Poder e Governação
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Friday May 17, 2019 02:58 by Pedro Wandelli Góis - União Anarquista Portuguesa
Um Ensaio Crítico à Proudhon
Ao longo deste ensaio, desenvolverei o conceito de “Sistemas de Poder” ou “Sistemas Políticos” como ideologia política, sujeito imaterial e indivisível nas relações sociais. A partir da compreensão deste conceito, situarei os quatro Modelos de Governação existentes na história política da humanidade. Os Modelos de Governação podem ter maior ou menor impacto nos governos ao longo da História, tendo em vista as suas próprias necessidades de buscar, em outros Modelos de Governação, soluções inexistentes em si para as demandas e necessidades específicas de cada sociedade, em cada época distinta.
“Nada de arbitrário, mais uma vez, na política racional, que cedo ou tarde não se deve distinguir da política prática. O arbitrário não é o fato nem da natureza nem do espírito: não é nem a necessidade das coisas nem a dialética infalível das noções que o engendram. O Arbitrário é filho, sabem de quem? O seu nome o diz: do livre ARBÍTRIO, da Liberdade. Coisa admirável! O único inimigo contra o qual a Liberdade se deve manter em guarda, no fundo não é a Autoridade, que todos os homens adoram como se fosse a Justiça; é a própria Liberdade, liberdade do príncipe, liberdade dos grandes, liberdade das multidões, disfarçada sob a máscara da Autoridade.”
(Proudhon, “Do Princípio Federativo”)
Capítulo Primeiro
A Origem e o Desenvolvimento Conceitual da Política
Platão, em “A República”, é o primeiro autor a propor uma reflexão sobre a melhor fórmula para garantir uma harmoniosa administração de cidade, livrando-a do completo caos. Ao desconstruir a tese do sofista Trasímaco, que entendia que a força é um direito e logo a Justiça seria garantida somente aquele que é mais forte à ponto de impor-se sobre os demais, Platão concentra-se na definição de Justiça e como seria a autêntica aplicação da Justiça perante à comunidade, concluindo que a melhor definição do ato de governar é estar à serviço dos governados. É curioso notar que, apesar de ter sido traduzido como “A República”, o título original do escrito, em grego, poderia ser traduzido como “A Politéia”.
O termo “política” remete, portanto, à Grécia Antiga, sendo originalmente cunhado para especificar um determinado grupo de cidadãos (polítikoi) que integram a pólis grega, sendo uma espécie de evolução etimológica do termo politeia, que representa a totalidade dos procedimentos relativos à pólis, como a acepção da própria cidade-estado (pólis), mas também sua estrutura social e sua produção coletiva.
A pólis grega pode ser divida em duas grandes esferas: a privada e a comunitária. Na Antiguidade Clássica, portanto, a política era relacionada à polis e a vida coletiva dos cidadãos, já que eram estes que, à partir de votações diretas em uma assembleia, decidiam e executavam as diretrizes e regras para a vida em comunidade, dentro das cidades-estado gregas. Vale ressaltar que a esfera privada do cidadão (património, casamento e família) não era moldada pela política, reservando-se às decisões individuais de cada cidadão.
Percebemos, portanto, que o termo “política” em sua essência, não diz respeito somente à estrutura social e produção coletiva da vida comunitária dentro da pólis grega, mas principalmente a concretização da existência de uma dicotomia entre o coletivo e o individual, de forma que a “política” na sua origem, também era um conceito que englobava a individualidade do cidadão, respeitando o processo individual para a tomada de escolhas, baseado na diversidade de formas de pensamento de cada um dos indivíduos dentro de uma esfera privada da vida em comunidade. Apesar de não atuar diretamente sobre a esfera privada da vida, o termo “política” engloba a noção de respeito do coletivo sobre às decisões individuais de cada cidadão.
Contudo, a percepção do termo “política” precisa ser enquadrada em uma perspectiva histórica, sendo a própria concepção do termo alterada conforme o avanço da compreensão humana acerca de si, como individuo e das relações comunitárias para a base do que entendemos como sociedade. Nicolau Maquiavel foi o primeiro escritor, ainda no século XVI, à analisar o conceito de “política” não como um estudo da dicotomia entre a produção comunitária e a individual — ou entre as esferas públicas e privadas da vida cotidiana -, mas como a “arte” de conquistar, manter e exercer o poder através de um governo. Ao defender a centralização do poder e publicar sua mais célebre frase em que “os fins justificam os meios”, Maquiavel torna-se o pai da ciência política: o primeiro teórico a compreender a política como um conceito que engloba não só o poder em si, mas o processo de formação e consolidação do poder na sociedade. A evolução conceitual da política está ligada não somente ao desenvolvimento histórico da compreensão do termo em si, mas a própria necessidade humana de estabelecer regras para o convívio do indivíduo dentro da sociedade, necessidade esta completamente mutável dentro de uma perspectiva histórica. Se no classicismo grego, existe a clara delimitação entre o espaço de produção coletiva e o espaço de produção individual, o próprio desenvolvimento histórico das compreensões do individuo e da comunidade faz com que o termo política sofra uma alteração conceitual ao longo da história.
Na pólis grega, a compreensão de política limitava-se à análise da dicotomia entre o individual e o coletivo. O poder decisório da vida coletiva caberia à comunidade, enquanto o poder decisório sobre a vida individual caberia somente ao indivíduo, gerando assim, uma descentralização do poder. Parte dele reside sob a égide da comunidade, enquanto outra fração reside na própria consciência de cada indivíduo. Contudo, o desenvolvimento histórico das sociedades remodelou a acepção do termo, consolidando esta dicotomia entre o público e o privado, mas indo mais além ao vincular o processo de tomada de decisão do indivíduo ao processo de tomada de decisão da própria comunidade, deixando assim, o indivíduo de ser completamente autónomo na sua tomada de decisão sobre a esfera privada da vida.
A partir de Maquiavel há, portanto, uma mudança no eixo no processo de tomada de decisão. Se na Grécia antiga, o pensamento clássico desmembrava o poder de decisão entre as esferas privada e pública, descentralizando o poder, à partir dos escritos maquiavelianos, a percepção de que política é exatamente o oposto: a centralização do poder em um indivíduo, para que este possa controlar a comunidade, interferindo diretamente não só na tomada de decisão da vida coletiva mas, principalmente, vinculando à tomada de decisão da vida particular de cada indivíduo à um poder centralizado e indivisível. Se no classicismo, existe a noção de que o bem-estar coletivo é atingido através das decisões coletivas sobre à comunidade e o bem-estar individual é atingido através das decisões individuais sobre a vida privada, existindo um poder descentralizado, com Maquiavel, o novo revestimento conceitual que o termo “política” recebe, permite que a teoria da ciência política foque no estudo do poder indivisível, no poder centralizado na tomada de decisão não só sobre a vida comunitária, mas principalmente sobre a vida individual de cada cidadão.
Logo, surge a necessidade natural de explicar conceitualmente o termo “autoridade”, como uma entidade que tem a capacidade de centralizar em torno de si todo o poder coletivo e individual. É claro que, mais uma vez, a perspectiva histórica precisa ser considerada como um fator chave para a elaboração de uma teoria política que não só explique os fatos sociais, como compreenda seus efeitos na própria produção de poder. A elaboração, por parte de Hobbes, no século XVII, da obra “O Leviatã”, tem como ponto de partida o estado natural da natureza humana, ao qual o autor associa uma expressão latina “Bellum omnia omnes” — A guerra de todos contra todos -, para designar a natureza conflituosa do homem, convivendo em comunidade. Logo, Hobbes não só faz uma análise conjuntural dos fatos sociais que o rodeiam, mas cria uma teoria política para explicar os efeitos destes mesmos fatos, propondo não só a centralização do poder em torno da figura de uma autoridade suprema, denominado de “leviatã”, como é o primeiro autor a propor a existência de um contrato social como a noção de uma entidade imaterial, a qual todos os cidadãos estão associados em uma espécie de contrato, onde o indivíduo abre mão de seus direitos individuais para obter benefícios da ordem política.
Hobbes, centralizador e contratualista, sugere que a “liberdade” ou o estado natural do homem gera um estado permanente de conflito — “Bellum omnia omnes” -, que precisa ser domado por uma autoridade suprema e inquestionável, detentora de um poder indivisível e centralizado em torno de um Estado absolutista, com intuito de garantir a paz e a coesão social. Esse Estado baseia seu poder ou sua força política em torno de um só fator: o contrato social. Hobbes propõe, portanto, que o contrato social é um redutor das liberdades individuais, não em detrimento do poder centralizador da autoridade, mas sim em detrimento da paz e da coesão social. A liberdade individual e paz social são, para Hobbes, conceitos diametralmente opostos. Cabe, portanto, à autoridade — com um poder absoluto e centralizado — o papel de suprimir liberdades individuais em nome de um bem-estar coletivo, através de um contrato social. É razoável dizer que, a partir da interpretação hobbesiana, a conceituação do termo política passa a resumir-se na ciência que estuda o poder através de um contrato social.
