1Iniciativas socioculturais foram criadas ao longo do processo de reforma psiquiátrica no Brasil com o intuito de promover a interlocução entre a sociedade e os sujeitos acometidos por algum tipo de experiência de sofrimento psíquico e de ambos com relação à loucura. As estratégias para o incremento dessa interlocução têm sido ampliadas, sobretudo em contextos de retrocessos de conquistas, muitas delas voltadas para o protagonismo e o respeito às singularidades dos sujeitos em suas experiências de sofrimento psíquico no tecido social.
2O questionamento dos saberes e práticas psiquiátricos manicomiais promovido por este amplo processo social incitou a revisão e a reformulação de conceitos tais como os de loucura, saúde e doença mental, dentre outros. Como sugeriu Alves (1999), a reforma psiquiátrica demandou o reconhecimento dos valores e crenças do público-alvo das ações em saúde mental bem como dos modos como cada grupo social atribui valores e constrói significados e práticas relativas à saúde e à enfermidade.
3Estratégias que favorecessem novas possibilidades de interlocução da sociedade com a loucura, ou seja, que buscassem construir um outro lugar social para ela ganharam força em contextos socioculturais, históricos e políticos particulares. Em geral, estiveram alicerçadas na crítica aos saberes instituídos e no entendimento de que seria possível construir maneiras diferentes de enfrentamento do sofrimento pelos sujeitos, de convívio com a diferença e, quiçá, de superação de processos de estigmatização, historicamente constituídos.
4Experiências artístico-culturais intermediadas por companhias de teatro, grupos musicais, blocos carnavalescos, programas radiofônicos, dentre outros, passaram a ocupar o processo da reforma psiquiátrica e a viabilizar, a partir de diferentes registros, outro lugar social para a loucura. Como apontam Amarante e Torre (2017, p. 766), “as experiências de arte-cultura no campo da Saúde Mental constituem hoje um universo de novas formas de relação com a loucura e com a diferença, que contribuem para a mudança do imaginário social sobre a loucura”.
5Contudo, tal como discutido por Fonseca(2007), a reforma psiquiátrica brasileira é um processo heterogêneo, de disputas por modelos assistenciais, marcado por relações de poder e interesses políticos e econômicos distintos. A construção de outras possibilidades de relação com a loucura e com a diferença é marcada por tais disputas e relações e, como alegam Amarante e Nunes (2018, p. 2073),“após a instalação do estado de exceção pelo qual o país passa no momento, o SUS e a RP [reforma psiquiátrica] passaram a ser alvo de mudanças radicais e de retrocessos importantes”.
6Segundo Amarante (1996), a reforma psiquiátrica abrange quatro dimensões, a saber: teórico-conceitual ou epistemológica, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural, que ora se entrelaçam, ora são conflitantes e/ou consensuais. De acordo com Yasui (2010), a dimensão sociocultural da reforma psiquiátrica apontada por Amarante (1996) deve ser pensada a partir de dispositivos e ações artísticas e culturais, mas também como um processo civilizador, designado por ele “como movimento que busca construir essa sociedade mestiça, marcada pelo diálogo, pela convivência e por um profundo respeito às diferenças” (YASUI, 2010, p. 175).
7Considerando o eixo sociocultural proposto por Amarante (1996) e Yasui (2010), depreende-se que a criação de serviços denominados pela política pública de saúde mental como comunitários e territoriais, tem no seu horizonte a produção de outro lugar social para a loucura. Tal denominação reflete uma concepção ampliada de saúde.A saúde, nessa perspectiva, seria produzida por diferentes atores sociais no âmbito de seus contextos de vida. A ideia de serviços comunitários e territoriais é uma aposta na capilaridade do Sistema Único de Saúde e um esforço na superação do modelo hospitalocêntrico e manicomial. Ou seja, a partir da aproximação dos sujeitos acometidos por algum tipo de sofrimento psíquico com os serviços citados, agora territorializados, bem como a possibilidade da livre circulação pelas cidades, haveria uma transformação recíproca nas relações entre seus habitantes.
8Entretanto, tal como apresentado por Andrade e Maluf (2014 e 2015), o êxito desse trânsito e participação dos sujeitos pelas cidades ao longo dos processos de desinstitucionalização estão relacionados aos processos de abertura das portas dos serviços não apenas para que as pessoas tenham acesso à assistência psiquiátrica com um mínimo de liberdade, mas, sobretudo, pela oportunidade que deles elas possam sair. Este parece ser um dos desafios mais importantes dos processos de desinstitucionalização.
9Os processos de abertura das portas, contudo, permitem contrastar as possibilidades de circulação desencadeadas pelo processo da reforma psiquiátrica com as impossibilidades do confinamento às quais são submetidos os sujeitos quando internados em instituições totais (Goffman, 2001). Entre elas, podemos citar os hospitais psiquiátricos, as comunidades supostamente terapêuticas, dentre outros serviços que tem o fechamento, o isolamento e a custódia como regramento.
