Quando a farsa vira tragédia
Foi dito que a história se repete; ao que se emendou: primeiro como tragédia, depois como farsa. Mas o bizarro espetáculo que vem sendo encenado em terras brasileiras, parece a farsa, da farsa, da farsa.
Também se falou que as sociedades modernas só existem em constantes e radicais transformações: são revolucionárias por natureza. Ao que se acrescentou: algumas dessas sociedades se transformam por meio de acordos e rearranjos vindos “do alto”, as chamadas “revoluções passivas”. Se a história brasileira nos últimos séculos foi marcada por muitas e importantes lutas sociais – contra a invasão portuguesa, contra a escravidão, contra a exploração assalariada, contra ditaduras, entre outras -, episódios em que os debaixo afrontaram as tantas opressões que sofriam, é evidente que a coragem, a dedicação e a organização dos subalternos não foi suficiente para virar esse jogo. E isso mesmo se consideramos que boa parte dessa história de luta foi violentamente apagada por uma elite sanguinária, de uma ambição sem qualquer limite, que sempre morreu de medo dos debaixo, e massacrou quem ousou se opor aos seus desmandos.
Uma das coisas que distinguem a situação atual é que a barbárie e a ofensiva promovida pelos endinheirados não é uma resposta a qualquer confronto ou ameaça popular. E ela também não implica em nenhum tipo de sacrifício por parte das elites, na linha do “vão-se os anéis, ficam os dedos” . Ela segue outra lógica, que já opera há tempos: à falta de uma oposição real, à falta de forças sociais que coloquem freios à sua sede por dinheiro, a palavra de ordem é: “ficam os anéis, e passem todo o restante do ouro pra cá: agora!”. Além do velho mandamento: “depois de mim, o dilúvio”, ou seja, “para mim tudo, e que tudo o mais se exploda”.
Essa situação óbvia é escondida por uma grossa cortina de fumaça: a grande mídia zomba da nossa inteligência, martelando besteiras sem parar; de modo geral, o resumo da ópera é que a origem de todos os males da humanidade é a corrupção, entendida como um problema moral. A corrupção é um sintoma, é a expressão de uma doença terrível e muito resistente, que precisa ser entendida para ser combatida (afinal, não se vence a gripe atacando o espirro, mas sim o vírus). Essa doença é a própria vida escravizada pelo imperativo do lucro; em um mundo em que “Deus é uma nota de 100”, o dinheiro corrompe, e a corrupção, sob diversas formas, prevalece, sob qualquer governo, de qualquer partido.
Assim, por detrás da tal cortina de fumaça vemos algo muito simples: o que está em jogo são meros acertos entre os ganhadores de sempre. Afinal, além de injustiças e desigualdades, uma sociedade guiada pela ganância desenfrada necessariamente gera crises, riscos e perdas. Depois de terem lucrado muito, em tempos de relativa bonança e de muitas fraudes, agora se trata de empurrar a fatura dessa conta para os perdedores de sempre – a população trabalhadora -, e de criar caminhos para dar continuidade ao seu enriquecimento. E um dos elementos mais importantes dessa equação é saber quem vai ter mais ou menos acesso aos cofres do Estado. Basicamente é sobre isso que se trata toda a polêmica pró e contra-Dilma.
As recentes marchas e as manifestações de rua, que talvez pudessem ser a expressão de um processo de reflexão e de organização, revelam precisamente o oposto. Em ambos os protestos, muitas bandeiras nacionais, manifestantes cantando o hino e palavras de ordem nacionalistas; “militantes” pagos; “dirigentes políticos” acompanhados por muitos seguranças particulares; agressões e demonstração de ódio contra opositores; muitas palavras de ordem comuns a ambos os “eventos” (“abaixo a corrupção”; “reforma política” etc.); e, quando os manifestantes eram questionados sobre os motivos dos protestos e sobre o que queriam ou esperavam delas, ficava evidente que não havia nada por detrás dos “slogans”, além de muita confusão mental (confiram o relato de um companheiro aqui; e vejam os vídeos aqui e aqui).