Jean-Jacques Rousseau seria, no século seguinte à Hobbes, o primeiro autor à preocupar-se não somente da compreensão da natureza do contrato social como fenómeno político, mas compreender o processo de legitimação do contrato social. Indo em caminho contrário à Hobbes, no sentido de considerar a natureza humana como boa, sendo a sociedade, regida pela política, como fator preponderante para que o homem “desvirtue-se”, Rousseau propõe que o contrato social seja um pacto comunitário entre indivíduos para criar uma sociedade e não um pacto de submissão, do povo ao Estado, como propõe Hobbes, à medida que que não poderia haver um contrato social baseado na submissão pela força, já que a liberdade seria a condição básica na natureza humana. Ao diferenciar o direito do mais forte como fato do direito legítimo como perspectiva moral, baseada na razão, Rousseau reforça a ideia de que o pacto social é uma ferramenta importante na constituição do povo, no sentido associativo, já que em seu estado natural os homens não estão associados entre si, proporciona a noção de liberdade civil, em detrimento da liberdade natural. A liberdade civil, limitada pelo direito do outro, difere-se da liberdade natural — que é o direito, através da força, do homem sobre tudo aquilo que puder alcançar — à medida que produz uma igualdade moral e legítima, ao substituir o instinto natural humano pela Justiça. Em síntese, Rousseau afirma que o pacto social, em caráter associativo, gera liberdade civil, que garante os direitos, os bens e os interesses de todos os indivíduos sendo delimitada pela vontade geral e não pela força.
A política passa por um processo, a partir dos teóricos contratualistas, de normatização que visa estabelecer a legitimação da autoridade. No século XIX, Proudhon escreve, em “Do Princípio Federativo”, sobre esta dicotomia entre o coletivo e o individual dentro do campo político, estabelecendo dois princípios fundamentais, diametralmente opostos mas intimamente dependentes um do outro, a que nomeia de “autoridade” e “liberdade”, sendo a essência do poder a principal característica que os difere. Enquanto a “autoridade” provêm de um poder de qualidade indivisível, a “liberdade”, por outro lado, provêm de um poder divisível.
Ao tentar entender apenas os Modelos de Governação, ou seja, a forma como os governos buscam estabelecer sua ação política dentro de um sistema de poder, Proudhon discorre sobre quatro “formas governamentais”, a que chamo de Modelo de Governação, sendo duas destas formas relacionadas ao Regime da Autoridade e outras duas formas relacionadas ao Regime da Liberdade. Ora, o que seria o “Regime da Autoridade” ou “Regime da Liberdade” se não a própria ideologia política?
Os “Regimes da Autoridade e da Liberdade”, em Proudhon, são distinções ideológicas de poder, completamente opostas entre si. O que Proudhon chama de “Regime”, nomeio como “Sistema de Poder”. Para Proudhon este Regimes eram as noções primordiais, a priori, frutos da tendência do espírito humano em reduzir todas as suas ideias à um princípio único, eliminando as outras ideias inconciliáveis com este princípio. Ou seja, o Regime da Autoridade e o Regime da Liberdade são concepções políticas antagónicas, cuja existência de uma delas elimina automaticamente a existência de qualquer princípio oposto. Proudhon descreve, na realidade, os Sistemas de Poder, que consistem na ideologia política que pauta toda a produção política. Os Sistemas de Poder são, e sempre serão, puros, nunca podendo coexistir com outro Sistema de Poder. As únicas situações onde dois Sistemas de Poder distintos são confrontados é na Revolução, onde somente um destes Sistemas de Poder permanecerá como princípio político da sociedade, sendo o outro, inconciliável ideologicamente ao primeiro, tende à desaparecer desta sociedade.
Proudhon destaca, no que chama de Regime de Autoridade, dois modelos de governação, chamados de formas de governo ou à maneira como se distribui e como se exerce o poder: a monarquia ou patriarcado, à qual denomina “Governo de todos por um” e a panarquia ou comunismo, à qual denomina de “Governo de todos por todos”. Excluí como exemplos de panarquia, ou governo de vários, todos os tipos de governo oligárquicos, como a aristocracia, como o governo da nobreza; a plutocracia, como o governo das classes mais ricas; a tecnocracia, como o governo daqueles que tem conhecimento; e a oclocracia, como o governo da plebe, já que seriam modelos concebidos fora de uma lógica racional, baseados na usurpação, na violência e no empirismo e portanto, não seriam governos a priori, constituídos por um só princípio.
Historicamente anterior a Comuna de Paris, em 1871, Proudhon classifica o comunismo como sendo o governo de todos sobre todos. Coloca-o dentro de um sistema de governação que chama de ‘panarquia’ e classifica-o como um regime da Autoridade. É preciso diferenciar o comunismo, como sendo a propriedade comum sobre os meios de produção; e o socialismo marxista, como sendo a etapa de transição para o comunismo a partir da perspectiva não da desmobilização das estruturas de Estado — como propõe Proudhon — mas através da conquista do Estado burguês, por parte dos operários. Nesse sentido, a transição entre o capitalismo e o comunismo, em Marx, passa, necessariamente, por um Estado proletário que sirva de instrumento de manutenção da ordem revolucionária e cujo aparelho estatal seja capaz de defender os trabalhadores do processo contra-revolucionário, impetrado pela ordem burguesa. O maior exemplo desse processo de ‘conquista do Estado’, por parte do proletariado, e na sua transformação em um Estado operário deu-se com a Revolução Russa de 1917.
Proudhon afirma, erradamente, em sua análise teórica que circunda a natureza do comunismo, que a forma do governo de todos sobre todos, classificando-o como ‘panarquia’, ou um regime da Autoridade. Erra porque o comunismo, essencialmente, baseia-se na propriedade comum à todos, rompendo com a lógica da propriedade privada. Nessa perspectiva, apesar de ser um regime cuja forma é o ‘governo de todos por todos’, não existe um Estado que atue no sentido de institucionalizar a exploração de uma classe sobre a outra. Logo, não existe Autoridade constituída na figura do Estado, no modelo de governação comunista. A Autoridade é proveniente da auto-gestão, por parte dos trabalhadores, dos meios de produção. Isso implica dizer que, em outra perspectiva, e graças a dialética marxista, é necessário compreender que o comunismo é o resultado histórico das contradições inerentes ao capitalismo, bem como da superação entre a objetividade das crises do capital e a subjetividade emancipatória da classe proletária, em sua constituição como sujeito revolucionário. De fato, em Marx, o desenvolvimento histórico que garante um governo comunista — ou seja, onde a propriedade é comum à todos e, não havendo classes, também não há Estado — passa, necessariamente, pela organização de um Estado que seja a ordem social de uma classe (o proletariado) que impõe-se sobre outras classes (a burguesia): a democracia proletária ou a ditadura do proletariado.
Logo, em diálogo com o marxismo, é impossível classificar o regime transitório, pautado na manutenção do Estado pela classe operária durante o processo de transição até o comunismo, como sendo o próprio comunismo, como produto final da luta de classes. É inegável que, ao mesmo tempo que Proudhon erra ao classificar o comunismo como estando ligado ao Princípio da Autoridade — já que, sem propriedade privada não há classe, sem classe não há Estado e sem Estado não há Autoridade — , Proudhon acerta ao classificar o regime transitório até o comunismo, o socialismo marxista, como sendo ligado ao princípio da Autoridade, a medida que o Estado passa a ser a ordem do classe operário sobre as outras classes.
A organização da classe proletária, em um Estado, que garanta a imposição dessa classe sobre todas as outras, essa sim pode ser considerada uma panarquia, pouco diferente de uma oligarquia, por exemplo, a medida que existe um governo de uma elite política, uma casta burocrática, sobre o povo. Não existe diferença entre o regime de transição para o comunismo da lógica oligárquica, já que o socialismo baseia-se, historicamente, na socialização dos meios de produção, no controle do Estado burguês por parte do proletariado, tornando-o um Estado proletário através de uma organização política, centrada no aparelho partidário. É impossível teorizar sobre o governo de todos por todos, como remete Proudhon, enquanto a última análise sobre o modelo de governo comunista deve ser constituída, exatamente, pela transição de um Estado socialista — ou, pelo menos, como historicamente, apresentou-se esse processo transitório - onde existe uma burocracia político-partidária sobre as massas. Logo, o modelo de governação socialista, onde a produção é social, pode ser considerado uma panarquia, em retrospectiva histórica. Logo, é um Regime da Autoridade. Contudo, o modelo de governação comunista, onde a produção é comum, não pode ser considerado uma panarquia e sim um modelo de auto-gestão, tal como proposto por Proudhon como sendo um Regime de Liberdade.
Em oposição ao Regime de Autoridade, Proudhon apresenta o que ele denomina como Regime de Liberdade, cuja principal natureza é a divisibilidade do poder sendo, portanto, um princípio pessoal, individualista crítico, um agente da divisão e da eleição. Sendo o principal aspecto do princípio da liberdade, portanto, a divisão do poder pelos cidadãos e não o fato do poder ser centrado indivisivelmente na figura da Autoridade, seja ela autocrática ou oligárquica, permite-nos concluir que o Regime da Liberdade, para Proudhon, seria liberal, democrático e contratual. Neste momento, é fundamental o pleno entendimento da acepção de Rousseau no que tange ao contrato social como convenção, ou seja, o Estado surge como produto da natureza inteligível, produto da racionalidade e da lógica humana.