10A possibilidade de circulação pelas cidades parece ser uma das consequências desencadeadas pela reforma psiquiátrica, através de seus diferentes processos de desinstitucionalização. A invenção de outras sociabilidades possíveis se sustenta de diferentes maneiras e, como argumentam Alverga e Dimenstein (2005, p. 52), “diz respeito à construção de um novo lugar social para a loucura, de novas formas de lidar com a diferença, ou seja, pensar a loucura como radicalização da diferença”.
11A construção desse outro lugar social para a loucura implicou as cidades no processo de reforma psiquiátrica. Elas foram impactadas pelas transformações desencadeadas por este movimento, seja pela criação de novos espaços-serviços institucionais para a oferta de assistência psiquiátrica em liberdade, seja pelas possibilidades de circulação dos sujeitos e de construção de seus itinerários, terapêuticos ou não. Enfim, espaços de construção de estratégias de enfrentamento e ressignificação da convivência com a loucura.Os exemplos dessas experiências são muitos, tal como demonstram, por exemplo, Amarante e Lima (2008), em Loucos pela diversidade: da diversidade da loucura à identidade da cultura.
12Para os objetivos deste trabalho, será considerada uma experiência singular que ocorre anualmente na cidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul, e se intitula Parada Gaúcha do Orgulho Louco. Ela compôs o campo etnográfico de uma pesquisa que buscou analisar as repercussões das transformações culturais em relação à loucura na produção de subjetividade de usuários/as dos serviços de saúde mental.
13Para esse exercício analítico, utilizei a ideia de produção de subjetividade, tal como propôs Foucault (1995). Para o autor, ela pode ser entendida como a inscrição que fazemos de nós mesmos no registro social a partir das possibilidades nele presentes, ou seja, uma produção subjetiva que se faz e desfaz a partir de um fora que se transforma incessantemente.Com o objetivo de discutir neste artigo os agenciamentos sociais, suas articulações com as ações do Estado na sua dimensão legislativa e suas repercussões nas possibilidades de construção, consolidação e sustentação das transformações culturais em relação à loucura, foram analisados os dados relacionados especificamente à Parada Gaúcha do Orgulho Louco.
14Os dados foram produzidos nas edições de 2015 (22,23 e 24/10/2015) e de 2016 (18/11/2016), através de conversas informais, entrevistas com interlocutoras chave, registros fotográficos, observação participantee pesquisa em materiais veiculados na internet, que se estenderam para além do período do trabalho de campo da pesquisa. As observações foram registradas em diários de campo e as entrevistas gravadas e transcritas na íntegra. Os registros fotográficos e os materiais veiculados na internet foram armazenados em arquivos específicos.Por se tratar de pesquisa com seres humanos, a pesquisa foi submetida e aprovada em comitê de ética. Os nomes apresentados no texto são fictícios, exceto aqueles que constam em documentos de domínio público. A pesquisa foi financiada pela CAPES.
15Entendo que a Parada Gaúcha do Orgulho Louco se soma a diversas manifestações populares na construção de outro lugar e formas de convívio e relação com a loucura, a exemplo do Dia Nacional de Luta Antimanicomial, celebrado em 18 de maio. Tais manifestações são plurais e, em geral, são modos de resistência ao aprisionamento da loucura em suas diferentes formas. A opção pela análise específica da Parada Gaúcha do Orgulho Louco se deu por seu caráter singular, crítico e de inversão de um campo de forças que a caracterizam como um “acontecimento” (Foucault, 2009), como será apresentado adiante.
16No contexto internacional, segundo Abraham (2016), a ideia de um Orgulho Louco (MadPride) surgiu no Reino Unido, em 1999, protagonizada por quatro homens com experiências diretas com os serviços de saúde mental. De acordo com a autora, um deles teria participado de uma parada do orgulho gay e entendia que deveria haver algo parecido entre as pessoas com problemas de saúde mental, para que pudessem se aproximar e se orgulhar de suas experiências. Ainda segundo a autora, dado o apelo provocado por tais ideias, a celebração do MadPride (Orgulho Louco) passou a ocorrer também em países como a Itália, Índia e Nova Zelândia.
17Scholtz et al. (2012, p. 69) apontam que as Paradas do Orgulho Louco no Brasil se iniciaram nos estados da Bahia e Minas Gerais, com o objetivo de “quebrar os paradigmas de exclusão da loucura” e contou com a participação de usuários dos serviços de saúde mental, familiares e profissionais. Para Ferrari (2018, p. 223), a ideia da Parada do Orgulho Louco nasceu em “2004, no I Congresso Brasileiro de CAPS realizado em São Paulo”. Segundo a autora, “seu autor é o militante catarinense antimanicomial Nilo Neto. Desde então, temos muitas paradas nos estados brasileiros: Amazonas, Santa Catarina, Bahia, São Paulo, Minas Gerais” (Ferrari, 2018, p. 223).
18No contexto do processo de reforma psiquiátrica no Rio Grande do Sul, a Parada Gaúcha do Orgulho Louco é mais um elemento revelador da importância que os agenciamentos sociais tiveram no âmbito das ações do Estado, em sua dimensão legislativae, em especial, no que se refere à conquista de políticas públicas de saúde e de saúde mental. Refiro-me aqui aos agenciamentos sociais “como práticas constituídas por diferentes atravessamentos, cruzados por diferentes linhas de força, ou seja, como campos de força permeados por relações de poder”, tal como discutido por Maluf e Quinaglia Silva (2018, p. 8).