É certo que causa grande impacto a grita por um novo golpe militar, o anacrônico coro de “vai pra Cuba” ou “chupa comunista”, que são expressões conscientes ou inconscientes do mais puro ódio de classes. Entretanto, a defesa acrítica do governo e a afirmação militante da noção do “menos pior”, que aceita um caminho que evidentemente têm alimentado o “pior do pior”, revelam uma matriz comum – fanática – a ambos os campos (a)políticos.
Em meio a tanto barulho, não se diz palavra sobre as questões que realmente importam. Que tempos terríveis, em que parece não existir história, em que parecemos presos num eterno presente, pleno de desgraças. Se é que se pode ainda perguntar pelo sentido da vida, este parece se resumir a ter mais e a parecer melhor que os demais: é só competição, ostentação, consumismo. Ficamos insensíveis em relação ao sofrimento e as alegrias dos demais; até a nossa própria vida a gente vê como uma novela, com distanciamento e com certa indiferença. Não é à toa que existe uma epidemia de doenças como depressão, síndrome do pânico, esquizofrenia, e tantas outras, que há pouco tempo achávamos que era coisa de rico. Além disso, torna-se normal nos dias de hoje vermos evangélicos realizando exercícios militares e atacando terreiros (de umbanda e candomblé); multidões escravas de um cachimbo; policiais matando, torturando e encarcerando negros e pobres aos montes, e sendo aplaudidos por isso; grupos extremistas assassinando homossexuais; milhões utilizando as “redes sociais” para destilar o ódio e os preconceitos mais bárbaros; milhares de mulheres sendo agredidas, violentadas e mortas…
Da mesma forma como “governo” e “oposição” (dois lados da mesma moeda) estão comprometidos até o último fio de cabelo com a lógica opressiva, hierárquica, alienante e exploradora do capital, forças ditas de “esquerda” e de “direita” convergem na marcha fascista em curso, expressão daquela lógica. Mesmo alguns movimentos populares que se afirmam “autônomos” e “revolucionários”, imersos até o pescoço nas barganhas e sufocados pelo seu próprio oportunismo e autoritarismo, jogam lenham na fogueira fascista; longe de estimularem a autonomia de seus membros, de abrir espaços para a reflexão e para a compreensão da conjuntura, eles buscam reforçar as falsas polarizações, rebaixar as discussões ao nível do “FLA X FLU”, e fortalecer seu caráter autoritário e manipulador.
Se o pensamento está tão fora de moda, e se a “comunicação” é propriedade de meia dúzia de grandes empresas, não pode existir liberdade de expressão; se esquerda e direita se igualam numa massa raivosa, desnorteada, e manipulável, e se os partidos de direita e de esquerda reduziram seu horizonte ao favorecimento de si próprios e dos grandes grupos econômicos, não pode existir liberdade política; se estamos todos infantilizados, incapazes de tomar decisões, não pode existir nenhum livre-arbítrio. Ainda assim, vemos milhões clamando por uma nova ditadura civil-militar. De fato, existe o perigo dos manipuladores errarem nos seus cálculos, e acabarem libertando um monstro que eles alimentam, mas que não têm poder para controlar, e que pode se voltar contra seus próprios interesses. Uma coisa é certa: enquanto ficarmos reféns dos erros e acertos de cálculos das elites, continuaremos de mal a pior. É evidente que essa escalada fascista em curso por todo o mundo só poderá ser refreada com a ação popular consciente e articulada, embasada em experiências práticas de planejamento, tomada de decisão e de controle sobre as mais diversas esferas de nossas vidas, nas mais diversas escalas. Os fascistas de plantão e de profissão de fé continuarão suas marchas rumo ao abismo. Será que iremos conseguir puxar o freio, e desbravar outros caminhos?
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