É importante destacar que, dentro do Regime da Liberdade, Proudhon cita dois modelos de governação que seriam norteados pela divisibilidade do poder entre os cidadãos: a democracia e a anarquia, que o autor prefere nomear de self-government ou auto-governo. Cabe aqui uma colocação acerca da verdadeira natureza da democracia, que Proudhon chama de “governo de todos por cada um”, embora a democracia ateniense — ou o seu modelo-ideal proposto por Platão em “A República” — pudesse apresentar-se como um Regime de Liberdade, é impossível considerarmos a democracia liberal burguesa como um modelo cujo princípio primordial é a liberdade. Mesmo se levarmos em conta que Proudhon fala da democracia em seu estado puro, fazendo alusão ao modelo político da Grécia Antiga, se formos analisar este modelo de governação sobre a fria ótica da dicotomia entre “Autoridade” e “Liberdade”, não vejo como enquadrá-la de outra forma que não fosse um sistema de poder autoritário, levando em conta que somente os cidadãos do sexo masculino é quem detinha os direitos políticos e, consequentemente, o poder. Não seria o sexismo uma forma sutil de consolidação de uma oligarquia? Ou o género não poderá servir de parâmetro social para definirmos uma oligarquia? Mesmo que Proudhon estivesse certo em apontar a democracia ateniense como um Regime de Liberdade pelo aspecto da divisibilidade do poder entre os cidadãos que podiam votar na Ágora ateniense, seria tolo considerar que, fundamentalmente, o princípio da liberdade pudesse estar presente num modelo de governação oligárquica.
O segundo modelo de governação, dentro de um Regime de Liberdade, seria a anarquia ou o que Proudhon chama de self-government ou auto-governo. É curioso notar que Proudhon simplifica a noção de anarquia à redução das funções políticas às funções industriais, sendo a ordem social resultante da simples existência de transações e trocas, concluindo que na anarquia “todos seriam autocratas de si próprio”. De forma geral, Proudhon propõe dois princípios: a Autoridade e a Liberdade, sendo a Lei necessária para que o princípio da autoridade, ao ser historicamente anterior ao princípio da liberdade, sirva de matéria para a elaboração da Liberdade, baseada na razão e no direito. Cabe, aqui, um breve comentário sobre a minha discordância quanto à plena percepção de auto-governo, como modelo puro de poder, sustentado por uma Jurisprudência ou uma Lei que não seja única e exclusivamente uma lei de auto-consciência de cada indivíduo. É filosoficamente impossível conceber um auto-governo onde cada cidadão é autocrata de si mesmo, como propõe Proudhon, para à seguir enfatizar que a Lei seria o fator de coordenação entre os princípios da Autoridade e da Liberdade.
Ou cada indivíduo é autocrata de si mesmo, com a sua própria consciência servindo como base moral e ética para o cumprimento do pacto social, em um pleno Regime de Liberdade ou faz-se necessária a Lei ou a Jurisprudência para equilibrar a força entre estes dois princípios antagónicos e servir, por si mesma, como base fundadora do pacto social. Neste caso, a Lei não gera Liberdade, no sentido puro do termo, apesar de reduzir a centralidade do poder em torno da Autoridade. Não existe Lei maior que a própria consciência de cada indivíduo, aí reside a verdadeira Liberdade, baseada no pacto associativo em estado puro. Qualquer outra noção de liberdade que seja produto da Lei ou da Jurisprudência é apenas a legitimação do princípio da Autoridade, através de um pacto social de submissão. Ao menos, Proudhon reconhece que nem a democracia nem a anarquia, em sua plenitude e na integralidade de sua ideia, se constituíram em algum lugar, o que reforça a tese apresentada neste escrito sobre a não-existência do princípio da Liberdade na democracia ateniense e/ou na democracia liberal burguesa, além da impossibilidade de conciliar Liberdade e Jurisprudência em um modelo de auto-governação.
Destaco que, se assumirmos que Platão é o primeiro a conceituar “política”, mesmo antes da criação do próprio termo, podemos perceber que em um primeiro momento a “política” representava uma clara dicotomia entre o poder coletivo e o poder individual, equilibrados na pólis grega com intuito de gerar justiça e harmonia social. A grande ruptura com esse ideal bivalente da política surge com Maquiavel e sua tese de centralização da política, em torno da figura autoritária do monarca, com intuito de consolidar o poder. A partir daí, Hobbes explica e conceitua historicamente o termo “Autoridade” através da ideia de um contrato social, sendo esta ideia central contratualista desenvolvida por Rousseau para legitimar o poder político do Estado sobre o povo. Proudhon incumbe-se apenas de identificar dois princípios básicos e antagónicos presente na literatura política desde Platão — a Autoridade e a Liberdade -, e torná-los os pilares elementares da sua tese sobre modelos de governação.
Proponho-me, no próximo capítulo, à desconstruir a noção primordial filosófica de Proudhon para a elaboração de seus modelos de governação, onde a Autoridade e a Liberdade mantêm uma ténue relação de interdependência, apesar de todo o antagonismo entre as partes. Creio que a existência desses dois princípios básicos são inegáveis no desenvolvimento histórico da humanidade, mas moldar toda a sistemática do poder em torno de dois termos imateriais e subjetivos me parece uma completa carência de lógica e de razão. Centralizo minha tese, portanto, nos graus de Autoridade e Liberdade de cada um dos diferentes Sistemas de Poder, tentando explicar conceitualmente esses sistemas através de seus modelos de governação, tal como Proudhon, sem perder de vista o aspecto central deste escrito, que é uma análise epistemológica da própria ciência política.
Capítulo Segundo
Sistemas de Poder & Modelos de Governação
Alguns leitores poderiam interpretar meus comentários à respeito da tese de modelo de governação em Proudhon como uma crítica direta ao autor, o que seria uma inverdade. Toda a estrutura dos Sistemas de Poder e seus respectivos Modelos de Governação que eu objetivo conceber neste escrito é parte do desenvolvimento — jamais da negação! — das noções e conceitos políticos em Proudhon. Creio firmemente que Proudhon, em sua genialidade, esbarra na limitação temporal na qual estão inseridos seus escritos e emperra na dualidade extremada ao mesmo tempo que propõe uma interligação fundamental entre conceitos filosóficos tão distintos como Autoridade e Liberdade.
Não é meu objetivo levantar questões filosóficas acerca da Autoridade e da Liberdade. Não é essa minha tarefa neste escrito. Busco compreender a verdadeira natureza da política, da transição teórica para o desenvolvimento prático dos conceitos e a sua própria aplicação no mundo. Parto do pressuposto teórico, em Proudhon, não só da existência desses dois princípios filosóficos antagónicos e complementares que norteiam a ciência política, como encontro-me como contratualista em Rousseau, ao entender a concepção de Estado como produto de um pacto associativo baseado na lógica e na razão.
A questão primordial, ao discutir Proudhon, não é sobre a aplicabilidade das ideologias políticas em modelos de governo. É claro que, se eu me propusesse à isto, fracassaria tal como Proudhon e, não me restando outra alternativa, anunciaria que nenhum modelo de governação, em estado puro, jamais existiu na história sócio-política da humanidade. A questão principal deve focar-se sobre como os Modelos de Governação impactam mais ou menos em cada governo em específico, não pela análise de cada ato político do governo em si, mas pela compreensão dos diferentes graus de Liberdade e de Autoridade presentes em cada Modelo de Governação, dentro de um Sistema de Poder.
Para isso, faz-se necessário compreender o que são os Sistemas de Poder. Não existe melhor definição do que a proporcionada pela etimologia e hermenêutica dos próprios termos em si: “sistema” é um conjunto de elementos interdependentes de modo à formar um todo organizado; “poder” é a capacidade de realizar algo. Logo, a sistemática do poder, nada mais é do que a identificação, análise, organização e administração de elementos sociais, culturais e económicos interligados entre si — no que se compreende como “sociedade” -, de forma à facilitar a capacidade de realização desta própria sociedade. Seria a forma mais sintética e analítica de compreender o significado de política.
Se compreendermos, conceitualmente, Sistemas de Poder e “Política” da mesma forma, fica fácil entender a noção de Poder Descendente, Poder Transversal e Poder Ascendente como sendo características naturais do poder, em si. É claro que a noção de política alterou-se ao longo do desenvolvimento histórico da humanidade. Se Proudhon fala-nos em dois princípios filosóficos distintos, Autoridade e Liberdade e resume a sua compreensão política à esta dualidade, prefiro compreender a política não baseada nos extremos (Autoridade-Liberdade) mas na tênue ligação entre estes dois pólos opostos.
Talvez a metáfora de que a política seja o trem da História seja verdadeira mas minha tese é de que o trem não deslize sobre os trilhos da História, mas sim sobre os trilhos da dualidade filosófica entre Autoridade e Liberdade. A Política não é, portanto, um trem que desliza sobre os trilhos da História em um único caminho: o futuro, deixando para trás a última estação de embarque:o passado. Assemelha-se mais à um pêndulo, que desliza em um fluxo constante, para trás e para frente, ora oscilando para o pólo da Autoridade e ora oscilando para o pólo da Liberdade. É aí que reafirmo a genialidade de Proudhon em ser o primeiro à exprimir de forma tão explícita este conceito.
