojas de discos como sendo capaz de ocupar dois dias inteiros (e estava a ser despachado). Além das grandes lojas de Oxford Street (a da Virgin, logo na esquina com a Tottenham Court Rd e a da HMV, perto de Oxford Circus, sem esquecer outras duas, das mesmas redes, mais adiante, perto de Marble Arch) e da Tower em Picadilly, tinha uma via “sacra” de quase porta sim porta sim na Berwick St (em pleno Soho), onde havia até lojas só de singles, apenas de máxis para DJ, especializadas em reggae, dub e dancehall, e, claro, a mítica Sister Ray (para colecionadores) onde fui encontrando os singles das bandas que me ajudaram a construir o gosto musical entre finais dos setentas e inícios dos oitentas. Havia Camden Town, da Rhythm Records perto da saída do metro a outras pequenas lojas (e stands de pechinchas no mercado). E havia mais, muito mais, acabando inevitavelmente por regressar a Lisboa com gordinhos sacos na mão cheios de álbuns e singles, os “troféus” das poupanças dos meses anteriores...

Este mês, na mesma ocasião em que passei pela HMV de Ofxord St visitei as lojas de discos usados em Notting Hill Gate para também ali reparar que o que antes era uma sucessão de casas especializadas (havia uma só para clássica, uma para pop/rock, uma para música “urbana”, uma para filmes) está agora compactada em apenas duas, géneros e discos acotovelados e, depois de sujos os dedos e corridas algumas prateleiras, na verdade sem nada de surpreendente por ali.

Restou-me, estando nas redondezas, passar pela Rough Trade de Porobello Road (na verdade é numa pequena transversal. De lá regressei com um saco e dois LPs... Como que não querendo deixar de respeitar uma velha tradição em tempo de passagem por Londres.


PS. Os tempos mudaram. A era das grandes lojas acabou, o mercado maior tendo caminhado para a música digital ou para a encomenda de suportes físicos pela Internet. Nos países nórdicos emergiram novas lojas, especializadas, que apostam sobretudo no vinil e na criação de eventos. Em Lisboa há já um circuito expressivo de pequenas lojas (que cruzam novidades e usados). Mas Londres, que era a capital europeia para os compradores de discos, ainda não deu o salto para esta nova era...

Pompeia e Herculano moram em Londres

Pompeia e Herculano. As duas cidades foram apagadas do mapa em apenas um dia, na sequência da erupção explosiva do Vesúvio a 24 de agosto do ano 79. Durante séculos viveram soterradas pelos materiais ejetados pelo vulcão. Reencontradas no século XVIII deram-nos duas das mais importantes fontes de conhecimento dobre a vida quotidiana na Roma imperial. Agora, memórias destas duas cidades (com um foco muito particular nas questões do dia a dia dos seus cidadãos) habitam durante os próximos meses algumas salas do Museu Britânico, em Londres, numa exposição que promete (tal como a dedicada a Bowie no Victoria & Albert, na mesma cidade), ser um pólo de atenção para os muitos que visitarem a cidade entre a Primavera e o Verão.

terça-feira, março 26, 2013

David Bowie é... uma exposição

Fotos: Victoria & Albert Museum

Inaugurou este domingo em Londres a exposição ‘David Bowie Is’, uma mostra ampla, completa e rigorosa sobre o músico, a sua obra, as influências, o processo criativo e o seu impacte na sociedade. Este texto, que resultou de uma visita pessoal à exposição, foi publicado na edição de 23 de março do DN com o título ‘Afinal Quem É David Bowie?’.

David Bowie é uma imagem do futuro... David Bowie usa muitas máscaras... David Bowie aproveita o que o momento lhe oferece... David Bowie é outra pessoa... É com frases como esta, que tentam completar a frase que nos acolhe à entrada, onde se lê “David Bowie is” que a magnífica e grandiosa exposição que hoje abre as portas no Victoria & Albert Museum acompanha o percurso artístico de uma das figuras mais marcantes, influentes, transversais e globalmente reconhecidas da história da cultura popular. Podemos mesmo dizer da cultura (e ponto final).

