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Encontro do Comitê Editorial Internacional do WSWS

As perspectivas da América Latina

Parte 1

Por Bill Van Auken
1 Junio 2006

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Relato escrito por Bill Van Auken para a reunião ampliada do IEB (Comitê Editorial Internacional), reunido em Sidney (Austrália) de 22 a 27 de janeiro de 2006. Van Auken é membro da IEB do WSWS e do comitê central do Socialist Equality Party (EUA).

A América Latina é formada por mais de 20 países independentes, que se estendem da Patagônia ao Rio Bravo. Compreende-se, portanto, que não procuraremos aqui percorrer as condições políticas e sociais de cada um desses países. Preferimos, muito mais, ressaltar algumas das questões mais importantes da região a partir dos seguintes pontos: a elaboração de nossas perspectivas internacionais e do desenvolvimento do trabalho do Comitê Internacional da Quarta Internacional e do WSWS na América Latina.

A nossa meta para este ano deve ser aumentar e aprofundar a nossa cobertura da América Latina. De forma a aumentar a nossa repercussão na região, ganhando os melhores elementos para a luta e nos constituindo como uma real alternativa às políticas falidas dos nacionalismos pequeno-burgueses e dos seus defensores estalinistas e revisionistas.

Como se sabe, a América Latina há muito tempo é uma região instável, onde repetidamente aconteceram grandes ascensos de massa, mas também, grandes e trágicas traições, que entregaram as massas a direções oportunistas e a brutais ditaduras militares. A principal tendência internacional revisionista, a tendência pablista (seguidora de Michel Pablo, no Brasil conhecida como Democracia Socialista), que rompeu com o trotskismo ortodoxo na década de 50, teve um papel decisivo nestas traições, particularmente nas décadas de 60 e 70.

Ainda hoje, a América Latina permanece sendo a região com a maior polarização social e instabilidade política do planeta. Desde 2000, ao menos 10 presidentes foram derrubados, em meio a crises, golpes, levantes de massa e uma invasão dos EUA.

Em uma tentativa inicial de compreender estas condições explosivas, vale a pena examinar duas questões interrelacionadas que preocupam não apenas Washington mas também a mídia e as seções dos dois principais partidos dos EUA.

A primeira é a evidente perda de influência de Washington na região, há muito tempo considerada o “quintal” dos EUA; a segunda questão é a chamada “virada à esquerda” na América Latina. Para a esquerda pequeno-burguesa e para os revisionistas, este fenômeno vem sendo entendido como um confronto decisivo com o imperialismo e mesmo como uma nova via para o socialismo.

Acreditamos que isso efetivamente não esteja ocorrendo. Não há dúvida, porém, de que ocorreu a ascensão ao poder de uma série de regimes que de alguma forma se identificam com a “esquerda” e que falam em oposição política e econômica aos EUA, e esses fatos possuem um profundo significado objetivo.

Nesse sentido, nos círculos dominantes dos EUA se manifesta uma crescente inquietação quanto a essa região. O último número da revista Foreign Affairs traz um artigo intitulado “Estará Washington perdendo a América Latina?”. O seu autor, Peter Hakim, é presidente do Inter-American Dialogue, uma grande entidade empresarial que promove a política de livre comércio de Washington para a região.

O autor condena tanto a administração de Clinton quanto a de Bush pela negligência em relação à América Latina. Esses governos teriam permitido que “a política de Washington para a América Latina corresse sem rumo ou direção”, depois de um período “de encaminhamento político correto” para a região.

Na realidade, a redução da influência dos EUA na América Latina não é apenas uma questão de política externa incorreta ou resultado de decisões subjetivas deste ou daquele político. Essa redução está ligada, muito mais, a mudanças na economia mundial, assim como aos efeitos catastróficos das políticas conduzidas pelos EUA no período em que Hakim considera que a América Latina caminhava na “direção correta”.

As mudanças na economia mundial.originadas na globalização, incluem o relativo declínio na posição do capitalismo norte-americano em relação à Europa Ocidental e, como discutimos em outros informes, em relação à China.

A Doutrina Monroe—a política dos EUA de oposição a qualquer poder externo que estendesse a sua influência no hemisfério ocidental—efetivamente faliu. Por quase 200 anos, sucessivos governos dos EUA evocaram esta doutrina como justificativa para as intervenções dos EUA na região e, ao longo de todo o séc. XX, para a imposição de ditaduras militares e a supressão do movimento revolucionário da classe trabalhadora. Na maior parte deste período, a doutrina foi apoiada pelos regimes nacionais burgueses, que se subordinavam, eles mesmos, ao imperialismo norte-americano. Este consenso foi abalado pelas mudanças nas relações econômicas.

