Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia31 de maio de 2006
Os projetos da Aliança Progressista Unida (APU) de aumentar
o número de lugares reservados às castas [1] nas
universidades financiadas pelo governo central, inclusive numa
série de escolas profissionais de elite, têm desencadeado
protestos de um grande número de estudantes e provocado
indignação na imprensa e grandes empresas. Os médicos
de Delhi, Mumbai e de outras cidades têm realizados greves
surpresas em apoio aos estudantes e a Associação
Médica Indiana juntara sua voz às manifestações.
No começo de abril, o ministro do Desenvolvimento dos
Recursos Humanos, Arjun Singh, anunciara que a APU, dirigida pelo
Partido do Congresso, [2] previra reservar 27 por cento dos lugares
de entrada no Instituto Indiano de Ciências Médicas
(IICM), no Instituto Indiano de Tecnologia (IIT), no Instituto
Indiano de Gestão (IIG) e outras universidades financiadas
pelo governo central, exclusivamente para os candidatos provenientes
de Outras Classes Atrasadas (OCAs).
As OCAs constituem um aglomerado definido pelo Estado como
agrupamentos de castas, ou jati, que têm sido tradicionalmente
percebidas como socialmente inferiores pelos hindus brahmanes,
as castas superiores, e identificadas como atrasadas do ponto
de vista socioeconômico nos anos de 1970. Elas constituem
cerca de 52 por cento da população indiana, de um
total de 1,1 bilhão de pessoas.
O termo outras as distingue das castas classificadas
(os Intocáveis ou Dalits) e das tribos classificadas,
que representam juntas cerca de um quarto da população
total da Índia. Sessenta anos após o Estado indiano
ter oficialmente decretado a igualdade legal das castas classificadas
e das tribos classificadas (CC e TC), a grande maioria vive hoje
numa pobreza sombria e forma uma parte largamente desproporcionada
de sem terras e de analfabetos da Índia.
Os 27 por cento de lugares reservados propostos às OCAs
seriam acrescentados à cota de 22,5 por cento, que existe
desde longo tempo, dos lugares de entrada reservados aos candidatos
dos CC e dos TC. Se estes novos lugares reservados fossem implementados,
49,5 por cento de todos os lugares das universidades financiadas
pelo governo central, aqueles considerados como os melhores do
país, estariam sujeitos a ser reservados, o
termo indiano empregado para designar os programas obrigatórios
de discriminação positiva.
Para acalmar a oposição ao crescimento dos lugares
reservados, o governo da APU anunciou na última terça-feira
que aumentará o número total de lugares disponíveis
para os estudantes a fim de assegurar que o número de lugares
que não está sujeito a ser reservado não
diminua.Isto necessitará um aumento do número total
de lugares disponíveis em cerca de 50 por cento.
Apesar de suas próprias e repetidas afirmações
de que está sob importantes pressões financeiras,
o governo declarara que pode encontrar o dinheiro para financiar
este desenvolvimento: uma despesa inicial de $1,7 bilhão
e uma anual de $500 milhões. Contudo, os administradores
das universidades estão, na grande maioria, contra este
desenvolvimento. Eles afirmam que, mesmo com o financiamento suplementar,
não estão em condições de encontrar
pessoal formado e de desenvolver a infra-estrutura necessária
(albergues de jovens, laboratórios, etc.) para acolher
um afluxo tão grande e tão repentino de estudantes.
O governo também anunciou terça-feira que a lei
caucionando o desenvolvimento dos lugares reservados será
apresentada na próxima sessão do parlamento e que
a cota de admissão de 27 por cento para os ACA entrará
em vigor em junho de 2007.
Segundo a imprensa, a Frente de Esquerda, dirigida pelo Partido
Comunista da Índia (marxista), tem jogado um papel importante
convencendo o governo da APU de não recuar face aos protestos
e de prosseguir rapidamente com a implantação dos
lugares reservados às OCAs nas universidades financiadas
pelo governo central. Os anúncios de terça-feira
foram dados logo após uma longa reunião do Comitê
de coordenação da APU e da Frente de Esquerda. Mesmo
estando formalmente fora da APU, a Frente de Esquerda tem apoiado
este governo no parlamento no curso dos dois últimos anos.
O governo e a Frente de Esquerda pretendem que o aumento dos
lugares reservados às OCAs nas universidades financiadas
pelo governo represente um avanço para a justiça
social e um freio aos privilégios de casta. Isto é
uma fraude cínica.