Mas não posso deixar de citar que, mesmo em seus Regimes de Autoridade e de Liberdade, Proudhon afirma que nenhum modelo será aplicado em estado puro. Simplesmente por que não existem modelos de governação em estado puro. Todo modelo de governação é, sempre será, a aplicabilidade do poder. E a aplicabilidade do poder é volátil, toma nova forma à cada mudança social, alteração cultural ou crise económica. O que é, e que sempre manterá seu estado puro são os Sistemas de Poder. Nunca um Sistema de Poder poderá coexistir com outro Sistema de Poder, se não na Revolução, onde um deles, o vencido, desaparece da estrutura política da sociedade. Um Sistema de Poder sempre tenderá à desaparecer quando confrontado com outro Sistema de Poder que, em sua natureza, adapte-se melhor as necessidades e demandas sociais de determinada época.
Se imaginarmos que o alicerce de toda e qualquer sociedade é o seu povo, concluímos que em qualquer estrutura social, a base dessa mesma estrutura é o povo. São os cidadãos que compõe os sistemas, as partes mais substanciais dessas estruturas. É uma breve adaptação da teoria marxista, ao qual irei chamar de “infraestrutura”, como a compreensão da força de trabalho e das relações de produção em contraste com a “superestrutura”, que seria o próprio Estado e suas instituições. Se considerarmos o povo como principal base das estruturas políticas, tendo em vista que a política — ao menos, à partir das teses expostas por Maquiavel em “O Príncipe” — é a “arte” de conquistar, manter e exercer o poder, podemos considerar a existência elementar de três Sistemas de Poder distintos. A nomenclatura de cada Sistema de Poder — Descendente, Transversal e Ascendente — é aplicada de acordo com a origem e a constituição do poder político dentro de uma estrutura social específica, à qual denominaremos de “sociedade”.
Historicamente, o primeiro Sistema de Poder conhecido e aplicado nas sociedades humanas é o Sistema de Poder Descendente. O termo “descendente” designa a natureza básica da emanação do poder político, ou seja, sendo o povo a principal base da estrutura social, podemos afirmar que o poder descendente não tem origem na base da estrutura. Na literatura marxista, um Sistema de Poder Descendente tem origem na Superestrutura, isso é, o poder político emana do próprio Estado, que Proudhon chamaria de “Regime da Autoridade” e não no povo, na sua força de trabalho e nas suas relações de produção, que consiste a verdadeira base da estrutura social — o que a literatura marxista prefere chamar de “infraestrutura”. O Poder Descendente, sendo um poder que origina-se à partir da força bruta e é legitimado através de um pacto de submissão, poderia ser facilmente interpretado sob à luz da teoria de Hobbes. Poderíamos classificar o Poder Descendente como sendo indivisível, tal como especula Proudhon, tendo em vista que sua emanação provém do Estado em si, da sua força bruta e da sua pura autoridade e não das relações sociais.
Feita essa observação crucial para o desenvolvimento teórico deste próprio escrito, não nego o princípio filosófico da Autoridade em Proudhon — pelo contrário, fortaleço ainda mais essa tese -, mas prefiro classificar como uma sistemática Poder Descendente, já que o poder político baseia-se em uma figura autoritária, com poder centralizado, unitário e indivisível, que descende sobre o povo. Ou seja, não existe nenhuma ferramenta democrática ou de participação popular que ascenda, da própria sociedade, em direção ao poder constituído. Logo, o poder constituído não é somente soberano, mas autoritário. Os dois Modelos de Governação, historicamente capazes de serem encaixados nessa nomenclatura são: a autocracia e a oligarquia.
Para compreendermos a diferença entre autocracia e oligarquia, faz-se necessário o pleno entendimento do termo “Modelo de Governação” como sendo as práticas políticas que perpetuam o poder. Em tese, nenhum Modelo de Governação é puro, isso é, baseiam-se em um Sistema de Poder, mas misturam características de outros Modelos de Governação. Uma autocracia política pode depender, por exemplo, de uma oligarquia económica ou até mesmo de uma oligarquia militar. O fato é que, dentro do Sistema de Poder Descendente, o modelo de governação atua como pêndulo entre a autocracia e a oligarquia. Dito isto, avancemos para as definições:
A autocracia ou o “Governo de todos por um”, chamada por Proudhon de monarquia ou patriarcado, é na realidade o primeiro modelo de governação de que se tem registo na história, isso é, representa a passagem do estado natural para o estado civil, como cita Rousseau, à medida que o poder indivisível ainda está centralizado sobre uma autoridade que impõe este poder através da força bruta ou de um contrato social baseado na submissão do povo ao Governo, como descreve Hobbes. O patriarcado como origem histórica do poder indivisível, evolui rapidamente, dentro de uma ótica histórica, para uma monarquia por uma simples questão: a necessidade de organização de um Estado, mesmo que ainda primário, completamente centrado na figura personalista do monarca, o autocrata. Contudo, em alguns casos específicos na história, como por exemplo no feudalismo europeu, existe um desenvolvimento político do patriarcado em direção à um modelo de governo oligárquico para, somente com o fenómeno político do absolutismo, séculos à frente, regressar à um modelo de governo autocrático, que pode ser exemplificado com Luis XIV de França.
A Oligarquia ou o “Governo de todos por alguns”, nessa mesma perspectiva, centra o poder em uma elite. É da elite que constitui o Estado que, tal como o autocrata, que emana o Poder. E é esta mesma elite que exerce o Poder. Percebemos que, conforme a sociedade constitui-se e estabelece-se historicamente como Estado, a natureza do poder altera-se, permanecendo indivisível, mas sendo transferida das mãos de um autocrata para uma oligarquia, um grupo ou uma facção social que domina o resto da sociedade. A constituição da oligarquia pode variar de acordo com o momento histórico e/ou espaço físico. Sociedades nativas americanas pré-colonização europeia poderiam encaixar-se nesse modelo, o próprio desenvolvimento político da Igreja Católica com sua oligarquia religiosa (ou há quem acredite que o Papa exerce pleno poder político dentro da Cúria do Vaticano?) ou o modelo político-económico soviético. Existem historiadores que encaixariam o feudalismo europeu nesse modelo oligárquico, tendo em vista que a figura do monarca não detinha um poder centralizado, já que a natureza do poder feudal era indivisível mas pulverizado pela nobreza e pela própria Igreja.
Historicamente, é difícil de dizer quais modelos de governação são autocráticos e quais são oligárquicos. Muitas vezes porque a emanação do poder, em diversas sociedades ao longo da história, é difusa. Por exemplo, a legitimação do poder em uma monarquia certifica de que a figura política do Rei é a origem do poder, o que classificaria este modelo de governação como autocrata. Contudo, a própria estrutura social de uma monarquia, por exemplo, os irmãos do Rei que casam-se e herdam títulos nobliárquicos, também legitimados pelo próprio poder político em si, geram um poder de fato menor do que o poder do Rei, mas mesmo assim, um poder maior do que do cidadão comum, o que possibilitaria a classificação deste modelo como sendo uma oligarquia aristocrática.
O fato é que, após um semi-primitivismo do patriarcado ou da monarquia, na figura do autocrata, o poder político passa à um estado secundário de desenvolvimento, onde permanece indivisível — uma das características essenciais deste tipo de sistema — mas baseado na figura política da oligarquia, seja ela militar, religiosa ou político-partidária. O Sistema de Poder Descendente tem, portanto, dois modelos de governação: a autocracia, ou o “governo de todos por um” e a oligarquia, ou o “governo de todos por alguns”, que por vezes tem características político-estruturais confusas, como no caso do feudalismo europeu. Percebe-se, claramente, que a natureza desse Sistema de Poder, cuja principal qualidade seria a indivisibilidade, é pura no sentido de que não há nenhum poder que emane do povo, somente há emanação de poder vindo da própria Autoridade, através de um pacto de submissão legitimado pela força, sobre o povo. O que pode variar, dentro deste Sistema Descendente é o Modelo de Governação, que pode ser autocrata ou oligárquico. Em suma, são dois modelos de governação que baseiam-se na submissão do povo, através da força, pelo contrato social por uma figura autoritária.
Explicitado este conceito sobre o Sistema de Poder Descendente e seus dois modelos de governação, a autocracia e a oligarquia, baseados na indivisibilidade do poder, voltemos à Proudhon, que analisa de forma dualista sua sistemática política. Se, de um lado encontra-se a indivisibilidade do poder centrado na Autoridade, do outro lado encontra a divisibilidade do poder que baseia-se na Liberdade, um princípio pessoal e individualista crítico. Podemos considerar que Proudhon norteia o seu “Regime de Liberdade” pela acepção de Rousseau relativa ao pacto social como convenção coletiva. Dessa forma, a natureza do Estado — ou da Autoridade — seria um produto da inteligência, da razão e da lógica. Identificamos, no Regime da Liberdade de Proudhon, que o poder tem origem, portanto, no povo como base da estrutura social para constituir-se no Estado através de um contrato social, logo, a Autoridade é fruto de uma convenção produto da cooperação dos indivíduos que integram a base da estrutura social. É o que podemos interpretar, dentro da literatura marxista, como a emanação de poder da infraestrutura, em contraste com um poder que emana da superestrutura.
