sexta-feira, dezembro 08, 2023

SOUND + VISION Magazine
— Beatles, FNAC Chiado [9 dez.]

A data foi alterada, mas o tema mantém-se: Now and Then, a "última canção dos Beatles" é o ponto de partida para revisitarmos a herança do quarteto de Liverpool, redescobrindo memórias visuais e sonoras.

>>> FNAC Chiado, 9 de dezembro (17h00).

The Clientele, Opus 7

Veteranos sem complexos, fiéis às raízes indie pop sem nostalgias postiças: fundada em 1991, a banda britânica The Clientele continua a fazer a sua música de serena (des)ordem lírica. Do seu sétimo álbum de estúdio, I Am Not There Anymore, aqui está, em tom de insólito medievalismo, Blue Over Blue.

quinta-feira, dezembro 07, 2023

Napoleão
— para acabar com o romantismo histórico

Vanessa Kirby e Joaquin Phoenix

No novo Napoleão, com assinatura de Ridley Scott, encontramos Joaquin Phoenix e Vanessa Kirby, respectivamente como Napoleão e Josefina: eis uma biografia grandiosa e perversa que se afasta, ponto por ponto, das regras do tradicional filme histórico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 novembro).

Ridley Scott
Face ao novo Napoleão, realizado por Ridley Scott e protagonizado por Joaquin Phoenix, somos levados a um renovado diálogo com as memórias do imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821). Estamos, de facto, perante uma daquelas figuras históricas capaz de suscitar o relançamento de uma velha questão processual que, da investigação mais académica à caricatura mais surreal, sempre assombrou o cinema: até que ponto um filme pode, ou deve, ser “fiel” à própria história?
Na sua versão corrente, a questão tende a alimentar conflitos pueris. Porquê? Porque pressupõe a candura de algo que não existe: a nitidez incontestável e definitiva de uma “história” em que todos nos reconheceríamos. Como esquecer que fazer história (seja de Napoleão ou do 25 de abril português, passando pelo desaparecimento do habitat do urso polar…) não é a “transcrição” de um saber universal e imaculado?
Conscientemente ou não, fazer história envolve sempre a dinâmica de algum ponto de vista, a começar pela selecção e tratamento das memórias individuais e colectivas. Pensemos, por exemplo, em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, e A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson — será preciso lembrar que a universalidade da figura de Jesus Cristo não basta para mascarar as radicais diferenças de perspectiva, pensamento e encenação dos dois filmes?
As singularidades do novo Napoleão têm suscitado a renovada agitação de uma velha querela de sensibilidades e humores, opondo “franceses” e “britânicos” (com aspas, claro, porque os países são um pouco mais complicados do que qualquer forma de clubismo). Assim, várias vozes da imprensa francesa têm acusado o filme de ser “anti-francês” e “pró-britânico”, como se tudo se reduzisse a confrontos futebolísticos entre duas claques histéricas. Nos seus enérgicos 85 anos (nasceu a 30 de novembro de 1937, em South Shields), Ridley Scott há muito perdeu a paciência para aturar tais infantilismos e limitou-se a responder no mesmo tom: “Os franceses nem sequer gostam de si próprios…”

Fantasmas da história

Quem é, então, este Napoleão? Descobrimo-lo como uma personagem discreta, em boa verdade anónima, observando as convulsões da Revolução Francesa e, em particular, a decapitação da rainha Maria Antonieta. Nessa altura, a sua condição de militar, mais tarde decisiva na estratégia de conquista do poder político, está longe de ser determinante na ambiência dramática dessa cena de abertura, aliás desembocando numa decapitação de gélido realismo, porventura das mais cruas que o cinema já nos mostrou.
Por um lado, Napoleão é um filme de desmesurada ambição, não apenas pela imponência e sofisticação dos meios, mas também pela acumulação de momentos emblemáticos da trajectória de Napoleão — das batalhas, como é óbvio, incluindo o confronto com as tropas do Duque de Wellington (Ruper Everett) em Waterloo, até ao exílio, passando pela coroação como imperador, cena a que Ridley Scott empresta a perturbação de um bizarro embaraço colectivo. Por outro lado, nunca o filme favorece esse determinismo condescendente, hoje em dia dominante nas séries ou mini-séries “históricas” das plataformas de “streaming”, apresentando-os antes um Napoleão atípico cuja ousadia militar contrasta com a pequenez do oportunista cuja fragilidade emocional o aproxima, sem dúvida de forma incómoda, da humanidade do espectador.
Daí também a estranha energia que se desprende das cenas de Joaquin Phoenix com essa actriz fora de série que é Vanessa Kirby, compondo uma Josefina capaz de desafiar o estereótipo histórico da “cara metade” do imperador, mas também demarcando-se de qualquer exaltação feminista em que se pretenda encaixar o seu enigmático poder. Quando ela aparece, o olhar ansioso, mas firme, e um corte de cabelo de “hippie” fora do seu tempo, definem-na como personagem intratável, resistente a qualquer rótulo redentor.
Tal como filmados por Ridley Scott, Napoleão e Josefina são os derradeiros representantes (cinematográficos, entenda-se) de um romantismo que foi derrotado pelo cinismo triunfante dos nossos tempos. Nos momentos explicitamente sexuais, há mesmo uma espécie de automatismo carnal que contrasta com as sombras trágicas que se abatem sobre os seus destinos — são fantasmas da história, ainda antes de a história os vencer.