Na verdade, o aumento dos lugares reservados tivera como fim
dar uma cobertura populista ao início da execução
de reformas socioeconômicas neoliberais, reformas que tiveram
um impacto catastrófico sobre milhões de indianos,
inclusive sobre a vasta maioria das OCAs.
Se, por um lado, as empresas indianas e os setores mais privilegiados
da classe média se beneficiaram da transformação
da Índia num excelente mercado de mão de obra barata
e de operações de pesquisa e desenvolvimento voltados
para atender uma população espalhada pelo mercado
global, por outro lado, os trabalhadores indianos viram seu nível
de vida destroçado pela privatização, pela
desregulamentação, pela destruição
dos serviços públicos e pela ruína dos preços
agrícolas. Na última semana, o governo admitiu que
mais de 111.000 camponeses suicidaram-se em razão de seu
endividamento entre 1993 e 2003.
E mais: o aumento dos lugares reservados reforça as
divisões de casta e, como atesta o grande número
de manifestações a favor e contra, ameaça
desviar a cólera contra a falta de empregos, a insegurança
econômica e as desigualdades sociais para o saco de lixo
dos conflitos de casta.
É incontestável que as OCAs são vítimas
de discriminação e representados de maneira desproporcional
entre os socialmente sem vantagens. A nova proposta de lugares
reservados, contudo, não vai mais do que trazer novas vantagens
a uma ínfima minoria. A controvérsia atual não
diz respeito a mais que 25.000 lugares nas universidades por ano.
A fraude da meritocracia
Os argumentos lançados por aqueles que dirigem a agitação
contra os planos governamentais de aumentar os lugares reservados,
a saber, aqueles que se opõem à política
de casta e são os defensores do mérito, são,
inteiramente e do mesmo modo, fraudulentos e reacionários.
Se bem que uma franja dos deputados do Bharatiya Janata Party
(BJP) tenha se associada aos protestos estudantis, a oposição
oficial suprematista hindu tem, até agora ao menos, tacitamente
sustentado o governo na questão dos lugares reservados.
Não são os políticos de oposição,
mas a mídia oficial e a grande empresa que têm dirigido
a condenação contra os lugares reservados.
A elite econômica da Índia se identifica instintivamente
com os estudantes contestadores, que vêm geralmente dos
berços mais privilegiados da sociedade indiana, e resistem
às medidas governamentais que poderiam ter um efeito sobre
os institutos que lhes fornecem o grosso de seu pessoal profissional.
Mas sua razão principal para encorajar as contestações
estudantis é de se assegurar que o governo não aplique
sua ameaça de estender o regime de lugares reservados ao
setor privado se o centro empresarial não puser rapidamente
em seu lugar um programa voluntário de discriminação
positiva baseado sobre as castas.
No último mês, ao dar sua primeira conferência
de imprensa como presidente da Confederação da Indústria
Indiana (CII), R. Seshaasayee declarou: Um sistema obrigatório
de lugares reservados não favorece a competitividade da
indústria. Isto não é aceitável.
O centro empresarial não quer os custos adicionais ligados
à instauração dos lugares reservados. Fato
também importante é que se opõe a toda intervenção
do Estado naquilo que ele considera como prerrogativa do proprietário
privado.
O princípio do mérito, sustentado pela grande
empresa, é a mais flagrante característica da desigualdade
socialmente regressiva do capitalismo indiano, capitalismo que
associa injustiças do livre mercado à herança
da opressão imperialista e de casta.
As horríveis desigualdades de ordem social atualuma
ordem que nega à maioria dos indianos uma habitação
decente, água potável e três refeições
por dia, sem falar de uma igualdade de chancessão
evidentes no sistema educacional da Índia. Seis décadas
após a independência da Índia, não
se pode dizer que existe um sistema público de educação,
tal a deploração da educação oferecida
pelas escolas públicas. Apesar da importância que
representa o sacrifício destas escolas, até mesmo
os trabalhadores e os camponeses enviam seus filhos, toda vez
que é possível, à escola privada.
Em conseqüência da pobreza e da falta de escolas
públicas decentes, milhões de pessoas jamais acabam
sua educação primária. Segundo as próprias
cifras do governo, em 2001 próximo de 35 por cento de todos
os indianos e 50 por cento de todas as mulheres eram iletrados.
Menos de um por cento da população da Índia,
ou seja, 10 milhões de pessoas, está presentemente
inscrita em um colégio ou instituição pós-secundária.