Os rivais dos EUA ganham influência econômica

A União Européia, ao longo desta última década, eclipsou o capitalismo dos EUA como a principal fonte de investimento estrangeiro direto e de comércio na América do Sul. Os EUA continuam a liderar, porém, o comércio na América Latina como um todo, graças aos seus laços com o México, devido ao NAFTA, acordo comercial que existe desde 1993. Dois terços das exportações norte-americanas na região vão para o México; a maior parte dos produtos consiste em peças que atravessam a fronteira, rumo às fábricas “maquiadoras”, fábricas montadas apenas para explorar a força de trabalho mexicana barata na produção de mercadorias para o próprio mercado norte-americano.

Porém, maiores distúrbios surgem para a política de Washington: a China está exercendo um papel cada vez maior ao sul do Rio Grande. O presidente chinês Hu Jintao e o vice-presidente Zeng Qinghong fizeram duas viagens à América Latina em menos de dois anos, assinando contratos de comércio e fazendo acordos militares. A região vem se tornando uma fonte importante de matérias-primas para as indústrias chinesas. As importações chinesas de produtos da América Latina aumentaram seis vezes nestes seis últimos anos e espera-se que alcancem a marca de US$ 100 bilhões por ano até o fim desta década.

Para assegurar o acesso a recursos naturais já escassos, a China se comprometeu a investir US$ 100 bilhões na construção de estradas, portos e diversas obras de infra-estrutura nesta próxima década. Beijing está promovendo uma série de grandes projetos, incluindo iniciativas que assegurem o acesso ao petróleo venezuelano e ao gás e minerais bolivianos.

O Congresso dos EUA já realizou duas audiências sobre o que é entendido como a ameaça chinesa à esfera de influência e dominação semi-colonial norte-americana. Em depoimento ao Congresso no ano passado, o Secretário Assistente para os Negócios do Hemisfério Ocidental, Roger Noriega, prometeu que a administração estaria “atenta quanto a qualquer indicação de que a colaboração econômica estivesse alimentando relações políticas contrárias a nossos objetivos chaves para a região”.

Em resumo, estas mudanças nas relações econômicas globais significam que o capitalismo norte-americano não é o único a estar no jogo—e, em muitos casos, não ser o jogo mais lucrativo—ao menos no que se refere à América Latina. O crescimento das relações econômicas entre a América Latina e os rivais dos EUA deram aos governos da região um espaço de negociação que é até maior do que aquele criado pela Guerra Fria e pela concorrência entre Washington e Moscou. Este é um dos principais fundamentos materiais da chamada “virada à esquerda”. Em muitos casos, esta virada poderia ser melhor descrita como uma “guinada ao euro e ao yuan”.

No próprio continente, o capitalismo norte-americano enfrenta uma nova ameaça nascente: o Brasil. Com uma população de mais de 180 milhões e consideráveis recursos naturais, o país tornou-se a décima potência industrial do mundo e o quinto maior exportador de armas. O crescimento do Brasil tem levado a repetidos atritos comerciais com os EUA acerca de questões que vão dos direitos de propriedade intelectual às exportações agrícolas.

As implicações políticas destas mudanças se manifestaram, recentemente, na decisão da Casa Branca de negar licenças de exportação a um fabricante de aviões da Espanha, que enviaria aviões de tecnologia norte-americana à Venezuela, em um acordo realizado entra Chávez e o Ministério da Defesa do governo espanhol. A Espanha, então, prometeu desafiar o bloqueio fazendo aviões com tecnologia européia. Confrontos similares com a Espanha são esperados na negociação da venda de lanchas de patrulha. Da mesma maneira, confrontos aparecem com o Brasil, desta vez, acerca da venda de aviões militares que vêm sendo produzidos pela fábrica Embraer para a Venezuela.

Na semana passada, após uma reunião de Lula, Chávez e Kirchner, o Brasil respondeu aos EUA com a proposta do estabelecimento de uma indústria armamentista comum aos três países, sob o guarda-chuva do Mercosul. O plano projeta estabelecer uma primeira vinculação entre as fábricas de armas criadas, anteriormente, pelos regimes ditatoriais da Argentina e do Brasil. Particularmente, aparece o plano de estabelecer uma fábrica da Embraer na Argentina. O objetivo é o de eventualmente produzir aviões militares e outros equipamentos para todo o continente, competindo com os modelos mais caros dos fabricantes norte-americanos, que tradicionalmente alimentam as necessidades armamentistas da América Latina, com um custo próximo de US$ 3,5 bilhões por ano.