Produtor & realizador

Curiosamente, esse romance falhado, de tocante tristeza, que Napoleão e Josefina aqui protagonizam já foi implicitamente reconhecido por Ridley Scott como matéria central do filme. A estreia global que agora acontece — seguida da passagem para a Apple TV+ (em data ainda por anunciar) — é apenas uma versão deste Napoleão. Isto porque o filme surge com 157 minutos, mas o realizador já anunciou que montou um “director’s cut”, com quatro horas e meia de duração, em que a personagem de Josefina está (ainda) mais presente — mais tarde ou mais cedo, será integrado na Apple TV+.
Tudo isto reflecte também a visão de Ridley Scott como produtor. Aliás, como é habitual nos seus trabalhos, o filme da Apple Studios tem como entidade coprodutora a Scott Free, empresa que Ridley fundou, no começo da década de 1970, com o irmão Tony Scott (1944-2012). Em declarações à revista Total Film, ele faz mesmo questão em sublinhar a proeza de produção de Napoleão, uma vez que a respectiva rodagem durou apenas 62 dias, período incrivelmente curto para um projecto desta escala. Para ele, trata-se de investir numa grandiosidade de meios que obedece a uma metódica racionalização dos gastos. Assim, por exemplo, a utilização de pelo menos 11 câmaras para filmar as batalhas traduziu-se num tempo de rodagem de seis dias para sequências que, usando dispositivos tradicionais, exigiriam um mês de trabalho.
Dir-se-ia que o produtor/realizador encontrou na personagem de Napoleão o eco ambíguo de um desejo de grandiosidade que o seu cinema reafirma, demarcando-se das modas, e também da saturação de super-heróis e afins, valorizando, em particular, os recursos (visuais e sonoros) das salas IMAX. Não é uma identificação sentimental, antes um perverso jogo de espelhos consumado pela liberdade criativa que a narrativa celebra. Ainda que correndo o risco de ofender as palavras lendárias de Gustave Flaubert sobre a sua Bovary, Ridley Scott pode proclamar ao mundo: “Napoleão sou eu”.

terça-feira, dezembro 05, 2023

Violent Femmes, 40º aniversário

Diremos folk transfigurada pelo punk? Ou punk insolitamente nostálgico? 40 anos depois, o mistério permanece. O que, naturalmente, apenas multiplica o fascínio da banda americana de Milwaukee, Wisconsin, Violent Femmes. Para assinalar a data do primeiro álbum (homónimo), lançado a 13 de abril de 1983, aí está uma especialíssima reedição, recheada de registos alternativos e até de canções que ficaram pelo caminho — eis uma delas, Girl Trouble.
 

segunda-feira, dezembro 04, 2023

Olivia Rodrigo: original, ma non troppo

Digamos, para simplificar, que a invenção iconográfica de algumas modernas, eventualmente pós-modernas, estrelas da música pop não é um prodígio de originalidade. Parece haver mesmo a preocupação (?) de ir fabricando amálgamas (mashups, dizem os especialistas da indústria) de experiências que, no seu tempo, se distinguiram por diferentes valores e peculiares significações.
Acontece agora com o teledisco de Get Him Back!, de Olivia Rodrigo: a multiplicação de figurações da protagonista não passa de uma variação, certamente ágil e sugestiva, de experiências que terão a sua cristalização mais sofisticada no teledisco de Come into My World, de Kylie Minogue, dirigido por Michel Gondry. Quando? Em 2002!
Acrescente-se que Get Him Back! foi realizado por Jack Ebert usando um iPhone 15 Pro. Tudo motivos de curiosidade — afinal, a história das formas audiovisuais é também um permanente processo de revisitação de referências do passado — que, em qualquer caso, não justificam que rasuremos as memórias.
 

Pompeia, o telefilme

O menos que se pode dizer de um filme como Pompeia - Cidade do Pecado, de Pappi Corsicato, é que... não é um filme. Estamos, de facto, perante um convencional produto televisivo, com chancela da Sky Arts, que se insere num modelo académico de "divulgação" histórica. A saber: a partir das matrizes correntes do documentário de "artes & letras", trata-se de revisitar as memórias épicas da cidade de Pompeia, através das suas impressionantes ruínas, evocando um tempo — e uma civilização — cujos ecos e influências os séculos não rasuraram.
As boas intenções do projecto são evidentes. Desde logo através de três componentes: uma cuidada qualidade fotográfica, sobretudo no tratamento das cores das casas e dos frescos que restam de Pompeia; uma colecção de especialistas capazes de contextualizar a história que perpassa por todos esses elementos; enfim, o convite a uma figura tão prestigiada como Isabella Rossellini para desempenhar as funções de narradora (in e off).
Resta dizer que tais intenções não bastam para contrariar a banalidade da narrativa, involuntariamente caricatural quando Pappi Corsicato entende criar cenas de "reconstituição" histórica cujos lugares-comuns "poéticos" pertencem mais a uma banal estética publicitária do que a qualquer desejo de cinema. Além de que a sobrecarga de "informação" académica contraria o simples gosto — e o seu tempo — de poder olhar para as coisas sem ser através da aceleração postiça de uma câmara sem destino.
Claro que as raízes televisivas de Pompeia - Cidade do Pecado não justificam qualquer suspeição, muito menos demonização — afinal de contas, esse filme admirável que é A Tomada do Poder por Luís XIV, realizado em 1966 pelo pai de Isabella Rossellini, é também um telefilme. O que está em causa é a (in)capacidade de construir um olhar de genuíno interesse pelo mundo à sua/nossa volta.

domingo, dezembro 03, 2023

A canção de Björk e Rosalía

Oral (James Merry)

Uma canção de amor? Uma canção sobre a demanda do amor? Talvez uma canção sobre a dificuldade de entender o outro — e de o outro entender quem o procura...