‘Bowie Is’ propõe um retrato do artista, das suas influências, das épocas que atravessou, da obra que tem vindo a construir entra a música e as imagens, assim como o seu impacto nas mais diversas esferas da arte e na sociedade, através de uma longa sequência de salas, com miais de três centenas de objetos pessoais (letras, notas manuscritas, instrumentos musicais, discos), provas de contacto, fotografias e cartazes, fatos usados em sessões fotográficas, telediscos e concertos, com ecrãs vídeo aqui e ali e um acompanhamento permanente (com áudio) através dos auscultadores que nos são entregues à entrada.

Mas comecemos pelo principio. É com o icónico fato negro, de formas grandes e arredondadas, que Kensai Yamamoto criou em 1973 para a Aladdin Sane Tour que entramos no espaço que nos convida a descobrir o universo de Bowie. Numa percurso que cruza épocas e avança no tempo, aqui e ali propondo contudo alguns flashbacks, somos levados a redescobrir os seus primeiros passos. Sob o lema ‘David Bowie é um rosto entre uma multidão’ recordamos uma etapa de tentativas sem sucesso que precederam Space Oddity, ainda longe de encontrada uma linguagem e uma personalidade. Estão ali fotos do seu primeiro grupo (os Kon-Rads), vemos a carta na qual, mais tarde, o manager explica que o músico se passa a chamar David Bowie [David Jones é o seu nome real], vemos os seus primeiros discos, pautas das primeiras canções. Ao som de Space Oddity (1969) encontramos ideias que o estimularam (cartazes do 2001 de Kubrick, imagens de Chelsea Girls de Warhol e Paul Morrissey)... “David Bowie é um astronauta num espaço interior”, lemos na parede, ouvindo Life on Mars? (1971) vendo letras manuscritas de canções como Starman ou Five Years, mais adiante as de Fame ou Scary Monsters, pinturas de nomes que marcaram (como Wittgenstein In New York, de Eduardo Paolozzi), imagens de figuras que estimularam ideias (Oscar Wilde, William Burroughs, entre outros)...

Pelas salas da exposição vamos encontrando roupas usadas nos concertos das suas várias digressões, entre elas a Ziggy Stardust Tour, a Serious Moonlight dos oitentas ou a Sound + Vision que nos visitou em 1990. Há também criações que passaram por atuações televisivas, como o “fato” que levou ao SNL, quando se fez acompanhar por Klaus Nomi e Joey Arias (com um vídeo a recordar o momento). E outras que vimos em telediscos, como Life on Mars?, Ashes To Ashes ou Blue Jean. Ou ainda as que usou em capas de discos, como o casaco com a Union Jack que Alexandre McQueen criou para Earthling (1997).

Todas as capas dos álbuns estão representadas, algumas com os respetivos estudos e esboços (como em Diamond Dogs ou Heroes, neste caso com um desenho do próprio Bowie, e até mesmo a do recente The Next Day). Há pinturas de sua autoria. Instrumentos como um sintetizador AKS de 1974 ou a guitarra que o acompanhou na Reality Tour, de 2003 e 2004. Maquetes de palcos. Fotos dos filmes em que participou. E expressões claras da sua influência sobre outros. E, no fundo sobre todos nós.
Perto do fim, a frase orewliana ‘David Bowie is Watching you’ sublinha essa ideia de ligação ao outro. Não apenas aquele que o influencia, mas também os que depois recebem o seu trabalho. No fundo, acabamos todos por ter um papel entre as consequências da obra de Bowie. A exposição acaba sem fechar a frase ‘David Bowie is’... Mas deixa claro que cada um de nós poderá, afinal, ter uma resposta.
                                        

