sexta-feira, setembro 29, 2023

A herança de Erwin Olaf

Uma imagem da série Keyhole (2011-2013)

Faleceu aos 64 anos: Erwin Olaf, um gigante da fotografia europeia, expôs muitas formas de solidão dos seres humanos, sempre com tocante serenidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 setembro).

O fotógrafo holandês Erwin Olaf morreu no dia 20 de setembro, na cidade de Groningen. Sofria de enfisema pulmonar, detectado em 1996, não tendo resistido às complicações decorrentes da transplantação de um pulmão, realizada há poucas semanas. Muito cedo, a gravidade da sua condição levara os médicos a considerar que dificilmente chegaria aos 60 anos de idade — na verdade, resistiu um pouco mais, tendo falecido com 64 anos.
Nas derradeiras imagens de Olaf num acto público, vêmo-lo com um sistema de inaladores para auxiliar a respiração. Foram obtidas no passado dia 23 de março, no Palácio Noordeinde, em Haia, na cerimónia em que o Rei Willem-Alexander o condecorou com a Medalha de Honra das Artes e Ciências da Ordem da Casa de Orange. Aliás, em 2013, Olaf concebera o design de uma moeda de um euro com a imagem do rei, tendo também assinado, em 2018, um notável portfolio de retratos oficiais da família real holandesa.
Sua Majestade Rainha Máxima
(Março 2018)

É provável que, por vezes, esta dimensão oficial do trabalho de Olaf tenha contribuído para uma menor atenção às singularidades do seu universo fotográfico, incluindo os breves complementos filmados que ia registando, como aconteceu nas séries Separation (2003) ou Shangai (2017) — tudo isso pode ser descoberto no seu site oficial. Além do mais, sendo ele um activista dos direitos LGBT — veja-se a prodigiosa série de auto-retratos, realizados entre 1985 e 2015 —, Olaf terá sido também rotulado como mais um artista “militante”, diluindo-se na “mensagem” da obra a precisão com que nela encontramos uma questão fulcral da iconografia contemporânea. A saber: qual o lugar do corpo — apetece dizer: da carnalidade do corpo — numa paisagem cada vez mais pontuada por artifícios digitais?
Entenda-se: a herança de Olaf não envolve qualquer conceito “purista” da imagem, já que ele nunca renegou as potencialidades criativas da manipulação digital. Lembremos as distorções dos rostos na série Le Dernier Cri (2006), com destaque para o retrato de uma modelo, quase sósia da Princesa Diana, em Royal Blood (2000): numa pose serena, olhando directamente para a câmara, a personagem surge salpicada de sangue devido a uma ferida, no braço esquerdo, provocada por um círculo metálico (que sugere o emblema dos automóveis Mercedes).
Royal Blood: Di, †1999

A maior parte das suas fotografias, sobretudo as que integram figuras humanas (e são quase todas…), resistem a qualquer ilusão naturalista, antes expondo e, num certo sentido, sublinhando a teatralidade da respectiva encenação. Algumas das suas séries integram mesmo memórias que nos remetem para referências muito específicas. Será o caso do elaborado “expressionismo” da série intitulada Berlin (2012), ou ainda de Palm Springs (2018), dir-se-ia uma celebração do espírito comunitário de cenários emblemáticos da Califórnia contaminada por uma sofisticada contradição emocional. Porquê? Porque em todas aquelas personagens há uma postura de radical solidão. A singeleza dessa solidão é também especialmente evidente nos nus de Skin Deep (2015), lembrando, se tal é possível, ou explicável, algumas pinturas do britânico, nascido em Berlim, Lucian Freud (1922-2011).
Embora correndo os riscos de algum esquematismo, talvez se possa considerar que os retratos de Olaf não são estranhos a toda uma herança multifacetada da pintura holandesa. Não porque ele pretenda “copiar” quadros dos respectivos mestres, antes porque entre os humanos retratados e os cenários em que os descobrimos parece haver um misto de tolerância e alheamento contrário a qualquer racionalização sociológica: as personagens são livres, mesmo quando os cenários definem os limites insuperáveis da sua própria condição histórica. Assim, por exemplo, as séries Grief (2007) e Waiting (2014). Como os títulos indicam, são imagens de luto e espera, respectivamente: tudo se passa como se a austera geometria dos cenários apenas pudesse acolher as vibrações indizíveis que sentimos, e pressentimos, na austeridade das poses humanas.
Expressão sublime disso mesmo será a série Keyhole (2011-2013), ou seja, à letra, “buraco de fechadura”. Em boa verdade, não há “voyeurismo”, muito menos choque ou escândalo. São crianças solitárias, quase sempre escondendo o rosto da câmara, preservando os enigmas de uma solidão, talvez triste, mas de contagiante harmonia. Para Olaf, tanto na contenção destas poses como na contundência dos nus, a fotografia existe, em última análise, como mensageira de um valor cada vez menos respeitado nas nossas sociedades viciadas em “comunicação”. É um valor que se diz através de uma palavra ancestral: pudor.
Da série Keyhole (2011-2013)