Just because the mind can make up whatever it wants
Does it mean that it'll never come true?

Enfim, as canções de Björk são feitas dessa esplendorosa ambiguidade que as faz existir como espelho cristalino dos contrastes do humano e, ao mesmo tempo, parábolas cujo fascínio começa na metódica resistência a qualquer sentido unívoco ou definitivo.
Uma coisa é certa: com a colaboração da espanhola Rosalía, Oral é uma canção de combate, com um objectivo muito preciso. A saber: trata-se de denunciar os métodos de piscicultura que têm afectado o equilíbrio dos elementos naturais da Islândia.
Assim, os lucros gerados pela canção ficarão ao dispor dos habitantes de Seyðisfjörður, permitindo-lhes custear o processo judicial instaurado contra as empresas estrangeiras que, naquela região, têm explorado a criação do salmão. O dinheiro que restar será investido na organização de campanhas apelando à criação de legislação que contrarie as práticas que continuam a danificar os fiordes, lagos e rios de algumas parcelas do território islandês.
Oral chegou-nos através de um teledisco com assinatura de Carlota Guerrero, fotógrafa e artista visual espanhola.

Paul Lynch, Booker Prize
— elogio da realidade virtual

Paul Lynch

Com o seu livro Prophet Song, o irlandês Paul Lynch ganhou o prestigiado Booker Prize: a saga de uma mãe confrontada com a repressão de um estado totalitário segue a lógica de uma ficção futurista, embora ecoando de forma perturbante no nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 novembro).

Nascido na cidade de Limerick, no sudoeste da Irlanda, a 9 de maio de 1977, Paul Lynch, surgiu esta segunda-feira nas manchetes de todo o mundo como vencedor do Booker Prize, com o livro Prophet Song (Oneworld Publications, 2023). Em qualquer caso, não era um desconhecido: os seus anteriores quatro romances valeram-lhe um reconhecimento que se traduziu em várias distinções de prestígio, incluindo o prémio de melhor romance irlandês de 2018, para Grace, atribuído pelo Kerry Group.
A vitória de Prophet Song parece corresponder a um reconhecimento da ficção, não como “reprodução” do que acontece (aconteceu, ou pode acontecer) no mundo à nossa volta, antes como celebração do poder ancestral da escrita. A saber: vogamos num mundo alternativo que, explorando uma calculada ambiguidade, nos envolve através de uma perturbante actualidade simbólica. Ainda que num registo bem diferente, esse é também o desafio de outro dos candidatos ao Booker — Study for Obedience, de Sarah Bernstein (Granta Publications, 2023) —, uma prodigiosa viagem confessional de uma mulher que luta, afinal, pela definição da sua identidade.
Em Prophet Song, estamos perante o retrato de uma Irlanda futurista, ma non troppo, em que Eilish Stack, mãe de quatro filhos, se vê forçada a lidar com as muitas formas de vigilância, manipulação e agressão de um sistema totalitário. Tudo começa quando dois oficiais de uma “polícia secreta” recentemente constituída batem à porta da casa da família Stack com a missão de interrogar o marido sobre as suas actividades sindicais… A partir daí, a tentativa de manter as rotinas do quotidiano vai transformar-se numa cândida ilusão, gerando uma saga de cruel sobrevivência. Como escreve Lynch, para Eilish o tempo parece “duplicar-se”, numa vertigem em que o medo se enlaça com a resistência, “como se a sua vida se desenrolasse duas vezes ao longo de caminhos paralelos.”
Será aquilo que nos habituámos a chamar uma ficção distópica, sem dúvida. Seja como for, Prophet Song nada tem que ver com a moda “juvenil” das aventuras de super-heróis e afins, até porque a sensação surreal de todo um sistema de vida em decomposição nos chega através de uma prosa aplicada e, mais do que isso, obcecada na inventariação de infinitos detalhes realistas. A extensão invulgar de muitos parágrafos de Lynch, longe de qualquer ostentação formalista, serve mesmo para intensificar esse desejo de manter a realidade no interior de parâmetros descritivos e emocionais que evitem a ameaça de desagregação e morte.
De acordo com o próprio Lynch, Prophet Song é “uma tentativa de empatia radical”. Numa breve entrevista em video, disponível no site oficial do Booker, é-lhe perguntado como é que a ficção pode provocar esse tipo de empatia, afinal “opondo-se a relatos factuais das crises sociais”. A sua resposta é exemplar: “Acho sempre graça quando ouço os tecnólogos a falar da procura da realidade virtual, já que acontece que a realidade virtual foi inventada há centenas de anos — chama-se romance.”