19No Rio Grande do Sul, foram os agenciamentos sociais que possibilitaram a aprovação da Lei Estadual nº 9716 no ano de 1992 (RIO GRANDE DO SUL, 1992), quando a Política Nacional de Saúde Mental estava sendo construída e disputada no cenário nacional. A referida lei determina “a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde, o regramento de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às internações psiquiátricas compulsórias e dá outras providências”. Segundo Rolim (2018), a Lei Estadual surgiu “de um amplo processo de mobilização social”, em um contexto de ampliação da participação social na formulação de políticas públicas, como demonstrou ser o movimento sanitarista. Para Rolim (2018, p. 65),
ela foi a primeira lei de reforma psiquiátrica a vigorar no Brasil e a segunda na América Latina, tendo exercido uma influência importante nos processos legislativos transcorridos, posteriormente, em outros estados brasileiros que conseguiram também instituir um marco legal inovador na área.
20Acompanhando processos de reforma psiquiátrica em outros contextos, a Lei Estadual nº 9716/92 legitimou práticas antimanicomiais que já vinham sendo construídas em diferentes municípios do estado, como é o caso, dentre outros, de São Lourenço do Sul, Pelotas e Alegrete, município onde ocorre a Parada Gaúcha do Orgulho Louco.
21Alegrete é um município localizado no oeste do estado do Rio Grande do Sul, situado em uma zona de fronteira, com uma população aproximada de 77.653 habitantes (IBGE, 2015).Segundo Ferrari (2018), em 1989,Alegrete, assim como outros municípios brasileiros, foi estimulado a criar seu sistema local, ou seja, sua rede de atenção psicossocial para acolher e cuidar de pessoas com experiência de sofrimento psíquico. Segundo a autora,
em Alegrete, aprovamos, em 1996, nossa Lei Municipal no 2662/96 que proíbe a construção de hospitais psiquiátricos e regulamenta a Política Municipal e a Rede de Saúde Mental articulando os Centros de Atenção Psicossociais/CAPS: II, i e AD; o Serviço Residencial Terapêutico/SRT e um conjunto de Moradias Assistidas; O Serviço de Atenção Integral à Saúde Mental da Irmandade da Santa Casa de Caridade de Alegrete/ SAIS da Casa, composto por leitos de atenção integral à saúde mental e leitos clínicos; Grupos de Apoio e Suporte Mútuos em saúde mental/GAS Mental e Oficinas Terapêuticas e de Expressão junto às ESFs na cidade e no campo, no segundo distrito, bem como uma série de dispositivos de acolhimento presente nas ESFs (Ferrari, 2018, p. 220).
22Segundo Scholtz et al. (2012), Alegrete teve sua rede de saúde mental alterada em razão da constituição dos CAPS, em 1992. Para as autoras, no CAPS da cidade teve início a formação do Fórum Gaúcho de Saúde Mental que
é um braço importante em todos os setores da saúde, pois compromete-se com o orçamento participativo; está inserido no Conselho Municipal de Saúde; articula-se com outros movimentos em prol do processo de melhorias na rede de atenção à saúde do Município e regional; e está diretamente ligado à I Parada Gaúcha do Orgulho Louco (Scholtz et al., 2012, p. 70).
23A primeira edição da Parada Gaúcha do Orgulho Louco ocorreu em 2011 e se tornou lei municipal no mesmo ano. No texto da Lei Municipal n° 4885/2011 (ALEGRETE, 2011), que a institui, consta que a mesma “dedicar-se-á a mobilizar a comunidade local e regional por uma sociedade com inclusão e sem manicômios”. Nessa primeira edição, teve como tema “De perto ninguém é normal” e contou com a presença de 53 instituições e 3.000 pessoas, aproximadamente. Scholtzet al. (2012, p. 70) afirmam que
o Fórum Gaúcho de Saúde Mental Coletiva/Núcleo Alegrete (RS); a Prefeitura Municipal de Alegrete (RS), através das Secretarias de Saúde, de Educação e Cultura, do Meio Ambiente e da Assistência Social, do Colegiado Gestor do SAIS Mental; a Associação Tabatinga; o CAPS Asas da Liberdade de Uruguaiana (RS); e o programa de extensão Práticas Integradas em Saúde Coletiva (PISC) – UNIPAMPA, de Uruguaiana (RS), formam o colegiado organizador da I Parada Gaúcha do Orgulho Louco (...).
24Em entrevista com uma interlocutora-chave, ela contou que na primeira edição da Parada ainda não havia as vestimentas-fantasias, que nas edições posteriores se tornaram de uso facultativo e elaboradas por cada participante, o que conferiu, segundo ela, um tom de desfile cívico à mesma. As vestimentas-fantasias, em sua maioria, reproduzem personagens conhecidos e outros construídos por cada participante. “Durante a Parada, várias pessoas estão com os chapéus construídos em uma barraca própria para sua confecção. Nesta barraca encontram-se materiais como folhas de EVA, tesouras e cola. Cada participante pode confeccionar o seu” (Fragmento de Diário de Campo, 23/10/2015).