quinta-feira, setembro 28, 2023

Rolling Stones + Lady Gaga

[ Billboard, 16 dez. 2012 ]

Canção do ano? Depois de Angry, aí está Sweet Sounds of Heaven, mais um tema de Hackney Diamonds, o novo álbum dos Rolling Stones, com lançamento marcado para 20 de outubro — um prodígio rock'n'roll, com o seu quê de gospel, nas vozes de Mick Jagger e Lady Gaga, com Stevie Wonder ao piano.

Paul Verlaine lido por Patti Smith

Patti Smith publica esta foto no seu site, intitulando-a "Outono em Berlim". Serve de imagem para um post sobre a continuação das suas viagens, depois da morte de Cairo, a sua gata que viveu quase 22 anos.
Sempre marcada pela herança literária e moral da poesia de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, Patti Smith partilha connosco uma tradução de um poema de Verlaine, lido por ela própria — aqui fica também o original.

Chanson d'automne

Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l’heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure

Et je m’en vais
Au vent mauvais
Qui m’emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.

* * * * *

* Paul Verlaine e Arthur Rimbaud [ France Culture ].

quarta-feira, setembro 27, 2023

Nina Simone: Newport, 1966

A lendária performance de Nina Simone no Festival de Jazz de Newport de 1966 (sábado, 2 de julho) é um registo tão mítico quanto pouco conhecido... É ou era: o lançamento desse registo com o título You've Got to Learn vem contrariar as fragilidades da memória, sendo, por certo, uma edição fundamental deste ano de 2023.
Do tema-título (versão de Il Faut Savoir, de Charles Aznavour) ao clássico Music for Lovers, de Bart Howard, passando pela revisitação de Porgy and Bess, podemos reconhecer nestas canções a dinâmica de um património que se enriquece em cada nova revisitação, sem esquecer também que, naquele verão, se sentiam em Newport — e por toda a sociedade americana — as marcas emocionais de um contexto agitado de luta pelos direitos civis: as marchas de Selma para Montgomery tinham ocorrido em março de 1965.
Nesta perspectiva, a voz de Nina Simone é a mensageira de uma energia colectiva em que cada indivíduo, cada consciência, pode contemplar a solidão inerente à sua pertença. No palco de Newport, ela cantou assim I Loves You Porgy, tema emblemático que, em 1959, integrara o alinhamento do seu primeiro álbum, Little Girl Blue.

Ted K - O Unabomber
ou o pesadelo do bom selvagem

Sharlto Copley no papel de Ted Kaczynski:
entre a utopia e o crime

O filme Ted K - O Unabomber, de Tony Stone, retrata a saga de Ted Kaczynski, um eremita que combateu os avanços da tecnologia através de vários actos terroristas perpetrados entre 1978 e 1995: é um exemplo invulgar do melhor cinema independente dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 setembro).