sábado, dezembro 02, 2023

A IMAGEM: Paola Kudacki, 2023

PAOLA KUDACKI / ES Magazine
Jessica Chastain
2023


Shane MacGowan (1957 - 2023)

[ FOTO de Andrew Catlin / shanemacgowan.com ]

Shane MacGowan faleceu no dia 30 de novembro, em Dublin, contava 65 anos. Figura emblemática da banda The Pogues, referência exemplar da cultura popular irlandesa, a sua herança possui esse poder raro de pertencer a um contexto muito particular, ao mesmo tempo que a sua energia e o seu desejo de liberdade ecoam de forma universal.
Entre os muitos textos que evocaram a sua vida e obra, eis três sugestões:
> "Outsider who became one of Ireland’s most feted sons" (The Irish Times).
> "An uncompromising, chaotic one of a kind" (NME).
> "The Gorgeously Messy Soul of Irish Music" (Vanity Fair).

* * * * *
Aqui ficam também três memórias de Shane MacGowan e The Pogues:
Sally MacLennane no programa The Tube (Channel 4, 11 de janeiro de 1985).
Fairytale of New York, c/ Kirsty MacColl, no programa Top of The Pops (BBC, dezembro de 1987).
White City, teledisco (1989).
 




quarta-feira, novembro 29, 2023

Memória de John Bailey

John Bailey: um grande talento da direcção fotográfica
no cinema de Hollywood

Falecido a 10 de novembro, John Bailey foi o primeiro director de fotografia do cinema americano a assumir a presidência da Academia de Hollywood, mas convém não esquecer os filmes em que assinou as respectivas imagens — este texto foi publicado no site da SIC Notícias (20 novembro).

Quase todas as notícias sobre a morte de John Bailey — falecido no dia 10 de novembro, em Los Angeles, contava 81 anos —, ainda que citando a sua carreira como director de fotografia, destacaram o período em que ele assumiu a presidência da Academia das Artes e Ciências Cinematográficas [AMPAS]. É, sem dúvida, um destaque que se justifica, já que esse período (2017-2019) foi particularmente rico, em decisões e movimentações, no sentido de aumentar o número de membros da Academia, diversificando também a sua representatividade. Além do mais, historicamente, Bailey foi o primeiro director de fotografia [cinematographer] a assumir tão importante cargo na estrutura do cinema made in USA — ironicamente, nos Oscars, nunca foi nomeado.
Seja como for, vale a pena alargar o âmbito da sua memória. Eis três simples razões: American Gigolo (1980), a parábola moral de Paul Schrader que transformou Richard Gere numa estrela; Os Amigos de Alex (1983), de Lawrence Kasdan, retrato íntimo das ilusões e desilusões de toda uma geração [video: genérico de abertura]; e Na Linha de Fogo (1993), o “thriller” de Wolfgang Petersen em que Clint Eastwood interpreta um dos elementos da segurança do presidente John Kennedy.


A direcção fotográfica destes três filmes seria suficiente para reconhecermos as invulgares qualidades do trabalho de Bailey — ele tinha essa capacidade de lidar com formas de iluminação especialmente complexas, sem nunca menosprezar a possível combinação com elementos da luz natural (e das respectivas cores).
A filmografia de dois dos cineastas citados — Schrader e Kasdan — está marcada por mais algumas notáveis colaborações com Bailey. Acrescentemos, por isso, os exemplos de A Felina (1982) e Mishima (1985), de Schrader, ou Silverado (1985) e O Turista Acidental (1988), de Kasdan. Isto sem esquecer os títulos em que esteve ao lado de cineastas como Robert Benton (Vidas Simples, 1994, com Paul Newman) ou James L. Brooks (Melhor É Impossível, 1997, com Jack Nichsolson).
Aqui fica um video com um exemplo modelar da sofisticação da visão, e da riqueza técnica, de Bailey — é a cena de A Felina em que, pela primeira vez, a personagem de Nastassja Kinski pressente a sua ligação com o mundo selvagem dos felinos (avisando os mais sensíveis de que se trata de uma cena de grande violência gráfica).
 

A IMAGEM: Bruce Davidson, 1969

BRUCE DAVIDSON / Magnum
São Francisco, EUA
1969

domingo, novembro 26, 2023

O chapéu de Michael Fassbender

O Assassino (2023) + O Ofício de Matar (1967)

Michael Fassbender esteve recentemente no programa de Graham Norton [BBC]. No meio do jogo de humor e subentendidos que caracterizam o programa, Fassbender falou do novo filme de David Fincher, O Assassino, e do seu diálogo com o realizador sobre a forma do chapéu que devia usar... Vale a pena ouvi-lo, em particular evocando a referência tutelar que escolheram — a figura de Alain Delon em Le Samuraï/O Ofício de Matar (1967), de Jean-Pierre Melville —, não por qualquer atitude copista, antes no sentido de criar um contraste sugestivo.
Aqui fica esse momento de The Graham Norton Show e também o trailer mais recente, referente a uma cópia 4K, do filme de Melville.



The Kills em versão acústica

Mais uma preciosidade de God Games, o novíssimo álbum de The Kills: a canção New York em versão acústica, ou como a exuberância do rock pode ser compatível com a austeridade dos meios — e a singular elegância de tudo isso, you taste just like New York...