Mas a qualidade da educação nestas instituições
varia muito. Muitas são mal financiadas e não têm
infra-estrutura necessária. Muitos dos graduados, salvos
aqueles da elite das universidades, não chegam a encontrar
empregos decentes. É este desespero, mesmo entre os jovens
provenientes da classe média abastada, de não poderem
ir às melhores escolas que explica a intensidade das manifestações
atuais.
Fala-se muito do mérito dos estudantes que conseguiram
obter um lugar numa instituição bem cotada. Apesar
de apenas cerca de um a três por cento das centenas de milhares
de jovens que tentam a cada ano obter um lugar passarem nos exames
de entrada, eles são seguramente muito talentosos. Mesmo
o Times of Índia, que tem apoiado as manifestações
contra os lugares reservados, teve que admitir que poucos poderiam
passar no exame sem um bom curso particular e que, dado o alto
custo desta instrução particular, somente aqueles
que vêm de uma família rica poderiam ter acesso a
esta instrução.
Ainda que a grande empresa apresente-se agora como oposta às
castas, ela está pronta para promover a Índia como
sendo a mais populosa democracia, apesar da regular violência
de casta contra os Dalits em grande parte da Índia e de
relegar a maioria destes, dos membros de tribos e de muitos outros
indianos, à simples subsistência. E mais: a classe
dirigente da Índia tem subvencionado e continua a fazer
a promoção dos partidos de castas e de partidos
comunitaristas, inclusive o BJP, um partido suprematista hindu,
e tem incorporado as categorias de castas em suas formas de poder.
Os lugares reservados: pilar da ordem burguesa
Os lugares reservados foram introduzidos pelo Estado colonial
britânico como um meio, entre outros, de cultivar diferentes
elites pequeno-burguesas para reforçar seu regime contra
o movimento nacionalista nascente.
Mesmo que o Congresso Nacional Indiano, um partido burguês,
tenha organizado os movimentos de massa controlados contra os
britânicos, no fim da estrada, ele se entendeu com os dirigentes
coloniais da Índia e fez abortar a luta antiimperialista.
Como parte deste abortamento, ele tem adotado um sistema de lugares
reservados aos Dalits e aos membros de tribos para as cadeiras
do parlamento, para os empregos governamentais e para as universidades.
Instituiu, ainda, uma modesta reforma agrária que retirou
privilégios dos proprietários fundiários,
mas não tem essencialmente tocado nas raízes da
opressão de casta que se exprime na histórica desigualdade
das relações fundiárias na Índia.
Sessenta anos de lugares reservados desde a independência
não conseguiram retirar a imensa maioria dos Dalits e dos
membros de tribos da pobreza. Mas, ao contrário, uma camada
pequeno-burguesa se desenvolveu e, com zelo, fez a promoção
da identidade e da política de casta, ao mesmo tempo que
fez a defesa da ordem social capitalista.
Um processo similar tomará lugar com as OCAs, mesmo
que a pressão para que uma tal casta seja definida tenha
aparecido muito mais tarde e tenha sido alimentada, de um lado,
pela crise, se desenvolvendo após a independência
do projeto de desenvolvimento econômico nacional do Congresso,
e de outro, alimentada pelo desenvolvimento de uma camada relativamente
pequena mas politicamente influente de antigos arrendatários
prósperos.
Este é o governo do Partido Janata, uma coalizão
que unira os elementos dissidentes do Congresso, dos sociais democratas
e da direita suprematista hindu, que chegara ao poder depois que
Indira Gandhi procurou conter o descontentamento social acrescido
em seu governo por meios autoritários, como sua Lei de
Urgência. Em virtude desta última, uma comissão
fora instituída para estudar quais medidas deveriam ser
tomadas para melhorar as condições das classes
atrasadas no sentido social e educativo, um grupo principalmente
definido pelas castas jati e varna.
Se baseando no recenseamento de 1931 (o Estado indiano há
séculos cessara de compilar as informações
sobre as afiliações de casta), a Comissão
Mandal identificara 3.743 jati pertencentes às classes
atrasadas no sentido social e educativo, agrupamento conhecido
na linguagem popular como as OCAs. Mais tarde, o governo estabelecera
uma burocracia permanente, chamada Comissão Nacional Para
as Classes Atrasadas, com o mandato de pôr periodicamente
em dia o registro das castas.
O governo Janata perdera o poder antes que a Comissão
Mandal entregasse seu relatório final. Mas em 1989, num
contexto onde a economia nacionalmente regulamentada e protegida
da Índia se enterrava na crise, o governo de Frente Nacional
do renegado Congresso V. P. Singh se apoderara de uma das proposições
de Mandal, esta de reservar 27 por cento dos lugares do governo
central para as OCAs, a fim de dar brilho nas pretensões
de seu governo em ser uma alternativa plebéia, ou mesmo
socialista.