Tony Stone
Num contexto mediático em que proliferam os filmes “baseados em factos verídicos”, qualquer aproximação de um desses filmes corre o risco de ficar bloqueada no realismo pueril do jornalismo mais sensacionalista: “sim, foi exactamente assim que aconteceu” ou “não, os factos foram abusivamente dramatizados”… Ted K - O Unabomber, de Tony Stone, é um desses filmes, por certo dos mais perturbantes, quanto mais não seja pela identidade da sua personagem central: Ted Kaczynski (1942-2023), terrorista doméstico rotulado de “Unabomber” que, entre 1978 e 1995, assombrou os EUA com uma série de atentados, quase sempre perpetrados através de bombas enviadas pelo correio, de que resultaram três mortos e mais de duas dezenas de feridos.
Lembremos, por isso, uma verdade rudimentar da história do cinema, hoje em dia minimizada pela selvajaria cognitiva que o Big Brother e, de um modo geral, a Reality TV impôs no nosso quotidiano: nenhum filme (como nenhum “conteúdo” televisivo) existe como mera “transcrição” de algo que aconteceu. Dito de outro modo: mesmo no interior das mais didácticas formas de realismo — lembremos a herança modelar do mestre italiano Roberto Rossellini (1906-1977) —, filmar é escolher matérias, organizar narrativas, construir pontos de vista, numa palavra, dramatizar.
O caso de Kaczynski afigurava-se tanto mais complexo e intrigante quanto a sua identidade, sobretudo a sua história antes dos atentados, estava longe de ser uma matéria muito documentada. Com uma excepção: o seu manifesto Industrial Society and its Future, escrito em 1995, que Kaczynski “ofereceu” ao jornal The Washington Post, garantindo que, depois da sua publicação, abandonaria a actividade terrorista.

Que utopia?

A publicação do manifesto aconteceu, de facto, e seria a “chave” para a sua prisão. Kaczynski vivia, desde 1971, como um eremita, numa zona florestal de Lincoln, no estado de Montana, falando esporadicamente, via telefone, com o irmão David Kaczynski (n. 1949); ao tomar conhecimento do texto, David reconheceu a escrita e as ideias de Ted, acabando por fornecer ao FBI as pistas que permitiram a sua captura a 3 de abril de 1996. Condenado a prisão perpétua, foi encontrado morto na sua cela há pouco mais de três meses, a 10 de junho, tendo os serviços prisionais considerado a sua morte um acto suicida — sofria de cancro terminal e contava 81 anos.
Como transformar “isto” num filme? Tony Stone, realizador da área independente norte-americana, terá pressentido na tragédia de Ted Kaczynski as marcas de uma nostalgia da natureza como elemento primordial de uma utopia que resiste aos avanços da tecnologia. Aliás, o tema está também presente no documentário que Stone realizou em 2016, Peter and the Farm, sobre o proprietário de uma quinta, no estado de Vermont, que se define como uma espécie de derradeiro agricultor empenhado na gestão das suas ovelhas e vacas sem ferir o equilíbrio dos elementos naturais… Com uma diferença que, obviamente, está longe de ser banal: Kaczynski mata pessoas para proclamar os seus ideais.
Daí o bizarro visual de Kaczynsci, tal como filmado por Stone em Ted K - O Unabomber. Por um lado, há nele qualquer coisa que o aproxima das figuras erráticas que povoam o cinema de Hollywood depois do período clássico, enfrentando a “selva urbana” em filmes como O Cowboy da Meia-Noite (1969), de John Schlesinger; por outro lado, a sua solidão radical remete-nos para a memória dos pioneiros de alguns “westerns” modernos, incluindo a personagem de Jeremiah Johnson interpretada por Robert Redford em As Brancas Montanhas da Morte (1972), de Sydney Pollack. Dir-se-ia que o seu sonho se propaga enquanto pesadelo, reduzindo a zero as ilusões redentoras de um qualquer bom selvagem.

Tecnologia e liberdade

O manifesto de Ted Kaczynsci tinha tanto de esquemático como de inequívoco: “A tecnologia moderna é a pior coisa que aconteceu ao mundo. Promover o seu progresso é nada menos que criminoso.” Aliás, a lógica da sua saga “purificadora” está bem expressa na sequência em que descobre, com ambígua curiosidade, o “progresso” que lhe é oferecido pela novidade dos computadores. Ao mesmo tempo, ele é o primeiro a ter consciência do individualismo fechado do seu discurso, reconhecendo que muitos sentirão repulsa face aos seus crimes e à “liberdade” que, na sua perspectiva, tais crimes procuram defender. A ponto de considerar que os “inimigos da liberdade” poderão usar os seus actos terroristas como “argumento para justificar o seu controle do comportamento humano”.
Elemento fundamental para o invulgar poder dramático de Ted K - O Unabomber é a composição de Sharlto Copley, também um dos produtores do filme, na personagem de Kaczynski. Vêmo-lo como paciente artesão de uma vivência de sistemática exclusão de qualquer contacto humano, ao mesmo tempo reflectindo um mal-estar que, apesar do seu delírio vingativo, é transversal a toda a sociedade. Por tudo isso, este é um filme realmente invulgar (e realmente independente) no actual panorama da produção dos EUA — foi revelado há mais de dois anos, no Festival de Berlim de 2021, mas apesar de tudo chegou às salas portuguesas.