Projetos militares dos EUA

Tudo isso representa um sério desafio aos interesses de Washington. Há pouca expectativa de que o imperialismo norte-americano cederá calado ao controle do seu próprio “quintal”, abrindo mão do controle dos mercados e fontes estratégicas de matérias-primas. Para a manutenção da hegemonia econômica que teve outrora na América Latina, pode-se esperar a mesma resposta que tem em todas as regiões: o recorrente apelo ao militarismo.

Ao longo das últimas décadas, Washington tem construído uma rede de bases militares na região, ao passo que expande as operações da US SouthCom, comando militar regional que inclui mais funcionários lidando com a América Latina do que com todas as outras agências americanas combinadas.

O ano de 2002 assistiu à tentativa americana de golpe contra o governo Chávez. Nesta tentativa, segundo alguns relatos, teria ocorrido a participação direta de conselheiros militares norte-americanos e mesmo a disposição da frota naval e de aviões espiões. Em 2004 assistiu-se à deposição de Aristide no Haiti e à invasão da paupérrima ilha pelos fuzileiros dos EUA.

Washington tem desenvolvido planos para uma invasão que possa controlar a riqueza petrolífera da Venezuela, seguindo a mesma linha de invasão e ocupação do Iraque.

Existem constantes disputas de fronteira entre a Venezuela e a Colômbia, além de uma guerra civil contra as FARC que já dura há quatro décadas no último país. A Colômbia, durante este período, recebeu investimentos massivos americanos nas suas forças armadas—algo em torno de U$ 3 bilhões em recursos militares (supostamente para financiar a “guerra contra a droga”), e viu triplicar o exército do país para mais de 275.000 integrantes. Assim, provavelmente, a Colômbia seria um aliado norte-americano numa das intervenções norte-americanas projetadas contra o governo Chávez.

Disputas históricas também se intensificaram entre a Bolívia e o Chile sobre o acesso ao Pacífico e entre o Peru e o Chile. Cada uma destas disputas poderia, eventualmente, deflagrar um conflito na região, sobretudo, se pensarmos no envolvimento de forças externas norte-americanas agindo por trás dos antagonismos existentes.

Nesse sentido, certamente, a responsabilidade maior do WSWS é expor e denunciar as ameaças do imperialismo norte-americano. Esta defesa ativa da América Latina contra as agressões de Washington, porém, não nos permite fazer concessões ou depositar qualquer esperança no governo Chávez ou em qualquer outro regime nacionalista burguês.

Entender a origem destes regimes requer um exame do impacto das políticas implementadas sob o comando do governo norte-americano e das instituições financeiras dominadas pelos Estados Unidos durante o curso das décadas de 1980 e 1990—as prescrições do “livre mercado” conhecidas como o “consenso de Washington”.

Estas políticas chamadas, então, de reformas econômicas, que foram vendidas com a promessa de promover o crescimento econômico, representaram uma ruptura total desses países com a política de substituição das importações e com programas de desenvolvimento nacionais, associados a regimes nacionalistas de períodos anteriores, e promoveram a violenta integração destas economias ao capitalismo globalizado. [1]

As tarifas caíram pela metade comparadas às da década de 1970. Restrições aos investimentos internacionais foram suspensos na maior parte dos países.

Somente na década de 1990, mais de U$ 178 bilhões foram arrecadados com as privatizações de empresas estatais, acarretando a destruição de milhares de empregos. Isto contabiliza mais de 20 vezes o valor atingido com as privatizações na Rússia após o colapso da URSS.

O crescimento ilusório da economia, sobre estas bases, não se repetirá. Não se pode vender uma empresa estatal duas vezes.

Estas políticas produziram condições de empobrecimento e de polarização social que hoje ameaçam toda a ordem social. A UN-affiliated ECLAC relatou recentemente que por volta de 213 milhões de pessoas, ou 40,6% da população total da região de 523 milhões, vivem na pobreza, e 88 milhões destas em condições de miséria absoluta.

De acordo com estudo de 2003 do Banco Mundial, a décima parte mais rica da população na região recebe 48% da renda total, enquanto o décimo mais pobre recebe apenas 1,6%.

Conforme afirma o estudo: “A desigualdade na América Latina é extensiva: o país na região com a menor taxa de desigualdade de renda é ainda mais desigual do que qualquer país da OCED ou dos países do leste europeu”.

“A desigualdade latino-americana é também generalizada, caracterizando todos os aspectos da vida, incluindo o acesso à educação, saúde e serviços públicos; acesso à terra e outros benefícios; ao funcionamento dos créditos e ao mercado formal de trabalho; e ao exercício de voz e influência política”, acrescenta o mesmo estudo do Banco Mundial.

A Venezuela apresenta um dos exemplos mais extremos desse processo, embora índices similares poderiam ser citados para a Argentina, Uruguai e um grande número de outros países. Para a Venezuela, o último período foi caracterizado por uma enorme inflação, que chegou a atingir 100% em 1996. Entre 1988 e 1997, o país assistiu a uma queda de 15% no número de empregos na indústria.