Mozart + Lars Vogt

A derradeira gravação do pianista alemão Lars Vogt (1970-2022) é um prodígio capaz de aliar a mais austera monumentalidade ao imponderável de uma performance toda ela pontuada por um sentimento de graça. Vogt estava em processo de tratamento do cancro que viria a vitimá-lo, mas insistiu em acumular as tarefas de interpretar os Concertos nºs 9 e 24, de Mozart, e a direcção da Orchestre de Chambre de Paris. Com chancela da etiqueta Ondine, este Wolfgang Amadeus Mozart - Piano Concertos Nos. 9 & 24 é, muito simplesmente, um acontecimento central no panorama musical de 2023.
Eis o primeiro andamento, Allegro, do Concerto nº 24 (composto em 1786).
 

sexta-feira, novembro 24, 2023

Os Beatles cantados por outros...

Eis uma sugestiva e oportuna edição: We Can Work It Out, uma colectânea de canções dos Beatles recriadas por outras vozes (e instrumentos...). Não um gesto nostálgico do nosso presente, antes uma memória plural do que aconteceu no tempo de glória do quarteto de Liverpool — o subtítulo é, aliás, Covers of The Beatles 1962-1966. De Petula Clark a Count Basie, mas também recordando nomes muito menos conhecidos, as variações são deliciosas. Aqui fica uma versão instrumental: I Feel Fine, por The Ventures.

Godard
— todos os ecrãs do mundo

La Chinoise (1967):
“É preciso confrontar as ideias vagas com imagens claras”

Apresentada no âmbito do recente LEFFEST, a exposição de Fabrice Aragno sobre o universo cinematográfico de Jean-Luc Godard — “Éloge de l’Image - Le Livre d’Image”, até 2 de dezembro, na Trienal de Arquitectura (Palácio Sinel de Cordes, Campo de Santa Clara, próximo da zona da Feira da Ladra) — leva-nos a revisitar os momentos mais emblemáticos da sua filmografia, perguntando: o que é isso de ver o mundo através de um ecrã? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 novembro).

Um dos aspectos mais fascinantes da exposição “Éloge de l’Image - le Livre d’Image” decorre do facto de os seus ecos, directos ou simbólicos, ultrapassarem (e muito!) a referência ao filme que a inspira: O Livro de Imagem (2018), essa obra terminal de alguém que sempre questionou o modo como, do cinema à publicidade, passando pela televisão, nos relacionamos com as imagens. Num resumo esquemático, eventualmente sugestivo, podemos mesmo dizer que Jean-Luc Godard nos deixou um legado através do qual não nos limitamos a identificar o que está numa imagem. Porquê? Sabemos que, face a essa imagem, tudo em nós se transfigura — pensamentos, emoções, relações com os outros.
Numa parede da casa em que se passa o essencial do filme La Chinoise (1967), Godard escreveu esta frase que, muito mais do que um preceito cinematográfico, pode ser entendida como um princípio de vida: “É preciso confrontar as ideias vagas com imagens claras.” Tendo em conta que esse é um filme tradicionalmente apontado como exemplar do seu “período político”, vale a pena acrescentar que tal classificação só peca por defeito. Isto porque não há nada mais político do que olhar o mundo e transfigurá-lo em imagens — a noção de que, todos os dias, as televisões se limitam a “reproduzir” o mundo é mesmo um caso extremo de distração ou ingenuidade.
Lembremos, por isso, as cenas de O Desprezo (1963) em que as personagens interpretadas por Brigitte Bardot, Michel Piccoli e Fritz Lang assistem à projecção de extractos do filme que estão a rodar. Ou o pioneirismo de Número Dois (1975), expondo o modo como as mensagens televisivas passaram a integrar de forma visceral a nossa percepção do mundo, nessa medida afectando também a nossa identidade. Ou a rodagem de um filme dentro do filme, em Paixão (1982), tendo como inspiração várias obras-primas da história da pintura, incluindo A Ronda da Noite, de Rembrandt. Ou ainda o poético jogo de espelhos de que se faz o autobiográfico J.L.G. por J.L.G. (1994), celebrando a vida, pressentindo a irrisão da morte.
Que liga todos esses momentos? Pois bem, a certeza de que o mundo é palco de um jogo infinito de ecrãs em que algumas vezes podemos descobrir o que somos, noutras assumimos máscaras que podem ter tanto de revelação como de impostura. Por alguma razão, Godard sempre se interessou pelas linguagens televisivas e pelo modo como a sua espectacular proliferação mudou as sociedades. Não por qualquer processo de demonização — afinal de contas, desde a sua fase “política”, ele trabalhou frequentemente para televisão. Antes porque algumas componentes do espaço televisivo podem banalizar e esquematizar as próprias relações humanas, incluindo a dimensão política dessas relações. Ou como ele disse uma vez: quando um filme se estreia numa sala, apesar de tudo temos a certeza que os respectivos espectadores tomaram a decisão de o ver — quando passa na televisão, “não sei para onde vai”.