Contudo, diferentemente de Proudhon, não permeio minha crença pela dualidade e nem acredito que a ausência de uma Autoridade absolutista — e com o poder centrado somente em torno de si -, em uma sociedade, seja ela qual for, dá-se de forma igualitária no que tange ao princípio da Liberdade. A não-existência de uma Autoridade que centre em si a própria noção de poder não significa, todavia, uma uniformidade no princípio da Liberdade. Isso porque, de fato, a Liberdade é um princípio filosófico, enquanto a Autoridade pode ser considerada um princípio filosófico levando em conta aspectos e conceitos da ciência política mas precisa ser compreendida, em última instância, como uma construção social, fruto ou produto das relações de submissão baseadas no uso da força. A Autoridade não tem, portanto, fim em sí, resumindo-se à ausência de Liberdade. Ora, se filosoficamente a Liberdade é um princípio e a Autoridade é a não-Liberdade, refletindo-se, meramente, como o oposto diametral deste princípio da Liberdade, sendo, portanto, um princípio negativo ou um não-princípio -, não é a maior das ironias que, no campo da ciência política, a Autoridade, na qualidade de não-princípio, constitua-se de forma material e personalista, enquanto a Liberdade, um princípio puro da filosofia, não consegue encontrar materialização terrena, servindo-nos apenas em bases ideológicas?
O fato é que o “Regime da Liberdade” de Proudhon, provem da divisibilidade do poder. Mas em qual grau ocorre essa divisibilidade? Na realidade, preocupo-me na natureza do poder, da onde ele emana e da sua constituição. É fato que um poder que emana das bases da estrutura social — isso é, emana do povo e de suas organizações coletivas, como os sindicatos, os movimentos sociais, os movimentos estudantis, os movimentos feministas e todas as outras representações sociais do indivíduo fora das organizações político-partidários e/ou institucionais do Estado — pode ser considerado um Sistema de Poder Ascendente, à medida que o poder emana do povo — ou o que os marxistas entendem como a “infraestrutura” como sendo a própria força de trabalho e as relações de produção — em direção ao próprio Estado e de suas instituições. O Poder Ascendente é, portanto, todo o poder que emana da infraestrutura em direção à superestrutura, ou todo o poder político que emana do povo em direção ao Estado. O Poder Ascendente é, de acordo com Proudhon, divisível, sendo essa sua principal característica que o define. Em uma leitura mais atenta, percebemos que o Poder Ascendente deriva de um pacto social baseado na cooperação entre os cidadãos, como descreve Rousseau, ou seja, o poder emana das relações sociais e não da submissão do indivíduo ao Estado, pela força bruta.
Proudhon divide seu Regime da Liberdade em dois modelos de governação, nomeando-os de “democracia” e “auto-governo”. Na realidade, o termo “democracia” é utilizado por Proudhon para descrever um dos modelos de governação do seu “Regime de Liberdade”, associando o termo ao que compreendemos, atualmente, como democracia representativa, isso é, o modelo democrata para Proudhon compreendia apenas a noção da representatividade política: o cidadão que votava para eleger um representante, sendo este representante o verdadeiro possuidor do poder político de decisão. Em contrapartida, Proudhon reconhece que, levando em conta como principal característica a divisibilidade do poder, a anarquia ou o que prefere nomear como self-government ou auto-governo seria a verdadeira cristalização do Regime da Liberdade, já que cada indivíduo seria autocrata de si mesmo.
É curioso notar que Proudhon acredita que um modelo de auto-governo seja apenas um governo do indivíduo sobre si mesmo, excluindo a compreensão da política como ferramenta indispensável da vida em comunidade. A anarquia não é ausência de governo, mas total participação popular nas decisões políticas sem a necessidade de um Estado instituído. Logo, anarquia é a ausência do Estado como instrumento de opressão. Em outras palavras, não abole-se o governo, tanto que Proudhon prefere chamar a anarquia (não-governo) de auto-governo. O governo existe, sempre existirá enquanto houver vida coletiva. O que não existe é Estado constituído como ferramenta de desenvolvimento do governo. O governo é desenvolvido à partir da participação popular, da participação coletiva, de todos. A essência baseia-se nisso. Portanto, a anarquia nada mais é do que democracia participativa, em detrimento da democracia representativa. É a capacidade da sociedade em absorver as funções governativas do Estado. O Estado desaparece. As funções governativas continuam intactas, diluídas por toda a sociedade.
Mas, o que é este auto-governo se não o próprio comunismo? Não me refiro ao processo histórico de transição rumo ao comunismo que já identificamos como sendo uma oligarquia da casta burocrática estatal sobre o povo, portanto, um Sistema de Poder Descendente ou, como preferiu chamar Proudhon, um Regime da Autoridade. Refiro-me, sim, ao comunismo em seu estágio final: onde toda a propriedade é comum à todos, logo não existe classe e, em consequência, não existe Estado. E este é o grande erro de Proudhon: equiparar o regime de transição para o comunismo como sendo o próprio comunismo e, como resultado dessa equiparação, conceituar o comunismo de forma distinta ao modelo de auto-governo, proposto pelo próprio autor.
E, em uma análise mais profunda, o comunismo apresenta-se como pólo opositor ao capitalismo. Enquanto um trata da propriedade comum, o outro trata da propriedade privada. A distinção, portanto, dá-se exclusivamente no terreno economicista. O sistema de Poder, a forma concreta da política apresentar-se no capitalismo, não é pétrea. Ao contrário: altera-se com o tempo. Existe capitalismo cujo modelo de governação é autocrático, oligárquico, representativo ou participativo. Com o comunismo, por outro lado, não existe modelo de governação que não seja participativo porque não existe Estado.
Nessa perspectiva, prefiro referir-me como democracia representativa o que Proudhon nomeia de “democracia”, tendo a compreensão de que existe algum grau de Poder Ascendente neste modelo de governação. Contudo, é importante salientar que o poder emana do povo mas não constitui-se no povo, e sim numa classe política escolhida em eleições, que passam a deter o poder decisório, não só na criação de leis mas de suas execuções. Em outras palavras, poderíamos interpretar a democracia representativa como tendo algumas características de Poder Ascendente, mas também tem características de um Sistema de Poder Descendente, à medida que a classe política eleita, na qualidade de representante do Estado, tem a legitimidade na constituição do poder. Em suma, a partir do momento que o poder emana do povo, através do voto popular, não permanece divisível pela sociedade, pelo contrário: o poder que emana do povo acaba concentrado nas mãos de uma elite política que compõe o Estado, ocupando cargos públicos e legitimando a institucionalização do poder. É inegável que a democracia representativa é, simultaneamente, um modelo de governação que tem como base o Sistema de Poder Ascendente, à medida que a emanação do poder provêm do povo, mas também tem características de um Sistema de Poder Descendente, à partir do momento em que os eleitos pelo voto constituem-se como uma elite política, uma oligarquia, de concentra em si o poder de decisão. Por este motivo, a democracia representativa deveria ser diferenciada da democracia participativa,em relação ao Sistema de Poder, à medida que o poder tem como característica a divisibilidade enquanto emanação vinda do povo através do voto popular, mas institui-se de forma indivisível no Estado, concentrada sobre a elite política que toma as decisões através das Instituições Democráticas.
Ao analisarmos a “democracia” em Proudhon como sendo a cristalização da representatividade política, faz-se necessário diferenciá-la em relação ao que Proudhon nomeia como auto-governo como sendo a democracia baseada na participação popular. Logo, torna-se importante diferenciar a democracia representativa da democracia participativa não somente sob a ótica dos Modelos de Governação, mas principalmente quanto à divisibilidade do poder em ambos os modelos, o que implica uma diferenciação dentro da lógica de Sistemas de Poder.
Se a democracia representativa é permeada pela dualidade do poder quanto à sua divisibilidade, ou seja, se na democracia representativa o poder emana do povo através do voto popular mas constitui-se através de um corpo político que representa o Estado, podemos concluir que o Sistema de Poder ascende das camadas populares em direção ao Estado constituído mas também descende do próprio Estado em direção ao povo. É um Sistema de Poder misto, que tem características Ascendentes e Descendentes. Logo, é impossível concordar com Proudhon na crença de que “democracia” e “auto-governo” — ou, como prefiro nomear “democracia representativa” e “democracia participativa” — tem a mesma natureza.