terça-feira, setembro 26, 2023

[ideias] Literacia visual

[ The Criterion Collection ]

Que mostra um filme? Não poucas vezes, por distração ou ignorância, a pergunta recalca outra: como é que um filme mostra aquilo que mostra?
Neste depoimento para a Edutopia (fundação para a educação, online, de que George Lucas foi um dos fundadores), Martin Scorsese lembra o facto de não haver reprodução de uma qualquer realidade, mas produção de imagens dessa realidade. Daí a importância de espectadores que conheçam, e desejem conhecer, as especificidades das linguagens dos filmes — literacia, portanto, agora em termos visuais.
 

segunda-feira, setembro 25, 2023

[ideias] Sexo e género


Eis uma boa ideia para, aqui no Sound+Vision, começar uma secção sobre... ideias.
A saber: ver e escutar uma reflexão de Judith Butler no canal Big Think do YouTube. À partida, estão em jogo as noções de sexo e género, centrais no seu trabalho e, em particular, nos seus dois livros mais famosos: Problemas de Género e Corpos que Contam. Ou como as palavras, porventura sem sexo, instauram géneros de pensamento — são 13 minutos fascinantes, além do mais conscientes do meio de comunicação em que, com invulgar agilidade, sabem integrar-se.
 

terça-feira, setembro 19, 2023

Jorja Smith, Opus 2

Está quase a chegar (29 set.) o segundo álbum de originais da britânica Jorja Smith, por certo fiel às suas raízex R&B, num registo cuja depuração não renega uma sensibilidade serenamente pop — chama-se Falling or Flying e este é o tema-título.

sábado, setembro 16, 2023

Kevin Spacey nunca existiu

Kevin Spacey e Jeff Goldblum
Speed-the-Plow em Londres (2008), no palco do Old Vic

Nas redes a que chamam “sociais” reina a obscenidade: um acusado é automaticamente tratado como culpado — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 setembro).