Alexandre Kantorow, ou o tempo circular

ALEXANDRE KANTOROW
Fundação Calouste Gulbenkian / Grande Auditório
11 nov 2023, 19h00

Johannes Brahms
Rapsódia em Si menor, op. 79 n.º 1
Franz Liszt
Estudo de execução transcendente, Chasse-neige, S.139/12,
Vallée d’Obermann S.160/6 (Années de Pèlerinage: 1e année, Suisse)
Béla Bartók
Rapsódia, op. 1
Sergei Rachmaninov
Sonata n.º 1, em Ré menor, op. 28
J. S. Bach / J. Brahms
Chaconne em Ré menor, para a mão esquerda (da Partita para Violino solo n.º 2, BWV 1004)

"Não há palavras", dizia um espectador naquele inesquecível fim de tarde no Grande Auditório na Gulbenkian. Apetece brincar com as palavras e reforçar o espanto, dizendo que, de facto, Alexandre Kantorow é um daqueles pianistas capaz de nos garantir que a sua relação com as teclas supera e, no limite, dispensa os códigos da fala ou da escrita...
... ainda assim, é preciso dizer/escrever alguma coisa. Sublinhando, em particular, que a mestria de Kantorow, alheia a qualquer ostentação de versatilidade, ao escolher Brahms, Liszt, Bartók e Rachmaninov, parece enraizar-se num tempo de transição, ou melhor, de passagem (do século XIX para o século XX), quando os parâmetros da composição e da performance se terão aberto, mais do que nunca, a todas as possbilidades. Ao escutarmos Vallée d'Obermann, por exemplo, dir-se-ia que a composição de Liszt nos devolve a um tempo passado, carregado de futuro, em que todas as matrizes reconhecíveis parecem coabitar com a mais pura improvisação — o que, evidentemente, decorre também do modo como Kantorow a interpreta.
Chegados ao momento final do programa, consultamos a calendário e observamos o tempo que passa, passando através de uma circularidade cujo enigma suspenso nos mobiliza. Assim, há mais de um século e meio entre a origem da Chaconne de Bach, composta em 1720, e a sua transcrição "para a mão esquerda", feita por Brahms, em 1879. Essa distância desenha também o cenário de uma proximidade de que Kantorow é, de uma só vez, o intérprete concreto e o mensageiro abstracto — eis um registo da Chaconne, por Kantorow, realizado na Sociedade Filarmónica de Moscovo, a 15 de maio de 2021.

quinta-feira, novembro 23, 2023

David Fincher,
realizador de telediscos

David Fincher e Michael Fassbender
— rodagem de O Assassino

O novo filme de David Fincher, O Assassino (Netflix), é uma proeza tanto mais fascinante quanto reflecte o enraizamento do seu trabalho numa multiplicidade de linguagens —incluindo os telediscos, convém não esquecer.
De facto, a partir da década de 80, graças ao fenómeno MTV, quando os videoclips passaram por um impressionante boom de criatividade (e evolução técnica), Fincher afirmou-se como um dos mais brilhantes realizadores de telediscos, muitos deles ainda antes de assinar Alien 3, a sua primeira longa-metragem para cinema. Para a história, em 1989, assinou Express Yourself, de Madonna, momento fulcral de toda esta história, já que, na altura, surgiu como o mais caro teledisco de sempre (5 milhões de dólares), mostrando que se estava a consolidar um novo modo de produção/difusão da música.
Aqui ficam três exemplos, entre os menos divulgados, da trajectória de Fincher.

>>> Get Rhythm, Ry Cooder (1988).
 


>>> Oh Father, Madonna (1989).

 

>>> Only, Nine Inch Nails (2005).

 

Uma serenata de Bruce Springsteen

Foi há meio século... 1973 é o ano decisivo de afirmação de Bruce Springsteen nos labirintos da música popular, lançando os seus dois primeiros álbuns: Greetings from Asbury Park, N.J., em janeiro, e The Wild, the Innocent & the E Street Shuffle, em novembro. A clara definição das suas raízes, do espírito folk à crueza que o rock pode assumir, não excluía, bem pelo contrário, uma energia criativa à procura da sua definição e que, por isso mesmo, talvez possamos apelidar de experimental.
Com alguma nostalgia, ma non troppo, escutemos, por isso, New York City Serenade, tema que encerra o alinhamento do segundo álbum, em dois momentos: a gravação original e uma performance, em Roma, 40 anos mais tarde — Bruce é mesmo um daqueles que, sem ostentação nem pitoresco, justifica o cognome de contador de histórias.



Patti Smith no cinema...

... não os filmes "com" Patti Smith, entenda-se, mas os filmes em que, directa ou indirectamente — sobretudo através da sua música —, Patti Smith marca de forma indelével o próprio acontecimento cinematográfico. É uma das mais recentes edições do programa Blow up, do canal Arte, e serve de exemplo de um didactismo televisivo — raro em televisão — que nasce do gosto de conhecer os labirintos das linguagens artísticas, partilhando os seus insubstituíveis prazeres.

quarta-feira, novembro 22, 2023

O mundo que está a morrer [David Fincher]

Michael Fassbender em O Assassino:
vivendo um "presente imóvel ou de eternidade"

Com o seu novo filme, O Assassino, David Fincher redescobre a montanha mágica do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 outubro).