“Ele é um ícone e a forma como se esconde torna-o ainda mais atrativo”, comentou o diretor do museu, Martin Roth, na apresentação à imprensa que decorreu esta quarta-feira, reconhecendo o sucesso que a procura de bilhetes está a conhecer (estavam vendidos 50 mil nessa manhã, mais oito mil que na véspera). Por seu lado Victoria Broackes, uma das curadoras de ‘David Bowie Is’ justificou a vontade de criar uma exposição com um título em aberto, “porque não há uma só resposta”, disse. Recordou então que começaram a preparar a exposição há cerca de dois anos, contando com o total apoio dos arquivos de Bowie, tanto que estão expostas mais de 300 peças pessoais, muitas delas nunca antes mostradas publicamente. Interessada em compreender “como trabalha um artista”, procurou representar nesta exposição os espaços “da inspiração, o processo criativo e o impacto de uma obra”, tentando ainda integrar “o som e a imagem como parte da história” que ali se conta. 

Ninguém no Victoria & Albert sabia do álbum que Bowie foi criando ao longo destes mesmos dois últimos anos e que agora está no número um em 12 países (entre os quais Portugal). Martin Roth acrescentou que “Bowie ainda não está aqui e não sabemos se virá num destes dias”... Talvez no dia seguinte), gracejou (referindo o título do novo disco).

sexta-feira, março 30, 2012

Quem inspirava Turner?


A pequena sequência de salas que encontramos no piso inferior da Sainsbury Wing, da londrina National Gallery, dedica neste momento a sua atenção à obra de Turner. Mas sob um prisma diferente, colocando-o lado a lado com uma das suas referencias fulcrais: Claude.


De nome completo Claude Lorrain (1600-1680), o pintor francês foi reconhecido como o mais bem sucedido dos paisagistas do seu tempo, a sua obra estando representada em algumas das maiores coleções particulares da altura. Vivia-se uma época anterior à criação dos museus e era entre essas coleções que muitas vezes os jovens pintores tinham acesso a mestres de outros tempos. Foi numa coleção particular que Turner descobriu Claude. E a exposição deixa claro como os estudos que fez sobre algumas das suas obras se afirmaria marcante na definição de uma linguagem, sobretudo mais evidente na primeira etapa da sua carreira. Na imagem vemos uma paisagem romana pintada por volta de 1644/45 por Claude que está exposta na National Gallery, sob empréstimo da coleção particular de Isabel II.


Nesta sequência de imagens vemos três das obras de Joseph Mallord William Turner (1775 – 18 51) que podemos encontrar nesta exposição. São elas Modern Italy – The Pifferari, de 1851, Caernarvon Castle, de 1799 e Venice – The Canal Towards Fusina at Sunset, de 1819. Sob o título Turner Inspired, estas obras estarão ali patentes até 5 de junho.

quinta-feira, março 29, 2012

A paisagem, segundo David Hockney

Foto N.G.


Entre as grandes exposições a não perder numa visita a Londres por estes dias conta-se a magnífica coleção de paisagens rurais que David Hockney tem neste momento expostas na Royal Academy Of Arts. Nas suas semanas finais (a exposição encerra dia 9 de abril), A Bigger Picture centra as suas atenções numa relação de mais de 50 anos do pintor com as paisagens. Mas foca as atenções numa série de olhares recentes, sobretudo em espaço rural britânico, apresentando uma série de quadros de grandes dimensões (alguns resultando mesmo de composições com mais que uma tela) onde o olhar capta a intensidade da luz e das cores dos espaços que visitou. A exposição inclui ainda alguns trabalhos recentes em vídeo (que podemos ver na última sala) e ainda uma série de criações recentes desenhadas com um iPad (depois impressas em telas de grandes dimensões).