Revejo Kevin Spacey e Jeff Goldblum numa imagem tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante, a ponto de ter adquirido qualquer coisa de surreal. Para mim, começa por transportar uma memória de 2008, tecida de admiração e fascínio: a descoberta da representação, em Londres, no palco do Old Vic, de Speed-the-Plow, a peça de David Mamet, encenada por Matthew Warchus, sobre três personagens dos bastidores de Hollywood (na altura, Spacey era director artístico do Old Vic). A sua estreia acontecera em 1988, em Nova Iorque, com interpretações de Joe Mantegna, Ron Silver e Madonna.
Com esplendorosa ironia e crueldade, Kevin Spacey e Jeff Goldblum interpretavam dois produtores cinematográficos. Sagazes e oportunistas, discutem estratégias que reforçavam a implacável visão de Hollywood que, em diversos livros, ensaios e entrevistas, Mamet sempre exprimira, escalpelizando as zonas mais obscuras de uma indústria a que, para todos os efeitos, também pertence através de uma filmografia de invulgar brilhantismo — incluindo alguns títulos mais “ligeiros” que parecem existir apenas como projectos banalmente comerciais, como é o caso de Spartan - O Rapto (2004).
Ao lado das personagens de Spacey e Goldblum está uma secretária não tão estúpida como o cliché dramático que serve de motor ao seu aparecimento no interior da peça. Era interpretada pela talentosa Laura Michelle Kelly, actriz mais conhecida através do teatro musical (incluindo My Fair Lady, em 2003) que surgira, um ano antes, na versão cinematográfica de Sweeney Todd, realizada por Tim Burton. Na primeira representação londrina de Speed-the-Plow, em 1989, essa personagem fora interpretada por Rebecca Pidgeon, casada com Mamet desde 1991.
Na altura, Spacey era, por certo, um dos actores mais populares em todo o mundo, em particular através dos filmes que lhe tinham valido Oscars: Os Suspeitos do Costume (1995), de Bryan Singer, e Beleza Americana (1999), de Sam Mendes, respectivamente como intérprete secundário e principal. Nove anos mais tarde, isto é, a partir de 2017, seria alvo de várias acusações de abuso sexual, com consequências directas no seu trabalho, incluindo a decisão da Netflix de o afastar da temporada final da série House of Cards (2013-2018). Em dois julgamentos, viria a ser ilibado dessas acusações: primeiro em Nova Iorque, em 2022, depois em Londres, há pouco mais de um mês.
O surreal de tudo isto envolve a obscena desproporção entre os múltiplos julgamentos públicos a que Spacey foi sujeito na Internet (e também em alguns meios de comunicação, sobretudo de língua inglesa) e a virginal contenção com que, na maioria dos casos, foi noticiado o facto de os tribunais o terem reconhecido como inocente. São dados reveladores das nossas misérias civilizacionais, em grande parte geradas, consumadas e multiplicadas pela democracia da estupidez que comanda a lógica quotidiana das redes (ditas) sociais.
Como noutros exemplos de histeria purificadora, por vezes vergonhosamente empolada pela baixeza moral de algumas formas de jornalismo, a perversidade de tudo isto é clara no caso de Spacey. Assim, basta uma acusação pública (e publicitada) para que qualquer presunção de inocência (ou mesmo a simples avaliação da coerência ou da consistência das acusações) seja anulada. Com que consequências? O espaço mediático passa a ser dominado por discursos de difamação e ódio contra alguém inapelavelmente tratado como culpado, sem direito a qualquer tipo de recurso.
Perante o discreto peso de muitas notícias sobre a conclusão do mais recente julgamento, tudo se passa como se Kevin Spacey nunca tivesse existido, a não ser como marioneta de um conceito de justiça legitimado (entenda-se: que se auto-legitima) através do ruído “social” que consegue promover com assustadora facilidade. Por uma ironia muito amarga, a peça de Mamet é (também) um texto admirável sobre a violência moral do imaginário machista.
Convém, por isso, não reduzir a uma caricatura o facto de, agora, muitas vozes que se exprimem (?) nos canais “sociais” — ou em caixas de “opinião” de alguns jornais — encararem o encerramento legal do caso como uma impostura: afinal, proclamam esses cidadãos, quem tem dinheiro para advogados mais ou menos hábeis acaba sempre por “safar-se”… Não é uma citação; se fosse, seria ainda mais grosseiro.
Porque é que isto não é uma caricatura descartável? Porque tais reacções envolvem uma visão, não apenas anti-democrática, mas de total desumanização do espaço público: a execução da lei — com os seus valores, as suas exigências de prova, eventualmente a sua morosidade — acaba por ser considerada dispensável e, pior um pouco, irrelevante porque a única coisa que conta é o achincalhamento público do acusado (sempre tratado como culpado). Não será o fascismo enquanto sistema político, mas a impunidade da sua prática promove uma metódica fascização das mentalidades.

sexta-feira, setembro 15, 2023

SOUND+VISION Magazine
— Telediscos (HOJE, 16 setembro)

Voltamos à FNAC para propormos uma história breve (necessariamente breve, brevíssima...) dos telediscos. Mais exactamente: uma pequena colecção de referências, para lá do óbvio, sobre as relações da música com as imagens animadas que "encenam" essa mesma música.

* FNAC / Chiado: sábado, dia 16 (17h00).

quinta-feira, setembro 14, 2023

Woody Allen
— um americano apaixonado pela Europa

Vittorio Storaro e Woody Allen
durante a rodagem do novíssimo Golpe de Sorte

À beira de celebrar 88 anos de idade, Woody Allen regressa a Portugal como músico de jazz, poucos dias depois da revelação, em Veneza, do seu 50º filme como realizador. A sua filmografia revela-nos um criador sempre ligado ao imaginário americano e, ao mesmo tempo, fortemente marcado pelo cinema europeu — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 setembro).

Nasceu a 30 de novembro de 1935, em Nova Iorque. A poucas semanas de celebrar o seu 88º aniversário, Woody Allen está de volta a Portugal, não exactamente como cineasta, mas músico: com dois concertos na agenda, ele vem celebrar o jazz e, em particular, os sons da tradição de Nova Orleães tão frequentemente ouvidos nas bandas sonoras do seus filmes.
Ligado a um imaginário americano em que a iconografia de Nova Iorque ocupa um lugar central, ele é também um autor cuja cinefilia mantém laços fortes com a Europa, com o cinema europeu e alguns dos seus autores mais emblemáticos. Ironicamente, nos últimos tempos, pode dizer-se que Woody Allen tem trabalhado quase como um realizador “europeu”; aliás, a par da sua actual digressão, esteve há poucos dias no Festival de Veneza para apresentar, extra-concurso, a sua 50ª longa-metragem, Coup de Chance, o seu primeiro filme falado em francês.
No plano profissional, o seu trabalho há muito deixou de ser uma prioridade dos grandes estúdios de Hollywood: títulos como Annie Hall, Intimidade, Manhattan e Stardust Memories/Recordações, todos feitos na segunda metade da década de 1970 com chancela da United Artists, correspondem a uma “idade de ouro” de produção que os tempos decompuseram — em boa verdade, a United Artists já nem sequer existe. Agora, Coup de Chance, porventura o ponto final da sua filmografia, além de falado em francês, é também o seu primeiro título com produção cem por cento europeia. Entretanto, os conflitos familiares com Mia Farrow deixaram marcas na percepção de Woody Allen por muitas pessoas, quer nos EUA, quer na Europa: foi acusado de abuso de uma das filhas do casal, depois ilibado pelos tribunais e condenado por algumas investigações jornalísticas (incluindo a mini-série Allen v. Farrow, disponível na HBO Max).

Comédia & drama

A imagem de cómico foi aquela que começou por definir a identidade de Woody Allen, o seu prestígio e a sua popularidade — com o cinema sempre enredado com o teatro. Estreou-se no cinema como argumentista e intérprete de Que Há de Novo, Gatinha? (1965), comédia burlesca dirigida por Clive Donner, com um elenco que integrava Peter Sellers, Peter O’Toole, Romy Schneider e Ursula Andress. Nesse período inicial, obteve um grande sucesso na Broadway com a peça Don’t Drink the Water, uma sátira em ambiente de Guerra Fria, estreada em 1968. Um ano mais tarde, protagonizava e realizava Take the Money and Run (entre nós O Inimigo Público), retrato “documental” de um desastrado ladrão de bancos: o humor nascia de diálogos tão curtos quanto desconcertantes, a par de uma metódica criação de situações de glorioso absurdo.
Seguiram-se comédias como O ABC do Amor (1972), uma bizarra enciclopédia sobre os mistérios do sexo, inspirada num “best-seller” da época, ou Nem Guerra, Nem Paz (1975), variação sobre as guerras napoleónicas, parodiando a herança de Tolstoi. Na sua ambígua ligeireza e elegância narrativa, Annie Hall (1977) recuperava modelos da comédia dramática de Hollywood e ficou como uma espécie de primeiro inventário de alguns temas obsessivos de Woody Allen: as relações sempre equívocas entre homens e mulheres, a discussão da identidade judaica e a constante sedução do pensamento psicanalítico.
Ironicamente, todo estes modos de ser um autor e actor cómico terão contribuído para nem sempre se dar a devida atenção ao facto de, muito cedo, a obra de Woody Allen exibir algumas radicais componentes dramáticas. Assim, em 1978, apenas um ano após o impacto de Annie Hall, ele escrevia e dirigia o seu primeiro filme em que não participava como actor: Intimidade (título original: Interiors). A dissecação das contradições e fantasmas de uma família, além de sustentada por um elenco de luxo (Diane Keaton, Geraldine Page, Mary Beth Hurt, Maureen Stapleton, Sam Waterston, etc.), revelava um Woody Allen que se assumia como discípulo de um mestre europeu: Ingmar Bergman.
Isto sem esquecer que Intimidade é também um dos momentos fulcrais da relação criativa com um dos génios da fotografia no cinema americano: Gordon Willis, responsável pelas imagens dos dois primeiros capítulos de O Padrinho (1972 e 1974). Em 1979, de novo com Willis, Woody Allen realizava Manhattan, desta vez num prodigioso preto e branco (em formato largo, “scope”), com a inesquecível integração de uma obra clássica da música “made in USA”: Rhapsody in Blue, de George Gershwin, num registo da Filarmónica de Nova Iorque sob a direcção de Zubin Mehta.