Hans Castorp, personagem central de A Montanha Mágica, o romance do alemão Thomas Mann à beira de completar um século — a edição original é de novembro de 1924 —, experimenta o esplendor contraditório da natureza, outrora redentora, agora potencialmente trágica, como se fosse o derradeiro ser humano. Por uma coincidência impossível de racionalizar, lembremos que no mesmo ano, também na Alemanha, F. W. Murnau retratava a agonia de um velho porteiro de hotel, interpretado por Emil Jannings, num filme com um título, por assim dizer, paralelo ao romance de Mann: O Último dos Homens.
Para recordarmos a odisseia do seu olhar, citemos com alguma demora os sobressaltos da sua aventura física e mental (recorro à tradução de Herbert Caro, editada pelos Livros do Brasil): “Quando Hans Castorp parava, a fim de não se ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito, e o menor vestígio de som era como que abafado, um silêncio ignoto, jamais sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio primitivo, aquele que Hans Castorp contemplava ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça inclinada para um dos ombros e a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve continuava a cair, a cair tranquilamente, sem um ruído.”
A figura central do novo filme de David Fincher, O Assassino (primeiro nas salas, a partir de 10 de novembro na Netflix), é um herdeiro paradoxal, porventura perverso, não exactamente de Castorp, mas desse misto de observação e mágoa em que Mann o envolve. Nos cenários da “antiga” natureza ou na nossa selva urbana, ambos vivem a mesma dificuldade de pertencer a um mundo que se desagrega — aliás, um mundo que alienou a crença na sua própria lei.
A imersão de Castorp nas maravilhas da natureza tem mesmo algo de luto silencioso por esse mundo que está a morrer, esvaziando o lugar clássico do ser humano. As medidas do tempo deixaram de ser acolhedoras, uma vez que “Hans Castorp já não sabia distinguir o “ainda” e o “de novo”, de cuja mistura e confusão resulta o “sempre” e o “nunca”, situados fora do tempo.”
Para o assassino de Fincher, interpretado pelo genial Michael Fassbender, o tempo é uma máscara impossível de decifrar. Como? Rasurando o passado, dispensando qualquer imaginação do futuro: tudo é vivido, percebido e habitado como um presente absoluto. Esse presente cristaliza no tempo de execução do próprio crime. A longa espera do alvo humano que abre o filme tem qualquer coisa desse tempo em que, sob o signo da doença, vive Hans Castorp. Como dizê-lo? Mann descreve-o como um “presente imóvel ou de eternidade.”
Observem-se as imagens recorrentes do relógio usado por Fassbender, não tanto para medir o tempo exterior, mas sim os seus ritmos interiores, tudo aquilo que faz dele um humano que descolou da própria humanidade, vivendo como uma entidade sempre em movimento no espaço, mas congelada no tempo. E lembremos o relógio de Hans Castorp: “A minúscula agulha saltitava pelo seu caminho, sem se importar com os números que alcançava, percorria, ultrapassava, ultrapassava muito, aproximava-se e alcançava de novo. Era insensível aos objectivos, às divisões e aos marcos. Deveria demorar-se por um instante no sessenta ou pelo menos assinalar de qualquer maneira que alguma coisa findara ali.”
Há uma noção de destino que se desagrega quando “o passado é idêntico ao presente e ao futuro.” As caminhadas de Hans Castorp na natureza atraem um niilismo que, no plano simbólico, não é estranho ao gelo existencial que o assassino de Fincher também experimenta e, ao experimentá-lo, partilha connosco. Esta frase de Mann poderia pertencer ao obsessivo monólogo de Fassbender: “Na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo, o movimento de um ponto para outro deixa de ser movimento, não existe tempo.”
O Assassino é esse filme em que as medidas do tempo, porque interiores, despidas de qualquer “mensagem” ecuménica, se afogam na ambígua sedução das imagens e na vibração ritualizada da música de Trent Reznor e Atticus Ross. Não é, ironicamente, e ao contrário de Oppenheimer, de Christopher Nolan, um cinema que reivindique a grandeza da sala clássica, o que não o impede de se demarcar do mercantilismo narrativo que alagou as plataformas de “streaming”. Com a agilidade de muitos telediscos (área em que Fincher se distinguiu no começo da carreira), deparamos com um ecrã que não “reproduz” o que quer que seja, antes fabrica um mundo novo, colado ao mundo a que chamamos “real”: o olhar do atirador e a disponibilidade incauta do nosso olhar de espectadores partilham a mesma energia primitiva. A saber: o desejo de ver, insaciável, pecado primordial da arte cinematográfica.
O Assassino nasce da ética ancestral do espectáculo em que recusamos a ideia segundo a qual um filme existe para expor “temas” do nosso mundo — o mundo evolui de forma selvagem, não cabe nos “temas” em que tentamos aprisioná-lo. Fincher actualiza, assim, as lições de Alfred Hitchcock, colocando no centro dos acontecimentos o desejo ambíguo que faz da personagem um espectador dentro do filme, transfigurando o espectador em personagem que poderia entrar no filme. Raras vezes o cinema sabe aceder a esse desencanto feliz que o fez nascer: personagem e espectador partilham as histórias de uma só solidão.

>>> Música do genérico de O Assassino (Trent Reznor & Atticus Ross).

As almas e os seus corpos [Paul Schrader]

Joel Edgerton, O Mestre Jardineiro:
"A jardinagem é a manipulação do mundo natural"

Nos filmes de Paul Schrader, o herói (ou anti-herói) é sempre alguém que procura alguma forma de redenção. No caso de O Mestre Jardineiro, Joel Edgerton interpreta um homem que pratica a jardinagem como “uma crença no futuro” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 novembro).

Ao descobrirmos a mais recente realização de Paul Schrader, O Mestre Jardineiro, talvez seja inevitável evocar e, num certo sentido, invocar outras referências da sua obra. A começar, claro, pelo ciclo que este filme encerra, uma trilogia que o próprio Schrader não terá programado, mas que acabou por reconhecer como um modo pertinente de descrição: primeiro, surgiu No Coração da Escuridão (2017), com Ethan Hawke a interpretar o sacerdote de uma pequena congregação novaiorquina, à deriva no meio das atribulações do seu rebanho; depois, Oscar Isaac protagonizou The Card Counter: O Jogador (2021), cuja agilidade nos jogos de cartas coexiste com os fantasmas do seu passado militar; agora, Joel Edgerton assume a personagem de um jardineiro profissional que arrasta os estigmas de uma vida marcada pela ideologia da supremacia branca.
O que liga estas personagens é uma dimensão transcendental que o próprio Schrader reconhece estar ligada à sua educação religiosa e à sua formação teológica — será também inevitável repetirmos que ele é autor de um clássico da literatura cinematográfica, O Estilo Transcendental no Cinema - Ozu, Bresson, Dreyer (disponível em edição portuguesa: Edições 70, 2023). Se quisermos sistematizar essa componente, diremos que no centro de cada um destes filmes encontramos uma personagem que, na sua solidão primordial, formula, de forma angustiada, a possibilidade de encontrar alguma redenção. Como ele gosta de dizer, são dramas de um homem só num quarto (“man in the room dramas”).
E há um paradoxo a ter em conta que, como é óbvio, marca também os filmes de Martin Scorsese em que Schrader trabalhou como argumentista — com destaque para Taxi Driver (1976) e A Última Tentação de Cristo (1988). Nasce esse paradoxo da demanda em que está enredado cada um dos protagonistas: a possível redenção da alma expõe-se — aliás, filma-se — através de uma inusitada intensificação da presença material dos corpos.
No caso de Narvel Roth, a personagem de Edgerton em O Mestre Jardineiro, esse factor paradoxal é tanto mais perturbante quanto o passado racista da personagem está, literalmente, inscrito no seu corpo. Podemos mesmo dizer que as suas tatuagens são uma forma de escrita que, de uma maneira ou de outra, ele vai dar a ler às duas mulheres que pontuam o seu destino: Norma (Sigourney Weaver), a dona da propriedade em que trabalha, e Maya (Quintessa Swindell), a sobrinha de Norma que Narvel está encarregado de iniciar nos segredos da jardinagem.
Logo na cena inicial, vemos Narvel sentado a uma mesa, a escrever (um homem só no seu quarto…), inventariando vários modelos de arranjo dos jardins e estabelecendo a sua própria utopia: “A jardinagem é uma crença no futuro, uma crença de que as coisas acontecerão de acordo com o que foi planeado e que a mudança acontecerá no tempo devido.” Muito mais tarde, ouviremos dizê-lo que “a jardinagem é a manipulação do mundo natural”. Ou ainda: “uma criação de ordem onde a ordem é apropriada”.
Schrader reafirma-se, assim, como o último dos cineastas religiosos. Não no sentido simplista de professar uma religião, mesmo se ele é o primeiro a reconhecer que as suas raízes calvinistas marcam toda a sua existência (afinal de contas, como ele já disse, até cerca dos 18 anos não tinha autorização para ver filmes). Antes como detentor de uma visão em que, mesmo nas convulsões mais violentas das suas histórias, há uma parte de sagrado que persiste, algures, no labirinto do mundo — uma ordem assombrada pela sua desordem.

TIME: 100 fotografias de 2023

MAXIM DONDYUK, para The New Yorker
* Mãos de um soldado ucraniano
em Bakhmut (26 março)

No panorama da imprensa internacional, num dos primeiros balanços das imagens de 2023, a TIME propõe um TOP 100 das fotografias do ano — a lista pode ser consultada na secção Lightbox da revista.

MOHAMMED SALEM — Reuters
* Na Faixa de Gaza, uma mulher palestiniana de 36 anos,
abraça o corpo da sua sobrinha de 5 anos,
morta durante um ataque israelita (17 outubro)
GO NAKAMURAThe New York Times
Rio Grande, atravessando a fronteira México/EUA (29 março)

>>> Site da revista TIME.

terça-feira, novembro 21, 2023

Napoleão, 2023

Joaquin Phoenix. Que faz o poder? Que faz com que duas palavras, dois gestos ou duas poses aparentemente iguais gerem mecanismos de poder tão diferentes?
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* Publicado em Instagram/jjlr_lopes.
>>> Site oficial de Napoleão, de Ridley Scott.

Cat Power canta Dylan

Não há teledisco... não é preciso. Eis One Too Many Mornings, uma das canções do álbum Cat Power Sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert, refazendo (a 5 de novembro de 2022) um lendário concerto de Dylan que, em boa verdade, aconteceu no Manchester Free Trade Hall (a 17 de maio de 1966) — tempo que passa, tempo que fica.