25Já a segunda edição, em 2012, teve como tema Qorpo-Santo - 184 anos: Loucos pela vida, SUStentando as diferenças e contou com a presença de 74 instituições e aproximadamente 5.000 pessoas. Como apresentado no blog da Parada (http://paradagauchadoorgulholouco.blogspot.com.br),
a II Parada Gaúcha do Orgulho Louco homenageou José Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo, na comemoração dos 184 anos de seu nascimento (19/4/1829). Qorpo-Santo é conhecido como Pai do Teatro do Absurdo e produziu em Alegrete a maioria de suas obras. Em 1861, de volta a Porto Alegre, segue a carreira de professor e começa a escrever sua Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade. Parecem manifestar-se, neste momento, os primeiros sinais de seus transtornos psíquicos, rotulados então sob o diagnóstico de “monomania”, sendo afastado do ensino e interditado judicialmente a pedido da própria família. QS não aceita pacificamente este seu enquadramento psiquiátrico, recorrendo ao Rio de Janeiro, sendo examinado então por médicos daquela capital, que diferem do diagnóstico inicial e não endossam sua interdição judicial. Todavia, o estigma estava posto, e o autor se vê cada vez mais isolado. Este isolamento social parece incitá-lo a escrever febrilmente, e o leva ademais a constituir sua própria gráfica, na qual viabiliza e edita sua produção textual. Qorpo-Santo é parte de nossa história, é um exemplo da defesa da cultura como política emancipatória, e um orgulho para Alegrete, para o Rio Grande do Sul e para o Brasil.
26Em 2013, o tema foi Ao preconceito digo não! Da liberdade não abro mão e contou com a presença de 5.000 pessoas, aproximadamente. Já a edição de 2014, Sou o que sou porque nós somos, teve a participação de aproximadamente 4.000 pessoas. No ano de 2015, o número de frequentadores foi o mesmo, com a temática Amai-vos uns aos loucos. Em 2016, o tema foiOs dispostos se atraem e os opostos se distraem!; e em 2017, Caminhante não há caminho. Caminho se faz ao Loqear! No ano de 2018, o mote foi Penso, louco existo, e em 2019, Liberdade mundo aflora: traga sua loucura para passear.
27Em 2015, quando foi aprovada a Lei Estadual 14.783/2015 (RIO GRANDE DO SUL, 2015), que incluiu a Parada Gaúcha do Orgulho Louco no calendário de eventos do Rio Grande do Sul, ela já havia reunido mais de vinte mil pessoas em suas cinco edições, tal como consta no blog do evento. Nesse mesmo ano, entidades da área da saúde contrárias à realização do evento, tais como o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul, o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, a Associação Médica do Rio Grande do Sul, a Associação Brasileira de Psiquiatria, a Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, a Sociedade de Apoio ao Doente Mental e aAssociação Brasileira em Defesa dos Usuários do Sistema de Saúde, publicaram uma nota de repúdio à sua realização, na qual acusavam a comissão organizadora e alguns participantes, dentre outras coisas, da exposição indevida e vexatória de doentes mentais ingênuos, desconsideração do sofrimento das famílias e oportunismo político. No que se refere aos usuários e seus familiares, a nota afirmava:
Diante das cenas lamentáveis veiculadas sobre a "Parada do Orgulho Louco", as entidades abaixo assinadas manifestam:1. É revoltante e degradante ver a irresponsabilidade e falta de sensibilidade daqueles, cuja missão seria justamente cuidar e proteger o enfermo, expondo-o publicamente.2. Nada justifica valer-se da ingenuidade de um doente mental para vesti-lo de palhaço e levá-lo a desfilar pelas ruas.3. É vergonhoso que políticos oportunistas tentem alcançar os holofotes pisando no sofrimento das famílias.4. Já estão sendo analisados instrumentos jurídicos para responsabilizar os envolvidos civil e criminalmente(Diário Gaúcho, 25/10/2015).
28Por sua vez, em nota de apoio à Parada e em resposta à nota supracitada, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná, em conjunto com conselhos de outras regiões e de outros setores afirmaram que
a ideia de que qualquer pessoa com transtornos mentais não seja capaz de falar sobre si e por si atinge diretamente uma sociedade que busca pela plenitude de direitos. É uma ideia envelhecida. O fato contemporâneo é o tom de ameaça de ir à justiça. Ora, a judicialização da vida é uma questão tão grave quanto a patologização e a medicalização. O poder judiciário é apenas uma parte das forças e interesses que compõem a sociedade. As questões que envolvem a loucura e a atenção à saúde mental (seja de pessoas que tem ou não transtorno mental) podem e devem ser debatidas em eventos científicos, mas também em fóruns populares, em espaços públicos e democráticos(Conselho Regional de Psicologia do Paraná, 30/10/2015).
29Segundo Ferrari (2018), a manifestação destas entidades provocou um debate importante tanto nas redes sociais quanto nas mídias de massa locais, regional e nacional. Entendo que tais manifestações revelam a intensidade das disputas de modelos de assistência historicamente presentes no campo da saúde mental e os diferentes modos de conceber a assistência psiquiátrica e o debate sobre a loucura, não apenas entre as entidades de classe, mas também entre as organizações civis, como apontam Lüchmann e Rodrigues (2007). Para os autores, mesmo o movimento da luta antimanicomial, que mantém a intenção comum de transformar as relações da sociedade com a loucura, é plural e complexo, visto que agrega diferentes instituições e atores sociais.
30Ademais, as disputas no âmbito jurídico-político são intensas. É importante lembrar que o projeto de lei que deu origem àPolítica Nacional de Saúde Mental, através da Lei nº 10216/2001 (BRASIL, 2001), tramitou por doze anos no Congresso Nacional, não alcançando todos os seus objetivos, a exemplo do estabelecimento de uma data precisa para a extinção dos leitos em hospitais psiquiátricos.
31Nesse sentido, é notório que o debate provocado pela realização da Parada Gaúcha do Orgulho Louco tenha alcançado, não sem tensões, um dos seus objetivos: o de desencadear processos de “reflexão e questionamento sobre os preconceitos com relação ao louco e à loucura, com o intuito de contribuir com aqueles que lutam para promover ações atentas às complexidades e especificidades dos sujeitos em sofrimento psíquico”, tal como consta no blog do evento. Entendo, como propõem Knijnik e Adura (2017, p. 30), o “território antimanicomial como lugar privilegiado de tensões e embates”.
32Em uma das edições em que foram feitas as observações da pesquisa cujos dados subsidiam este artigo, a Parada Gaúcha do Orgulho Louco compreendia três dias de atividades, cujo ponto alto foi o desfile-caminhada pelas ruas centrais da cidade. Na praça central de Alegrete, aconteciam atividades como uma feira de artesanato, exposição de banners em cavaletes, ou mesmo no tronco das árvores locais,com conteúdo que descrevia atividades desenvolvidas em escolas, universidades, serviços locais e regionais de saúde mental, além de bancas de venda e de degustação de alimentos, banca para a confecção de chapéus – denominada Oficina dos Chapeleiros Loucos –,uma banca do Projeto Livro Livre, entre outros. O clima entre os participantes era festivo e em muito se aproximava do que ocorre no carnaval, especialmente pelas vestimentas-fantasias de muitos participantes e o tom crítico e jocoso aos enunciados psiquiátricos manicomiais, tal como uma faixa no chapéu de uma participante, onde estava escrito “Louca pela Vida”.
33O conjunto das ações observadas durante a Parada Gaúcha do Orgulho Louco permitiu reconhecer entre os participantes uma crítica irreverente aos modos de viver e conviver com a loucura e, em muitos aspectos, poderia ser entendida como um acontecimento, como proposto por Foucault (2009). Para esse autor,
a história “efetiva” faz ressurgir o acontecimento no que ele pode ter de único e agudo. É preciso entender por acontecimento não uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada (idem, p. 28).
34A inversão de forças entre os saberes psiquiátricos mais conservadores e os demais parecem ter lugar na Parada, mesmo que de forma precária e provisória. Elas anunciam, de modo único e agudo, outras possibilidades de vivência e convivência com a loucura. A loucura, a seu tempo, pode ser ressignificada na ordem discursiva que impera durante a mesma, de modo que enunciar-se como louco/a é parte das estratégias de subversão do estabelecido hegemonicamente.
35Essas possibilidades de inversão e/ou enfraquecimento da dominaçãodos saberes psiquiátricos hegemônicos remetem àreflexividade sobre a experiência com a loucura e indicam algumas possibilidades de transformação da sociedade e dos sujeitos acometidos por algum tipo de sofrimento psíquico com ela. Além disso, a inversão e certa subversão dos saberes instituídos sobre a loucura incitam sua desnaturalização. A experiência, nesse sentido, permite que outras possibilidades de inscrição de si sejam produzidas e se sobreponham ou não àquelas hegemônicas.
36Trazer à tona a questão da loucura, através das temáticas propostas como, por exemplo, De perto ninguém é normal, Amai-vos uns aos loucos ou Penso, louco existo, nas atividades nominadas em referência ao Chapeleiro Maluco (personagem do livro de Lewis Carol, Alice no país das maravilhas) e nas vestimentas-fantasias utilizadas no desfile-caminhada, dentre outros, tem um efeito importante sobre as políticas públicas de saúde e saúde mental, já que faz refletir e questionar os lugares instituídos socialmente.
37Considerando a Parada como um acontecimento, único e agudo, onde se inverte a norma instituída pelo saber-poder psiquiátrico (Foucault, 2006), podemos atualizar a ideia de despsiquiatrização desenvolvida por Basaglia (1985) durante a experiência da reforma psiquiátrica italiana, reconhecida também como uma psiquiatria democrática. Para ele, a despsiquiatrização “é a tentativa de colocar entre parênteses todos os esquemas, para ter a possibilidade de agir em um território ainda não codificado ou definido” (idem, p. 29). Nesse sentido é, no mínimo, uma ampliação das possibilidades de inscrição de si mesmo no registro social e de experimentação de outros lugares e de outras interpretações possíveis sobre a loucura.
38Penso que o principal desdobramento dos agenciamentos sociais presentes na Parada Gaúcha do Orgulho Louco no que se refere às ações do Estado em sua dimensão legislativapode ser reconhecido na incorporação do evento no calendário oficial de eventos do Rio Grande do Sul, fruto das disputas enfrentadas com diferentes setores, como apresentado até aqui. Além disso, entendo que essa conquista fortalece a importância e o compromisso do estado com os princípios da reforma psiquiátrica que impulsionam a Parada e cuja sustentação se faz necessária em outras ações relacionadas à execução de políticas públicas em saúde mental.
39Todavia, o contexto de disputas no campo da saúde mental no Rio Grande do Sul é acirrado e tem acompanhadoo executivo federal em suas posições mais conservadorase de “contrarreforma”. Nuneset al. (2019) definem a contrarreforma
como um processo sociopolítico e cultural complexo que evidencia uma correlação de forças e interesses que tensionam e até revertem as transformações produzidas pelas RP nas quatro dimensões propostas por Amarante (1996): epistemológica, técnico-assistencial, político-jurídica e sociocultural (Nuneset al., 2019, p. 4491).
40Nos últimos anos, percebe-se que uma contrarreforma psiquiátrica vem sendo produzida no país por setores conservadores alinhados ao poder executivo federal. Entendo quenesses “campos de força permeados por relações de poder” (Maluf; Quinaglia Silva, 2018) que são os agenciamentos sociais, uma estratégia importante de enfrentamento seja apostar na possibilidade de reimpulsionar a reforma, através do reconhecimento das suas transformações, ainda “bastante palpáveis”, como sugerem Nuneset al. (2019, p. 4496).
41As ações do Estado no âmbito das transformações culturais a serem executadas em consonância com a Política Nacional de Saúde Mental e com a formação da Rede de Atenção Psicossocial (Portaria 3088/2011) contavam com a criação de centros de convivência e cultura que, ainda que previstos na legislação, não receberam aportes financeiros suficientes para sua ampla expansão. Issodemonstrou, de certa maneira, a pouca importância dada a cultura, trabalho e geração de renda, como argumentam Amarante e Nunes (2018). Outro aspectodestacado pelos autores sobre a dimensão legislativa das ações do Estado é que “ao mesmo tempo em que as portarias propiciaram o aumento da rede, por outro limitaram sua autonomia em termos de inovação e resolubilidade” (idem, p. 2017).
42Ainda corroboram com as dificuldades supramencionadas uma série de modificações operadas na legislação a partir de 2017 que, além de incrementar o financiamento dos leitos em hospitais psiquiátricos, através da Portaria 2434/2018 (BRASIL, 2018), transfigurou a Rede de Atenção Psicossocial, incluindo nela os hospitais psiquiátricos e as comunidades terapêuticas, conforme Portaria 3588/2017(BRASIL, 2017).
43Naqueles municípios de porte menor, onde a construção de estratégias de criação de um outro lugar para o “louco” e a “loucura” tornou-se um dos desafios do processo da reforma psiquiátrica na sua dimensão sociocultural, as dificuldades não são poucas. Para além da criação de uma rede de serviços substitutivos e da extinção progressiva e planejada dos leitos em hospitais psiquiátricos, tais localidades, articuladas com o setor da saúde e outros, têm construído diferentes maneiras, com caráter mais inventivo, para enfrentar os desafios e as dificuldadesimpostos pela realidade em que estão inseridos. Segundo Willrich (2016, p. 127),
a sensibilização da comunidade para o tema da exclusão da loucura, da diferença é uma estratégia que marca o trabalho em saúde mental de Alegrete. E um acontecimento, talvez o mais significativo nos últimos anos, para desenvolver essa estratégia foi a criação da Parada Gaúcha do Orgulho Louco (PGOL).
44Desta maneira, a constituição de estratégias para a transformação sociocultural afeta tanto os sujeitos acometidos por algum tipo de sofrimento psíquico quanto a sociedade como um todo. Nesse sentido, penso que a Parada Gaúcha do Orgulho Louco tem provocado processos de desinstitucionalização, como desdobramento de um evento em que a cidade participa de uma ação iniciada por diferentes atores sociaise, logo, é assumida pelo estado como uma festividade oficial. Fagundes (2018, p. 20) argumenta que “fazer caber a loucura na cidade sem excluir nem normalizar exige que a própria cidade modifique seus contornos, seus fluxos, seus modos de conviver e cuidar”.
45Trabalhos como o de Andrade e Maluf (2014; 2015), Scarcelli (2011), Passos (2009) e Belloc et al. (2017) demonstram o quanto a reforma psiquiátrica impactou as cidades e oportunizou novas relações dos sujeitos acometidos por algum tipo de sofrimento psíquico na e com a rua. Destaco aqui a relevância das experiências singulares e institucionais dos sujeitos que produzem o processo da reforma psiquiátrica, conferindo a ele um caráter dinâmico e plural.