A família como teatro

A relação com alguns notáveis directores de fotografia define mesmo vários “capítulos” criativos na história cinematográfica de Woody Allen. Assim, depois de Gordon Willis, começou um ciclo de colaborações com o italiano Carlo Di Palma, ligado, em particular, à evolução das imagens a cor no trabalho de Michelangelo Antonioni (a partir de 1964, com O Deserto Vermelho). Nesta perspectiva, Ana e as suas Irmãs (1986), primeiro de doze títulos de Woody Allen fotografado por Di Palma — incluindo também uma experiência a preto e branco, Sombras e Nevoeiro (1991), citando a herança visual e temática do expressionismo alemão —, ocupa um lugar charneira na obra do actor/argumentista/cineasta. Muitas vezes citado como um fresco familiar marcado pela herança de Fanny e Alexandre (1982), de Ingmar Bergman, Ana e as suas Irmãs revisita as teias da paixão e da traição, da inocência e da culpa, reafirmando o universo de Woody Allen como um fascinante “teatro” de transfiguração dos actores. No papel das três irmãs, Mia Farrow, Barbara Hershey e Dianne Wiest são figuras de incríveis nuances emocionais, num elenco em que também encontramos, por exemplo, Michael Caine, Maureen O’Sullivan (mãe de Mia Farrow) e o “bergmaniano” Max Von Sydow.
Mais recentemente, a fotografia dos filmes de Woody Allen passou a ser assinada por outro italiano, Vittorio Storaro, mestre da luz e da cor que, para lá da sua múltipla relação com a obra de Bernardo Bertolucci — incluindo O Conformista (1970), O Último Tango em Paris (1972) e O Último Imperador (1987) —, assinou as imagens de Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, e Reds (1981), de Warren Beatty. A sua relação iniciou-se com Café Society (2016), visão amarga e doce da década de 1930 em Hollywood, prolongando-se até ao novíssimo Coup de Chance — com o título Golpe de Sorte [trailer], a sua estreia portuguesa está agendada para 5 de outubro.

Rolling Stones na FNAC do Chiado

Bons momentos vividos há poucos dias na FNAC do Chiado. Foi a 6 de setembro — o Nuno e eu tivemos a companhia de Rolando Rebelo para conversarmos sobre os Rolling Stones. Motivo próximo: o anúncio do novo álbum da banda, Hackney Diamonds, e a revelação da sua primeira canção e primeiro teledisco.
A presença de Rolando Rebelo foi tanto mais importante quanto ele é autor de um livro de múltiplas qualidades — memória, enciclopédia, álbum fotográfico — que, como o título indica, remete para a "aventura portuguesa" dos criadores de
Sympathy for the Devil: Rolling Stones em Portugal (Zebra Publicações, 2012).
A sessão foi precedida por aquilo que estava anunciado como um grande acontecimento mediático (que, obviamente, também foi): uma conversa em directo, a partir de Londres, de Jimmy Fallon com Mick Jagger, Keith Richards e Ronnie Wood  — sobre a gestação do novo trabalho, a herança de Charlie Watts, etc. — e, no final, a revelação do teledisco de Angry, interpretado por Sydney Sweeney, com realização de François Rousselet.
Eis um teledisco que poucas bandas poderiam protagonizar, quanto mais seja pelo volume e diversidade de memórias que contém. Estamos perante um objecto de contagiante energia visual que propõe uma espécie de viagem nostágica, ma non troppo, pela iconografia dos Stones, afinal uma saga repartida por seis décadas de rock'n'roll — aqui ficam o registo da conversa com Fallon e o novo teledisco.