Imagens de três das obras de David Houckeny expostas na Royal Academy Of Arts.

sexta-feira, maio 27, 2011

Escultura no tempo presente


A Saatchi Gallery, em Londres, tem-se afirmado nos últimos anos como um dos mais atentos e interventivos dos espaços dedicados à arte contemporânea em solo europeu. Neste momento está ali patente uma exposição que permite fazer um retrato sobre as tendências actuais nos universos da escultura. Com o título The Shape Of Things To Come (nome que pisca o olho a um romance de H.G. Wells que William Cameron Menzies adaptou ao cinema), a exposição inaugura hoje e estará ali patente até 16 de Outubro.


O post abre com Brick Lane Xerox, obra de 2003 de David Bachelor. O trio de imagens que se segue passa por Beethoven Trumpet (2007) de John Balessadri, Seht der Menschen (2007) de Folkert de Jong e Coppert Sulphate Chartres e Copper Sulphate Notre Dame (1996) de Roger Hirons.

Mais informação sobre esta exposição aqui.

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Uma passadeira "protegida"


A “zebra” em frente aos estúdios Abbey Road (em Abbey Road, em Londres, portanto), que os Beatles imortalizaram na capa do álbum a que deram, em 1969, o nome do estúdio, foi declarada património pelo governo britânico (na categoria “2”). O reconhecimento aponta àquele local de recorrente visita por admiradores dos fab four (e não só) algumas características que permitem a sua preservação. É a primeira vez que uma passadeira na rua conhece semelhante distinção...

sexta-feira, julho 02, 2010

Reino Unido, século XXI (5)

Mais um breve pecurso através das salas da exposição Newspeak: British Art Now, que estará patente até finais de Outubro na londrina Saatchi Gallery. Na primeira imagem vê-se a instalação sem título de John Wynn (criada em 2009) que ocupa uma das salas do piso intermédio do museu. São 300 colunas de som, ligadas, emitindo constantemente sons pouco acima do limiar do silêncio.


A sequência de três imagem mostra depois exemplos de reencontro com uma lógica figurativa. Por esta ordem vemos Sámi Couple (2008), de Sigrid Holmwood, True Peace Will Prevail Under The Rule (2004), de Ged Quinn e Group Series No. 2 – Space Program (2008), de Jonathan Wateridge.

Mais imagens e informação sobre a exposição aqui

quinta-feira, julho 01, 2010

Reino Unido, século XXI (4)


E continuamos a fazer um pecurso através das salas da exposição Newspeak: British Art Now, que estará patente até finais de Outubro na londrina Saatchi Gallery.

A sequência de três imagem mostra, por esta ordem, The Shipwreck (2008) de William Daniels, Drawing Room Study 4 (2008) de Robert Fry e Hung Out (2005) de Dan Perfect.

Mais imagens e informação sobre a exposição aqui

quarta-feira, junho 30, 2010

Reino Unido, século XXI (3)

Ainda num pecurso pelas salas da exposição Newspeak: British Art Now, patente até finais de Outubro na londrina Saatchi Gallery, olhamos hoje, em primeiro lugar, para She Gets Even Happier (2008), de Clunie Reid.


A sequência de três imagem mostra, por esta ordem, Mondrian (lápis sobre papel, de 2006) de Alan Brooks, Lacuna (2010) de Nick Goss e Untiteled (2008) de Tasha Amini.

Mais imagens e informação sobre a exposição aqui

terça-feira, junho 29, 2010

Reino Unido, século XXI (2)

Continuando a visitar as salas da exposição Newspeak: British Art Now, patente até finais de Outubro na londrina Saatchi Gallery, passamos hoje frente a uma série de obras assinadas por Hurvin Anderson, pintor nascido em 1965 que vive e trabalha em Londres.


Na sequência de três imagens vemos, em sequência, Untiteled (Beach Scene), de 2003, Afrosheen e Peter’s Sitters 3, estes dois últimos datados de 2009.

Mais imagens e informação sobre a exposição aqui.