A democracia liberal burguesa ou democracia representativa, como sendo o Modelo de Governação que impera no mundo contemporâneo ocidental, pode ser considerado um Sistema de Poder Transversal, à medida que existe divisibilidade na emanação do poder, mas é inegável a existência de um princípio da Autoridade, que sujeita o próprio povo às decisões e vontades de uma elite política revestida pelo poder através do voto. Em tese, o processo eleitoral democrático, cujo poder emana do povo mas institui-se no Estado, sob a forma de uma classe política, nada mais é do que o voto popular como instrumento de alienação do poder político do povo em detrimento de uma oligarquia política que institui o poder em detrimento das suas próprias vontades e demandas. É perceptível que, por mais que exista um princípio da Liberdade na emanação do poder vinda das bases que compõe a sociedade, o principal fundamento da democracia representativa é a centralização do poder político no Estado, através da elite política que, de fato, governa através das Instituições Democráticas. Daí podermos também nomear a democracia representativa como Estado Democrático de Direito.
A transversalidade do poder é exatamente isso: a distinção na natureza da emanação e a natureza da constituição do poder. Se no Sistema Descendente, o poder emana do autocrata ou da oligarquia e constitui-se na figura autoritária deste mesmo autocrata ou oligarquia, no Sistema de Poder Transversal, o poder emana das bases mas constitui-se em uma elite política que controla o Estado. Existe um caminho duplo do poder, tanto no sentido ascendente como no sentido descendente. Essa é a principal característica do Sistema de Poder Transversal, cuja emanação do poder provêm do povo mas constitui-se através de uma classe política que detém o poder decisório político. O principal Modelo de Governação do Sistema de Poder Transversal é, portanto, a democracia representativa, o que Proudhon nomeia primariamente de “democracia”.
Em contraste, temos o auto-governo ou self-government, em Proudhon, que em nada difere do comunismo, onde o próprio autor refere-se como um Modelo de Governação onde cada indivíduo é autocrata de si mesmo, ou seja, a própria consciência individual de cada cidadão deverá prevalecer sob qualquer forma de Autoridade constituída sobre a forma de Estado ou de classe política dominante. A lógica, em Proudhon, que permeia a noção de Liberdade não é a completa ausência de Autoridade, pelo contrário, reforça a ideia de Consciência Individual como última instância da próprio Autoridade, não como princípio antagónico à Liberdade, mas como fator decisivo para a existência da Liberdade. Sem a Autoridade — não a Autoridade constituída no Estado, mas a Autoridade da própria Consciência Individual — não existe Liberdade. A existência da Liberdade não suprime a existência da Autoridade, pelo contrário, baseia-se na noção de descentralização da Autoridade e na inexistência de uma Autoridade constituída e revestida de poder. O único poder decisório, no princípio da Liberdade, vem da Autoridade da própria consciência sobre si mesmo. Essa é a maior Autoridade que existe, porque não é antagónica à Liberdade mas pelo contrário, é a única Autoridade que é proveniente da Liberdade.
O Auto-Governo, em Proudhon, nada mais é, portanto, do que o próprio comunismo, organizado à partir da democracia participativa, à medida que todo poder emana do povo e constitui-se no próprio povo, à medida que cada indivíduo é autocrata de, somente, si mesmo. Logo, não existe um poder constituído fora da esfera individual, não existe corpo político revestido de poder através do voto que, sob a figura do Estado, centralize o processo decisório da comunidade. O único poder existente é o poder que emana do próprio povo e a única Autoridade é a consciência do próprio indivíduo, logo o próprio sentido da democracia participativa não é encerrar o processo político comunitário em detrimento do individualismo, mas proporcionar à todo o indivíduo a possibilidade de constituir-se do poder, através do processo de participação na tomada de decisão coletiva.
Se considerarmos que a democracia representativa é um Modelo de Governação cuja natureza remete à um Sistema de Poder Transversal devido à dualidade entre a emanação e a constituição do poder, fica bastante claro que a democracia participativa deve ser diferenciada não somente quanto ao Modelo de Governação, já que implica em uma dinâmica política completamente distinta, mas principalmente quanto ao Sistema de Poder. A democracia participativa é, como idealizada por Proudhon ao nomeá-la de “auto-governo”, tão contrastante do ponto de vista da dinâmica e do seu desenvolvimento como da sua natureza. A participação popular na tomada de decisão política representa que o poder constitui-se na mesma entidade da qual emana, o povo. O povo como base de todo o pilar social, o povo como verdadeiro representante de si mesmo, o povo revestido do poder decisório. E todo o poder, não só sendo produto da vontade popular mas principalmente, como parte fundamental do processo político participativo. Não seria isso o comunismo?
A participação do povo em todo o processo político — desde o debate público, a decisão política que transforma a vontade popular em Lei popular e a própria execução da Lei, respeitando a vontade popular acima da vontade individual, em uma sociedade livre da opressão do Estado, legitimado pela submissão do indivíduo frente ao pacto social — é o que caracteriza o Sistema de Poder Ascendente, isso é, todo o poder emana do povo e constitui-se através da vontade popular, da decisão popular. É o governo da própria consciência, o governo da própria vontade e o governo baseado na Liberdade. Somente uma Autoridade superior, a própria consciência individual, pode co-existir com o princípio da Liberdade.
O Sistema de Poder Ascendente é, portanto, não somente classificado quanto à divisibilidade do poder — já que a natureza do poder passa a ser dividida igualmente entre todos os indivíduos -, mas principalmente acerca da forma desse poder. O poder que emana de cada indivíduo, através da sua própria vontade e consolida-se como poder coletivo — através da decisão popular democrática após o debate público sobre as demandas sociais e as capacidades da própria sociedade em estruturar uma resolução para essas demandas — é a melhor perspectiva de conciliação entre Autoridade e Liberdade. Isso porque o princípio da Liberdade, orientado pela noção de que reside na consciência de cada indivíduo a capacidade de discernimento e o poder de decisão, passa a ser integrado pelo princípio da Autoridade, orientado pela noção de que a vontade de cada indivíduo deve respeitar a decisão democrática dos outros indivíduos para revestir-se de poder político, resultando num Modelo de Governação chamado de Democracia Popular, Democracia Direta ou Democracia Participativa.
O conceito de democracia como participação popular na tomada de decisão precisa ser interpretado não como um Modelo de Governação único, mas como uma generalidade política onde há emanação de poder popular. O que não significa que a constituição do poder dê-se, necessariamente, através da participação popular. Ou seja, o termo democracia é genérico e pode significar tanto um Sistema de Governação Transversal, onde o poder emana da base mas constitui-se numa oligarquia política e cujo Modelo de Governação é a democracia representativa, como um Sistema de Governação Ascendente, onde a emanação e a constituição do poder dão-se inteiramente através da participação popular no processo de tomada de decisão e cujo Modelo de Governação é a democracia participativa. Se analisarmos Proudhon e a sua conceituação de democracia podemos perceber que o autor, por uma impossibilidade temporal, não consegue identificar que o self-government, ou auto-governo, é também um modelo político democrático, à medida que a participação popular no processo de tomada de decisão é ainda maior do que na democracia representativa. E também não consegue compreender que o comunismo é, essencialmente, organizado à partir do governo de todos por todos.
Talvez pela sua tendência dualista, Proudhon tenha concebido a divisibilidade do poder relacionado ao “um” ou à “todos”. Sendo assim, enquanto a democracia representaria a vontade de “todos” sobre “um”, o auto-governo só poderia representar a vontade de “um” sobre “um”, ou do indivíduo sobre si mesmo. A concepção política de “autocracia individual” é errónea porque exclui completamente o processo político da vida em comunidade, fazendo crer que não haveria poder superior ao poder individual, enquanto na realidade, não existirá poder superior à decisão coletiva baseada na vontade individual. O indivíduo não passa a ser o centro do poder político, mas sim a sua vontade passa a ser o principal fator constitutivo da coletividade. A vontade de cada indivíduo somada gera, portanto, a vontade coletiva e daí parte o pressuposto político da tomada de decisão.
Capítulo Terceiro
Modelos de Governação: O resultado político de um processo histórico de desenvolvimento social
Ao longo deste presente escrito, busquei demonstrar não somente o desenvolvimento conceitual do termo “política” desde sua concepção platónica até a sua substancialização através do contratualismo em Rousseau, mas principalmente apresentar minha tese revisionista do modelo proudhoniano de poder. Não que Proudhon tenha errado em suas conclusões acerca dos Regimes da Liberdade e da Autoridade, pelo contrário, reforço em minha tese as concepções antagónicas desses dois princípios, cuja existência de um deles elimina automaticamente a existência do princípio oposto. Contudo, minha compreensão é de que Proudhon — devido à uma impossibilidade temporal de prever o desenvolvimento político das sociedades — limita-se à crer que, dentro do Princípio da Liberdade, ambos os Modelos de Governação (democracia e auto-governo) tenham naturezas idênticas quanto à divisibilidade do poder. É claro que o termo “democracia” é empregado de forma genérica, significando em Proudhon o que compreendemos atualmente como modelo de democracia representativa. Sendo assim, o próprio Regime da Liberdade para Proudhon, significaria “Democracia” em termos genéricos, já que prevê a divisibilidade do poder.
Proudhon engana-se ao não identificar que o comunismo é, essencialmente, o mesmo que ele chama de “auto-governo”, bem como ao não conceber este modelo de governação como sendo democrático, já que é baseado na participação popular direta e não na representação, indireta, através das eleições. Assim, o princípio da Liberdade precisa ser dividido em duas grandes esferas. Se o Regime da Autoridade tem um único Sistema de Poder — isso é, o poder emana e consagra-se ou no autocrata ou nos oligarcas, sendo portanto um Poder Descendente -, o Regime da Liberdade precisa ser dividido em dois Sistemas de Poder distintos, levando em conta a diferença da consagração do poder político.
O modelo de “democracia” em Proudhon — ou democracia representativa como entendemos atualmente — permite um certo grau de hibridismo político, ao misturar características do princípio da Liberdade (poder emana do povo, portanto é divisível quanto à sua emanação) e do princípio da Autoridade (poder consagra-se em uma oligarquia política eleita através do voto popular, concedendo o poder decisório à esta oligarquia eleita, sendo portanto indivisível quanto à sua consagração). Logo, não é um Modelo de Governação Ascendente, apenas. Existem características do Regime da Autoridade, portanto, do Modelo de Governação Descendente. Sendo assim, concluo que é impossível enquadrar o representativismo (democracia liberal burguesa) e o participativismo (democracia social operária) no mesmo grau de liberalismo político.
Propus, ao longo desta tese, que a democracia representativa seja compreendida como um Modelo de Governação híbrido, que tem características de Poder Descendente e Poder Ascendente. Nomeio este Modelo de Governação como sendo o “Poder Transversal”, ou seja, o poder ascende das bases sociais à medida que emana do próprio povo através do voto, contudo, simultaneamente, o poder descente de uma oligarquia política que, sendo eleita pelo voto popular, passa à deter todo o poder político em si mesma através das Instituições Democráticas, à medida que o poder cristaliza-se não na própria vontade popular, mas na vontade da classe política eleita pelo voto popular, naquilo que chamamos de “Estado Democrático de Direito” ou democracia-liberal burguesa.
Há uma clara diferença entre representação ou a democracia representativa (Modelo de Governação Transversal) e o comunismo, ou seja, a participação popular no processo de constituição de uma democracia dos trabalhadores(Modelo de Governação Ascendente). Proudhon talvez não tenha tido essa percepção por uma impossibilidade temporal, devido à época histórica em que viveu e escreveu suas teses. Contudo, é tempo de reformular e rever essa percepção política errónea: não é possível compreender a democracia tal qual a conhecemos hoje de forma equânime ao auto-governo. Não é possível pela natureza da democracia representativa, que delega à uma casta político-partidária o poder de decisão sobre a vida da população, enquanto relega à esta mesma população um único instrumento de emanação do poder: o viés eleitoral.
É preciso entender não somente o aspecto ideológico deste pensamento, mas compreender o seu desenvolvimento histórico. Se, nos primórdios da humanidade, a esfera política organizou-se à partir da centralização do poder na figura do autarca, o próprio desenvolvimento social fez com que o poder se fragmentasse, inicialmente sendo diluído por uma oligarquia e, posteriormente, com o advento da Revolução Francesa, sendo consolidado como sistema híbrido de governação. É preciso entender que o poder, historicamente falando, desenvolveu-se à medida que as comunidades evoluíram social, cultural e economicamente. Se um único indivíduo detinha no passado todo o poder político, de forma indivisível, a própria história encarregou-se de não somente diluir este poder como dividi-lo, à medida que passou a depositar sobre cada cidadão a capacidade de decisão política. Os Modelos de Governação são, portanto, reflexos da própria sociedade em determinado período histórico. Se a sociedade organiza-se sobre a terra, aquele que detém a terra terá poder. Se a sociedade organiza-se em um modelo de produção industrial, aqueles que detém os meios de produção industrial terão o poder. Mas se a sociedade passa à organizar-se em torno não da terra nem dos meios de produção — e sim através de um complexo sistema financeiro — o próprio sistema de poder passa de uma esfera política tangível e material para uma esfera puramente financeira, intangível e imaterial, o que dará origem à um outro processo muito estudado na contemporaneidade , que é a crise de representação política.
Concluo, portanto, que a definição de “Sistema de Poder” como sendo a identificação, análise, organização e administração de elementos sociais, culturais e económicos interligados entre si — no que se compreende como “sociedade” -, de forma à facilitar a capacidade de realização desta própria sociedade. Logo, se levarmos em conta a noção marxista de organização do Estado, com a Infraestrutura (a base da estrutura social, o povo, a sua força de trabalho e as suas relações de produção) e a Superestrutura (o próprio Estado constituído como topo da estrutura social, produto das relações sociais), compreendemos que o Sistema de Poder pode ser dividido em três grandes tipos:
1- o Sistema de Poder Descendente, ou seja, cujo poder constitui-se na Superestrutura, emanando da Superestrutura em direção à Infraestrutura, como por exemplo, os Modelos de Governação de autocracias e oligarquias.
2- o Sistema de Poder Transversal, ou seja, cujo poder emana da Infraestrutura mas constitui-se na Superestrutura, como por exemplo os Modelos de Governação de democracias representativas contemporâneas, ao qual nomeados como Democracia Liberais; ou Estados Democráticos de Direito; ou, simplesmente, Democracia Representativa
3- o Sistema de Poder Ascedente, ou seja, cujo poder emana e constitui-se na Infraestrutura, como por exemplo, o Modelo de Governação da democracia participativa ou auto-governo (self-government, para Proudhon) ou, ainda, o comunismo. Nomeamos de Democracia Direta; ou, simplesmente, Democracia Participativa.
Percebe-se que, pela distinção feita entre os três Sistemas de Poder, é impossível que um Sistema de Poder coexista com outro Sistema de Poder dentro de uma sociedade se não na Revolução, onde um deles, o vencido, desaparece da estrutura política da sociedade. Um Sistema de Poder sempre tenderá à desaparecer quando confrontado com outro Sistema de Poder que, em sua natureza, adapte-se melhor as necessidades e demandas sociais de determinada época. Todo Sistema de Poder é puro, não pode ser misturado à outro Sistema de Poder e cada um tem características bastante delimitadas e distintas entre si.
Já os Modelos de Governação são as práticas políticas que visam perpetuar a governação. Ou seja, é a praxis política. Todo modelo de governação é, sempre será, a aplicabilidade do poder. E a aplicabilidade do poder é volátil, toma nova forma à cada mudança social, alteração cultural ou crise económica. Os Modelos de Governação são quatro, à saber:
1- Autocracia (ou “Governo do Indivíduo sobre a Sociedade”) — É o poder indivisível, que ainda está centralizado sobre uma autoridade que impõe este poder através da força bruta ou de um contrato social baseado na submissão do povo ao Governo, como descreve Hobbes. O patriarcado como origem histórica do poder indivisível, evolui rapidamente, dentro de uma ótica histórica, para uma monarquia por uma simples questão: a necessidade de organização de um Estado, mesmo que ainda primário, completamente centrado na figura personalista do monarca, o autocrata.
2- Oligarquia (ou “Governo de um Grupo de Indivíduos sobre a Sociedade”) — É uma evolução natural da Autocracia ou do Patriarcado, à partir da constituição e estabelecimento da sociedade. O poder permanece indivisível, mas sendo transferida das mãos de um autocrata para uma oligarquia, um grupo ou uma facção social que domina o resto da sociedade. A constituição da oligarquia pode variar de acordo com o momento histórico e/ou espaço físico mas busca sempre a melhor eficiência do Estado sobre uma comunidade crescente e com relações sociais mais complexas do que uma sociedade autocrática.
3- Democracia Liberal ou Representativa (“o Governo da Elite Burguesa sob a Sociedade”) — É permeada pela dualidade do poder quanto à sua divisibilidade, ou seja, na República o poder emana do povo através do voto popular (modelo de Democracia Representativa) mas constitui-se através de um corpo político que representa o Estado. Existe a noção de poder ascendente (que é o poder que emana da estrutura social que compõe à Infraestrutura em direção à Superestrutura, composta pelo Estado), mas também de poder descendente (que é o poder que, por outro lado, emana do Estado que compõe a Superestrutura em direção à Infraestrutura, composta por toda a estrutura social que suporta o Estado). É um Modelo de Governação híbrido, amplamente empregado na contemporaneidade em quase todos os Estados Republicanos ocidentais, sendo chamada de “democracia liberal”.
4- Democracia Direta ou Participativa (“o Governo da Sociedade sobre a Sociedade”)— é todo o poder emana do povo e constitui-se na consciência de cada um, à medida que cada indivíduo é autocrata de si mesmo e somente de si mesmo. O único poder existente é o poder que emana do próprio povo e a única Autoridade é a consciência do próprio indivíduo, logo o próprio sentido da democracia participativa não é encerrar o processo político comunitário em detrimento do individualismo, mas proporcionar à todo o indivíduo a possibilidade de constituir-se do poder, através do processo de participação na tomada de decisão coletiva mas tendo respeitado, antes de mais nada, a sua Liberdade e o seu Direito como indivíduo. Logo, não existe um poder constituído fora da esfera individual, não existe corpo político revestido de poder através do voto que, sob a figura do Estado, centralize o processo decisório da comunidade. A própria consciência individual de cada cidadão deverá prevalecer sob qualquer forma de Autoridade constituída sobre a forma de Estado ou de classe política dominante. Em última instância, é a noção de Liberdade como única instância de Autoridade, à partir da compreensão da descentralização da Autoridade e na inexistência de uma Autoridade constituída e revestida de poder. O único poder decisório, no princípio da Liberdade, vem da Autoridade da própria consciência sobre si mesmo. Essa é a maior Autoridade que existe, porque não é antagónica à Liberdade mas pelo contrário, é a única Autoridade que é proveniente da Liberdade.
Sob uma perspectiva histórica, fica claro que, durante milénios, o Sistema de Poder em nada alterou-se, à medida que apenas o Modelo de Governação alternava entre autocracia e oligarquia. Contudo, com o advento da Revolução Francesa, surge a concepção de um novo Sistema de Poder, híbrido, com características de emanação popular do poder mas a sua constituição mantendo-se à uma oligarquia político-partidária, ao que denomina-se Sistema de Poder Transversal, cujo Modelo de Governação é a Democracia Representantiva. Este Modelo de Governação, por tratar-se de uma Revolução no Sistema de Poder (de Descendente para Transversal), teve o seu desenvolvimento pautado em diversas práticas políticas ora mais conservadoras e ora mais progressistas, cujo ápice dá-se na II Guerra Mundial, embate bélico que encerrará um ciclo de ideologias totalitaristas de cunho social (fascismo, nazismo) e daria uma sobre-vida ao ciclo de ideologias totalitaristas de cunho económico (comunismo, liberalismo capitalista).
Desde o final da II Guerra Mundial, com o advento da Globalização e de uma nova revolução tecnológica-informacional, as sociedades ao redor de todo o globo esperam não só um maior dinamismo nas relações sociais — o que Bauman irá chamar de “Modernidade Líquida” — mas exprimem sua vontade de ter uma maior participação no processo de tomadas de decisões políticas sobre a vida em comunidade e exalam o desejo de ter uma maior liberdade privada, como indivíduo, frente à um Estado, que cada vez apresenta-se menos como solução e mais como problema nas questões cotidianas.
Se encararmos a democracia representativa na perspectiva de uma democracia liberal burguesa, consolidada com a Revolução Francesa, fica claro que é necessário dar um passo para o futuro e romper com a lógica revolucionária burguesa. É preciso atuar em uma nova Revolução, uma revolução operária e popular que construa uma democracia social do povo, uma democracia direta e participativa.
Considerações Finais
No mundo contemporâneo, assistimos à um predomínio do Modelo de Governação de Democracia Representativa ou também chamado, popularmente, de Estado Democrático de Direito. Em alguns países, em geral Países Desenvolvidos (como as nações da Europa, por exemplo) esse Modelo de Governação já é mais progressista e engloba algumas características do participativismo, ou do Modelo de Governação de Democracia Direta — como, por exemplo, os orçamentos participativos -, mas no geral, a grande maioria dos países, principalmente os países em desenvolvimento, como nações da América Latina, da África e da Ásia, ainda existem Modelos de Governação Representativos, alguns deles ainda com práticas oligárquicas ou autocráticas. Existem até mesmo nações que, em pleno século XXI, sejam completamente estruturadas em Modelos Oligárquicos (como as monarquias sauditas ou o Partido Comunista Chinês) ou até mesmo completamente estruturados em Modelos Autocráticos (o Estado Islâmico do Iraque e da Síria — com o califado de Abu Bakr al-Baghdadi entre os anos de 2004 e 2017, ano em que o califa foi morto, fazendo ruir a primitiva estrutura autocrática; e a República Popular Democrática da Coreia, também chamada de “Coréia do Norte” desde a separação política da península coreana após a Segunda Guerra Mundial e, atualmente, comandada pelo déspota Kim Jong-Un, que auto-intitula-se Líder Supremo do Regime).
O século XXI clama, contudo, por radicais mudanças nas estruturas políticas e económicas à nível global. Primeiramente, por causa do desenvolvimento do saber científico e tecnológico das sociedades, que permite ao indivíduo contemporâneo um acesso muito mais facilitado ao mercado de bens de consumo mas também permite uma vida muito mais autónoma do próprio mercado em si, através de processos de permacultura e sustentabilidade ecológica. A variedade de opções, à nível de consumo, refletem-se na variedade de opções à nível político: existe uma diluição das ideologias, que passam à ser cada vez mais sub-divididas, seguindo uma lógica de especialização quase fordista. Em segundo momento, por uma falência à nível global de todo o Sistema de Poder atualmente instituído — é o que os cientistas políticos chamam de establishment, um termo que vigora no sentido de nomear o Sistema de Poder estabelecido como padrão ocidental de democracia liberal -, sendo causa de vários movimentos internacionais anti-globalização no mundo ocidental, com ascensão de partidos e personalidades anti-establishment ou até mesmo de extrema-direita, além de ser causa também de movimentos político-religiosos de insurgência ao poder instituído no Médio-Oriente e ser causa de diversos conflitos bélicos em todo o mundo.
Uma das grandes consequências, à nível político global, é a falência do modelo de representatividade política. É o que os cientistas políticos gostam de nomear como “crise da representatividade”, não entendendo que não é uma crise passageira, mas sim uma completa ruptura com o atual Sistema de Poder. A falência do atual modelo de representatividade política representa, claramente, uma ruptura do Sistema de Poder Transversal de Democracia Representativa e uma passagem para o Sistema de Poder Ascendente de Democracia Direta ou Democracia Participativa. Essa falência ocorre de maneira global: na América Latina, com uma crise narco-política no México e crises político-económicas em Brasil, Argentina e Venezuela; na América do Norte, com a eleição de Donald Trump — que representa o total fracasso do establishment político estadunidense -; na Europa, com a saída do Reino Unido da União Europeia ou com a ascensão política de Marine Le Pen, representante da extrema-direita em França; a Primavera Árabe, em países do norte da África e Oriente Médio; o surgimento do Estado Islâmico do Iraque e da Síria, revelando uma crescente tensão na região, que espalha-se até à Península Arábica, com o encerramento das relações diplomáticas entre diversos países e o Qatar, acusado de apoiar terroristas; a escalada bélica de Moscou contra países da ex-União Soviética, com a ocupação de parte do território ucraniano; os testes balísticos norte-coreanos, que vem gerando uma enorme tensão na península coreana, além da crescente disputa industrial e financeira entre EUA e China.
O mundo do primeiro quartel do século XXI é fervilhante. Há uma nova escalada bélico-militar em todo o mundo, a maior desde o final da Guerra Fria em 1989, que coloca em xeque a paz mundial. Há uma falência do atual Sistema de Poder vigente em todo o mundo. Parece um regresso à segunda metade do século XIX, com a ascensão das grandes narrativas ideológicas. Mas para que a História siga o seu rumo de progresso, é necessário compreender a contemporaneidade política que rodeia-nos. Se nós permanecermos estagnados em antigas leituras, sem novas interpretações, estaremos fadados à viver mais um século como vivemos o século XX. — Mas não!, este século não será como o século passado. O século XXI é um chamado à inovação, ao progresso e a vanguarda. Não estaremos estagnados e não poderemos estar. Empenhei-me neste escrito com o principal objetivo fazer compreender, ao leitor, a existência de um mundo pós-democracia liberal representativa. A política não encerra-se neste Sistema de Poder e nem neste Modelo de Governação híbrido, apesar do que propôs Fukuyama, ao bradar sobre o Fim da História, o Último Homem e a morte das grandes narrativas ideológicas, com o Fim da Guerra Fria em 1989. Talvez seja a morte das ideologias totalitaristas do século XIX e praticadas ao longo do século XX, com bárbaras e obscenas consequências, mas nunca será o apagar da chama revolucionária.
A próxima Revolução, a Revolução do Século XXI será, indiscutivelmente, à partir do desenvolvimento do atual Sistema de Poder e a falência global do atual Modelo de Governação Representativo. A democracia representativa, vista atualmente como o modelo ideal de governação, já mostrou-se com fortes tendências ao fracasso após a II Guerra Mundial. O modelo de democracia representativa é a causa dos males do Século XX, através de todos os principais modelos políticos e económicos que falharam. Isso porque a democracia representativa, como aponta Bauman em sua tese da Modernidade Líquida, retira a consciência política dos cidadãos, relegando todo o Sistema de Poder à uma oligarquia político-partidária escolhida via eleição, em um sistema que tem fim em si próprio. É acreditar que a Democracia resume-se à escolher um representante à cada quatro ou cinco anos. Ao abrirmos mão da nossa Liberdade de participação no processo de tomada de decisão política em detrimento da Segurança sócio-económica garantida pela Autoridade — e cristalizada na figura do Estado -, estamos abrindo mão da última das Autoridades, a nossa própria consciência.
Só a tomada de consciência de classe emancipará o povo. Dessa emancipação, nasce a Revolução. E da Revolução, organiza-se um novo Sistema de Poder que, ao mesmo tempo que empodera o Povo ao dar-lhe Liberdade, também rompe com as amarras económicas e garante ao Povo a Igualdade.
O século XXI será, de fato, revolucionário a medida que garantir total Liberdade e plena Igualdade aos povos, em todo o mundo. E, a cada um de nós, cabe trabalhar para a construção deste futuro.