46Em diferentes contextos, tais trabalhos apontam para a constituição de estratégias macro e micropolíticas que buscam transformar o imaginário social em relação à loucura. Demonstram, outrossim, a importância da atuação direta, através de diferentes manifestações artístico-culturais, nos territórios de existência dos sujeitos, apostando que, tal como apresentou Venturini (2009, p. 2004), “na esfera local – no espaço físico dos lugares onde moramos, vivemos, que atravessamos – se aninham processos e fenômenos que podem dizer muito sobre a realidade global do mundo”.
47O contexto da saúde mental mencionado anteriormente, tem produzido limitações na organização e execução da Parada Gaúcha do Orgulho Louco. Tais limitações estão localizadas em questões macrossociais, como o corte de orçamento para a sua realização e o incremento da ideia de que ela poderia excluir ainda mais um grupo que, não partilhando das regras de convivência convencionadas hegemonicamente, deveria e/ou poderia ocupar a cidade apenas em momentos em que há uma parada. Tal ideia remete ao apontado por Fonseca (2007, p. 42-43),sobre o fato de que
hoje, sabemos – e de sobra – que a sociedade sem manicômios proposta encontra seus maiores entraves no manicômio-prisão do pensamento e da vida, manicômio mental [Pelbart] que resiste a promover movimentos no sentido da inclusão social dos loucos, agora libertos, por lei, dos muros da cidade manicomial.
48Ainda sobre essa noção, retomo a ideia de Pelbart (1990), que em seu texto sobre o manicômio mentalsugere que não basta acolher os loucos ou relativizar a loucura se a desrazão permanecer confinada. O autor argumenta que se trata
de saber primeiramente se faremos com os loucos aquilo que já se fez com homossexuais, índios, crianças ou outras minorias – ou seja, definir-lhes uma identidade, atribuir-lhes um lugar, direitos e reconhecimento, até mesmo privilégios – mas ao mesmo tempo torná-los inofensivos, esvaziando seu potencial de desterritorialização (idem, p. 132).
49Nesse sentido, um aspecto interessante é a ideia de uma identidade política suscitada pela Parada, ao se falar em “orgulho” louco, ou seja, um elogio à loucura que fica evidente, por exemplo, no “selo gaúcho do orgulho louco”, dentre outras manifestações do evento. Tal identidade, ainda que precária e provisória, provoca uma inversão crítica, um uso dos códigos identitários no sentido de “enfraquecer a dominação” dos mesmos na produção subjetiva dos sujeitos, como sugeriu Foucault (2009), ao se referir ao “acontecimento”.
50Susana, usuária de um dos serviços de saúde de Alegrete e uma das entrevistadas durante a Parada Gaúcha do Orgulho Louco em 2016, em determinado momento da entrevista, disse: “Quando nós paramos pra falar da primeira parada, eram mais ou menos, mais de 60 pessoas que fazem terapia e muitos até hoje fazem... todos se olharam, eu fui uma, e pensei: mas sair na rua? Dar a cara a tapa? Dizer que eu sou louca?” (Susana, 47 anos).
51Susana, em outro trecho de sua entrevista, comentou sobre a importância da Parada tanto para ela como para os demais moradores da cidade. Para ela, e quiçá para os demais, a identificação dos participantes com um movimento coletivo permitiria outras maneiras de ver e serem vistas/os, não apenas como “loucas/os”, mas como parte de um coletivo. Nesse caso, os códigos identitários não serviriam para fixar os sujeitos, mas para embaralhá-los, questionando os limites entre a normalidade e a anormalidade, ou mesmo entre a razão e a desrazão. O que se percebe, no caso da Parada, é que quando tais códigos são reafirmados – como enunciado na temática Penso, louco existo, Amai-vos uns aos loucos ou, ainda,De perto ninguém é normal –, eles o são em função de uma razão estratégica, performática e como resistência aos saberes psiquiátricos instituídos historicamente.
52Nesse contexto, é possível perceber um reposicionamento subjetivo por parte daqueles que historicamente foram impedidos de transitar pelas cidades. Clara, uma das interlocutoras-chave entrevistadas, ao contar sobre os efeitos da Parada Gaúcha do Orgulho Louco, disse que houve transformações nas relações sociais na cidade a partir da realização da Parada. Em suas palavras:
eu acho que houve uma evolução no sentido assim, na primeira parada eram poucas as pessoas, as pessoas tinham vergonha de se expor, entendeu? [...] Ainda mais uma cidade da fronteira, tu sabes como é o povo gaúcho... Ano passado (2015) a gente era mais de cinco mil, a diferença é que na primeira não era pouca gente, mas não existia fantasia, parecia que a gente estava desfilando. Hoje em dia, está todo mundo fantasiado, pulando, dançando, é uma loucura... é pra mostrar, ficam felizes em ter que sair... (Clara, 34 anos, 2016).
53Em sua fala, Clara demonstrou o quanto a Parada tem possibilitado aos sujeitos outros modos de subjetivação e mesmo ressignificação de experiências de sofrimento, através do coletivo formado durante as edições do evento. Para ela, o incremento no número de participantes, a confecção de vestimentas-fantasias e o tom festivo e jocoso foram fundamentais para o êxito da proposta da Parada. No conjunto de sua entrevista, Clara fez referência a um possível conservadorismo presente na cultura gaúcha e em municípios localizados em zonas de fronteira, como Alegrete.
54Ainda que tal interpretação possa remeter ao fato de o município estar longe da capital do estado e, por isso, ser percebida como periférica e “menor”, entendo que possa ser compreendida a partir do argumento de Cardia (2009, p.115) de que“asfronteirassão, sobretudo culturais, construções de sentido, fazendo parte do jogo de representações que estabelececlassificações,hierarquiaselimites,guiandoo olhareaapreciaçãosobreo mundo”.
55Na fala de Clara, assim como na de outras pessoas com quem conversei, evidenciou-se a construção de um coletivo nos termos propostos por Escóssia e Kastrup (2005). Para as autoras, um coletivo deve ser entendido em termos de multiplicidades que produzem agenciamentos capazes de criar e escapar do já estabelecido. “Cabe ressaltar que este plano coletivo e relacional é também o plano de produção de subjetividades” (idem, p. 303), dizem elas.
56Entendo que a constituição desses coletivos, tais como os advindos das Paradas do Orgulho Louco, são indícios de que a reforma psiquiátrica tem ampliado as possibilidades de produção subjetiva. Como apresentado por Guattari e Rolnik (2008), “a subjetividade não é passível de totalização ou centralização no indivíduo. (...) a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social” (idem, p. 40). Assim, ao se produzirem em um contexto social em que as possibilidades de registro de si se ampliam, os processos de subjetivação se produzem de forma múltipla e são potentes frente aos retrocessos e às dificuldades que enfrentam.
57Segundo Ferrari (2018, p. 228, grifo da autora), a Parada reúne vários atores sociais que
autonominados de mentaleiros, estes militantes sabem que nestes encontros nascem novas possibilidades de criação e invenção para esta rede cultural, na medida em que o manicômio mental, este espectro que assombra as práticas, tenciona para que retrocedamos aos tempos sombrios e frios do estigma e do preconceito.
58Ante o exposto, é possível reconhecer que a dimensão sociocultural do processo de reforma psiquiátrica implica na transformação coletiva e singular da vivência e convivência com a loucura e suas diferentes apreensões e, em termos da Parada, as contribuições são muitas. Ao assumir um caráter festivo, divertido e ao mesmo tempo combativo, opera uma inversão crítica das normas e dos padrões estabelecidos socialmente, como argumentei anteriormente. Auxilia nesse argumento a ideia apontada por Amarante e Torre (2017, p. 766), de que as manifestações artístico-culturais são “(...) estratégias de criação de formas de inclusão social e familiar e participação em espaços de lazer, convivência, trabalho e mobilização coletiva”.
59A incorporação da Paradano calendário de eventos do estado aponta, ainda que com limitações, para uma conquista política dos atores sociais envolvidos em sua consolidação. Ao garantir a realização anual do desfile, o estado precisa reafirmar seu compromisso com a reorientação da assistência psiquiátrica e a construção de, ao menos, estratégias e/ou espaços de discussão e reflexão sobre a temática da loucura e suas terapêuticas. Caso não o faça, provavelmente encontrará resistência por parte daqueles atores sociais interessados/as em realizá-la. Além disso, convoca nossas reflexões para a articulação entre os diferentes planos da política (Andrade; Maluf, 2014), bem como para os agenciamentos sociais (Maluf; Quinaglia Silva, 2018) que as sustentam.
60As análises realizadas demonstram que a Parada Gaúcha do Orgulho Louco anuncia um conjunto de transformações colocadas em curso pela política pública de saúde mental e evidencia algumas possibilidades de renovação das relações da sociedade com aloucura e dos sujeitos em suas experiências de desinstitucionalização. As mudanças produzidas até então se mostram capazes de fazer frente aos retrocessos impostos ao campo da saúde mental brasileiro nos últimos anos e se constituir como uma estratégia de contra-contrarreforma psiquiátrica, tal como discutido por Nunes et al. (2019).
61Ao se instituir como parte dos eventos oficiais locais e do estado e, com isso, conquistar respaldo jurídico-político, essa iniciativa sociocultural proporciona diferentes estratégias de enfrentamento do sofrimento psíquico. Percebe-se o deslocamento do lugar historicamente construído para os/as loucos/as e a loucura. Estes enfrentamentos não garantem que a reflexividade esteja presente entre todos os atores políticos envolvidos nos processos de desinstitucionalização, entretanto, mantêm seu potencial de embaralhamento dos códigos e normas vigentes.
62Por fim, penso que as transformações culturais produzidas no contexto da reforma psiquiátrica possibilitaram a construção de diferentes mecanismos de interlocução e relação dos sujeitos com a loucura, de modo coletivo e singular, como evidenciado na Parada Gaúcha do Orgulho Louco. Tais transformações ampliaram as possibilidades de produção subjetiva singularizada em diferentes registros e poderão se constituir como resistência aos retrocessos presentes nos diferentes planos da política pública de saúde mental no Brasil atual.