A questão dos lugares reservados rapidamente tornou-se
uma causa célebre para os partidos comunistas stalinistas,
que juntaram suas forças à V. P. Singh e a diversos
partidos para se proclamarem os representantes das castas inferiores
em seus esforços para fazer reservar os lugares às
OCAs. Durante este tempo, os estudantes, apoiados por uma parte
da mídia, orquestraram barulhentos protestos contra os
lugares reservados.
Neste contexto, o BJP, que prega a supremacia hindu, se pôs
adiante para explorar os temores e preconceitos da classe média
e das famílias tradicionalmente classificadas nas castas
superiores, reivindicando em nome da unidade hindu/nacional a
construção de um templo em honra ao deus hindu Ram
sobre o lugar de uma mesquita célebre em Ayodhya. Esta
agitação foi uma revanche à demolição
da mesquita de Babri Masjid em dezembro de 1992 e a pior violência
comunitarista anti-muçulmana desde a repartição
do subcontinente em 1947.
A política oficial do começo dos anos 1990 foi
dominada pelas turbas comunitaristas e de casta encorajadas pela
agitação em torno do relatório Mandal e de
Babri Masjid. Durante este tempo, a classe dirigente indiana conseguira,
com a cumplicidade dos stalinistas, escapar das conseqüências
potencialmente revolucionárias do aprofundamento de sua
estratégia de desenvolvimento nacional. Numa reorientação
estratégica maior, ela trabalhou para integrar plenamente
a Índia na economia capitalista mundial e torná-la
um porto seguro e mercado de mão de obra barata para o
capital internacional.
De modo similar, o governo APU pôs adiante a questão
dos lugares reservados, em um período de crise social aguda,
para se dar uma aparência populista antes de prosseguir
com um programa socioeconômico de conseqüências
incendiárias para a grande maioria da população
da Índia.
E, uma vez mais, existe o grave perigo dos stalinistas permitirem
à classe dirigente indiana desviar as mobilizações
e o descontentamento social de massa dos trabalhadores da Índia
em direção das políticas de casta, mobilizações
concentradas no racionamento dos empregos e do acesso à
universidade, isto é, no racionamento da miséria
criada pelo capitalismo. Uma tal política barateia o programa
da grande empresa e da ordem social capitalista e reforça
as divisões de casta, permitindo, assim, à burguesia
pôr em obra sua política neoliberal e ao BJP e a
outras forças de extrema direita, se apresentarem fraudulentamente
às classes médias rurais e urbanas como sendo seus
defensores.
O World Socialist Web Site conclama imediatamente aos
trabalhadores da Índia para não caírem nesta
armadilha. Uma luta verdadeira contra a opressão de casta
somente é possível se dirigida pela classe operária
mobilizando todas as camadas oprimidas, independentes de casta,
de religião ou de pertencimento étnico, contra o
governo APU e a ordem social capitalista.
* * *
1. De modo geral, se pode dizer que na Índia há
mais de 2.000 castas e sub-castas que se dividem de acordo com
critérios profissionais, religiosos, regionais e lingüísticos.
Mesmo os Dalits, ainda que pese sua condição de
párias, se subdividem em muitos grupos. Esta proliferação
favorece a discriminação, tanto horizontal como
vertical, fazendo com que as relações sociais sejam
ainda mais rígidas, hierárquicas e imutáveis.
Do mesmo modo, se pode dizer que mais de 1.600 comunidades tribais
coabitam no mesmo território, aprofundando os fanatismos
e conflitos nacionais e religiosos da Índia. (nota do tradutor).
2. APUAliança Progressista Unida: aliança
entre o Partido do Congresso e demais forças ditas
progressistas da Índia, como os partidos ditos
comunistas. Essa Aliança ucedeu no poder
a Aliança DemocráticaNacional, dirigida
pelo BJP, partido de direita, no começo dos anos 2000.
O Partido do Congresso: monopolizou o poder de 1947 (após
a Independência da Inglaterra) até 1977 e teve em
seus quadros figuras conservadoras como os membros da família
Gandhi. Entre os partidos comunistas destaca-se o Partido Comunista
Índio (Marxista)PCI(M) de orientação
maoísta, reúne em seu interior várias pequenas
organizações regionais guerrilheiras de base camponesa.
(nota do tradutor)