Ao final da década de 1990, os salários haviam caído 40% em relação ao nível que tinham na década de 1980. O poder de compra do salário mínimo em 1994 caiu para 2/3 comparado àquele que possuía em 1978.

O gasto social per capita na Venezuela também foi reduzido drasticamente, cerca de 40% durante o mesmo período. Este incluiu cortes reais de 40% nos gastos com educação, 70% com habitação e desenvolvimento urbano e 37% com assistência-saúde. Entre 1984 e 1995 o quadro da pobreza aproximadamente dobrou, abrangendo 2/3 da população.

Nesse período ocorreu um grande aumento da miséria social acompanhado por uma dramática ampliação da disparidade entre a riqueza e a pobreza, segundo o mesmo estudo, por exemplo, “uma porção da elite e da classe média alta venezuelana enriqueceu muito através de acordos com as transnacionais”.

A maior parte dos sindicatos, filiados ao partido Accion Democrática (AD), foi completamente desacreditada devido à sua colaboração com o governo na ação sistemática da destruição de ganhos passados. Houve também um nítido declínio no número de membros dos sindicatos, uma vez que os trabalhadores perderam seus empregos, foram arrastados ao chamado setor informal de vendedores de rua, trabalhos esporádicos, etc. Este setor informal passou agora a constituir mais da metade da população. A parcela da força de trabalho pertencente aos sindicatos caiu pela metade, de 26,4% para 13,5% entre 1988 e 1995.

Assim, os sindicatos deixaram de ser identificados como oposição ou associados a protestos sociais. Os protestos sociais, por outro lado, tomaram uma forma explosiva e espontânea, expressa de maneira mais forte no chamado “Levante de Caracazo” de 1989, no qual aproximadamente 1.500 pessoas foram mortas pelas forças armadas durante protestos contra um programa de ajustes estruturais recomendados pelo FMI, e adotados pelo então presidente Carlos Andres Peres da AD.

Estes modelos de desenvolvimento, repetidos de várias formas por todo o continente, constituíram os antecedentes sociais e econômicos imediatos do que está agora sendo chamado de “ A guinada à esquerda latino-americana”, i.e, a recente eleição de Evo Morales na Bolívia, os governos de Tabaré Vasquez no Uruguai, Lula no Brasil, Kirchner na Argentina e, evidentemente, Chávez na Venezuela.

Mais desenvolvimentos políticos similares estão no horizonte. No Peru, Ollanta Humala, ex-militar que chegou a tentar um golpe, aliado de Chávez, que é descrito pelo Wall Street Journal como a “asa-esquerda oponente aos acordos de livre comércio e livre-mercado”, é agora o primeiro colocado na corrida presidencial das eleições no país marcadas para abril. [2] Lembremos ainda, no mesmo sentido, a situação no México. Andres Manuel Lopez Obrador, candidato do PRD, aparece entre os favoritos nas eleições mexicanas marcadas para julho, e na Nicarágua, o líder Sandinista Daniel Ortega tem grandes chances de retornar ao poder.

Embora a formação destes governos tenha ocorrido por acontecimentos políticos diversos, todos compartilham as denúncias populistas de “neo-liberalismo”, a retórica anti-americana e apelos à insatisfação popular sobre a desigualdade social. Esta retórica, porém, é combinada com a defesa da propriedade privada e a larga aceitação à receita econômica das instituições financeiras internacionais.

Claramente, nenhum desses regimes oferece uma perspectiva para a classe trabalhadora. Em muitos casos, eles ecoam uma política de tempos passados; do nacionalismo esquerdista e do populismo militarista associado a figuras como Juan Perón na Argentina e Getúlio Vargas no Brasil. Entretanto, enquanto aqueles movimentos estagnaram num certo degrau o crescimento dos sindicatos, estes novos populistas emergiram, pelo menos em alguns países, da desintegração dos antigos movimentos nacionais de trabalhadores, sobretudo, em países como a Venezuela e a Bolívia. [3]

1. No caso do Brasil, tal política começou com o governo Collor de Melo, eleito em 1989. As medidas radicais de Collor nessa direção levaram a uma rápida destruição de vários ramos da indústria brasileira. (Esta e as outras notas foram acrescentadas para a tradução em português, terminada em 30 de maio de 2006).
2. Agora (em 29 de maio), no segundo turno, deverá ser derrotado por Alan Garcia, um ex-presidente do país.
3. No caso do Brasil, sem dúvida, a Central Única dos Trabalhadores, que apóia Lula, também surgiu contra o antigo sindicalismo nacionalista do PTB de Getúlio e no qual militavam muitos membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB).