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A política de casta e de “mérito”

Os trabalhadores indianos devem rejeitar o falso debate sobre os lugares reservados

Por Kranti Kumara e Keith Jones
1 de agosto de 2006

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Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês, no dia 31 de maio de 2006

Os projetos da Aliança Progressista Unida (APU) de aumentar o número de lugares reservados às castas [1] nas universidades financiadas pelo governo central, inclusive numa série de escolas profissionais de elite, têm desencadeado protestos de um grande número de estudantes e provocado indignação na imprensa e grandes empresas. Os médicos de Delhi, Mumbai e de outras cidades têm realizados greves surpresas em apoio aos estudantes e a Associação Médica Indiana juntara sua voz às manifestações.

No começo de abril, o ministro do Desenvolvimento dos Recursos Humanos, Arjun Singh, anunciara que a APU, dirigida pelo Partido do Congresso, [2] previra reservar 27 por cento dos lugares de entrada no Instituto Indiano de Ciências Médicas (IICM), no Instituto Indiano de Tecnologia (IIT), no Instituto Indiano de Gestão (IIG) e outras universidades financiadas pelo governo central, exclusivamente para os candidatos provenientes de Outras Classes Atrasadas (OCAs).

As OCAs constituem um aglomerado definido pelo Estado como agrupamentos de castas, ou jati, que têm sido tradicionalmente percebidas como socialmente inferiores pelos hindus brahmanes, as castas superiores, e identificadas como atrasadas do ponto de vista socioeconômico nos anos de 1970. Elas constituem cerca de 52 por cento da população indiana, de um total de 1,1 bilhão de pessoas.

O termo “outras” as distingue das “castas classificadas” (os Intocáveis ou Dalits) e das “tribos classificadas”, que representam juntas cerca de um quarto da população total da Índia. Sessenta anos após o Estado indiano ter oficialmente decretado a igualdade legal das castas classificadas e das tribos classificadas (CC e TC), a grande maioria vive hoje numa pobreza sombria e forma uma parte largamente desproporcionada de sem terras e de analfabetos da Índia.

Os 27 por cento de lugares reservados propostos às OCAs seriam acrescentados à cota de 22,5 por cento, que existe desde longo tempo, dos lugares de entrada reservados aos candidatos dos CC e dos TC. Se estes novos lugares reservados fossem implementados, 49,5 por cento de todos os lugares das universidades financiadas pelo governo central, aqueles considerados como os melhores do país, estariam sujeitos a ser “reservados”, o termo indiano empregado para designar os programas obrigatórios de discriminação positiva.

Para acalmar a oposição ao crescimento dos lugares reservados, o governo da APU anunciou na última terça-feira que aumentará o número total de lugares disponíveis para os estudantes a fim de assegurar que o número de lugares que não está sujeito a ser reservado não diminua.Isto necessitará um aumento do número total de lugares disponíveis em cerca de 50 por cento.

Apesar de suas próprias e repetidas afirmações de que está sob importantes pressões financeiras, o governo declarara que pode encontrar o dinheiro para financiar este desenvolvimento: uma despesa inicial de $1,7 bilhão e uma anual de $500 milhões. Contudo, os administradores das universidades estão, na grande maioria, contra este desenvolvimento. Eles afirmam que, mesmo com o financiamento suplementar, não estão em condições de encontrar pessoal formado e de desenvolver a infra-estrutura necessária (albergues de jovens, laboratórios, etc.) para acolher um afluxo tão grande e tão repentino de estudantes.

O governo também anunciou terça-feira que a lei caucionando o desenvolvimento dos lugares reservados será apresentada na próxima sessão do parlamento e que a cota de admissão de 27 por cento para os ACA entrará em vigor em junho de 2007.

Segundo a imprensa, a Frente de Esquerda, dirigida pelo Partido Comunista da Índia (marxista), tem jogado um papel importante convencendo o governo da APU de não recuar face aos protestos e de prosseguir rapidamente com a implantação dos lugares reservados às OCAs nas universidades financiadas pelo governo central. Os anúncios de terça-feira foram dados logo após uma longa reunião do Comitê de coordenação da APU e da Frente de Esquerda. Mesmo estando formalmente fora da APU, a Frente de Esquerda tem apoiado este governo no parlamento no curso dos dois últimos anos.

O governo e a Frente de Esquerda pretendem que o aumento dos lugares reservados às OCAs nas universidades financiadas pelo governo represente um avanço para a justiça social e um freio aos privilégios de casta. Isto é uma fraude cínica.

Na verdade, o aumento dos lugares reservados tivera como fim dar uma cobertura populista ao início da execução de reformas socioeconômicas neoliberais, reformas que tiveram um impacto catastrófico sobre milhões de indianos, inclusive sobre a vasta maioria das OCAs.

Se, por um lado, as empresas indianas e os setores mais privilegiados da classe média se beneficiaram da transformação da Índia num excelente mercado de mão de obra barata e de operações de pesquisa e desenvolvimento voltados para atender uma população espalhada pelo mercado global, por outro lado, os trabalhadores indianos viram seu nível de vida destroçado pela privatização, pela desregulamentação, pela destruição dos serviços públicos e pela ruína dos preços agrícolas. Na última semana, o governo admitiu que mais de 111.000 camponeses suicidaram-se em razão de seu endividamento entre 1993 e 2003.

E mais: o aumento dos lugares reservados reforça as divisões de casta e, como atesta o grande número de manifestações a favor e contra, ameaça desviar a cólera contra a falta de empregos, a insegurança econômica e as desigualdades sociais para o saco de lixo dos conflitos de casta.

É incontestável que as OCAs são vítimas de discriminação e representados de maneira desproporcional entre os socialmente sem vantagens. A nova proposta de lugares reservados, contudo, não vai mais do que trazer novas vantagens a uma ínfima minoria. A controvérsia atual não diz respeito a mais que 25.000 lugares nas universidades por ano.

A fraude da “meritocracia”

Os argumentos lançados por aqueles que dirigem a agitação contra os planos governamentais de aumentar os lugares reservados, a saber, aqueles que se opõem à política de casta e são os defensores do mérito, são, inteiramente e do mesmo modo, fraudulentos e reacionários.

Se bem que uma franja dos deputados do Bharatiya Janata Party (BJP) tenha se associada aos protestos estudantis, a oposição oficial suprematista hindu tem, até agora ao menos, tacitamente sustentado o governo na questão dos lugares reservados. Não são os políticos de oposição, mas a mídia oficial e a grande empresa que têm dirigido a condenação contra os lugares reservados.

A elite econômica da Índia se identifica instintivamente com os estudantes contestadores, que vêm geralmente dos berços mais privilegiados da sociedade indiana, e resistem às medidas governamentais que poderiam ter um efeito sobre os institutos que lhes fornecem o grosso de seu pessoal profissional. Mas sua razão principal para encorajar as contestações estudantis é de se assegurar que o governo não aplique sua ameaça de estender o regime de lugares reservados ao setor privado se o centro empresarial não puser rapidamente em seu lugar um programa voluntário de discriminação positiva baseado sobre as castas.

No último mês, ao dar sua primeira conferência de imprensa como presidente da Confederação da Indústria Indiana (CII), R. Seshaasayee declarou: “Um sistema obrigatório de lugares reservados não favorece a competitividade da indústria. Isto não é aceitável”.

O centro empresarial não quer os custos adicionais ligados à instauração dos lugares reservados. Fato também importante é que se opõe a toda intervenção do Estado naquilo que ele considera como prerrogativa do proprietário privado.

O princípio do mérito, sustentado pela grande empresa, é a mais flagrante característica da desigualdade socialmente regressiva do capitalismo indiano, capitalismo que associa injustiças do livre mercado à herança da opressão imperialista e de casta.

As horríveis desigualdades de ordem social atual—uma ordem que nega à maioria dos indianos uma habitação decente, água potável e três refeições por dia, sem falar de uma igualdade de chances—são evidentes no sistema educacional da Índia. Seis décadas após a independência da Índia, não se pode dizer que existe um sistema público de educação, tal a deploração da educação oferecida pelas escolas públicas. Apesar da importância que representa o sacrifício destas escolas, até mesmo os trabalhadores e os camponeses enviam seus filhos, toda vez que é possível, à escola privada.

Em conseqüência da pobreza e da falta de escolas públicas decentes, milhões de pessoas jamais acabam sua educação primária. Segundo as próprias cifras do governo, em 2001 próximo de 35 por cento de todos os indianos e 50 por cento de todas as mulheres eram iletrados.

Menos de um por cento da população da Índia, ou seja, 10 milhões de pessoas, está presentemente inscrita em um colégio ou instituição pós-secundária. Mas a qualidade da educação nestas instituições varia muito. Muitas são mal financiadas e não têm infra-estrutura necessária. Muitos dos graduados, salvos aqueles da elite das universidades, não chegam a encontrar empregos decentes. É este desespero, mesmo entre os jovens provenientes da classe média abastada, de não poderem ir às melhores escolas que explica a intensidade das manifestações atuais.

Fala-se muito do mérito dos estudantes que conseguiram obter um lugar numa instituição bem cotada. Apesar de apenas cerca de um a três por cento das centenas de milhares de jovens que tentam a cada ano obter um lugar passarem nos exames de entrada, eles são seguramente muito talentosos. Mesmo o Times of Índia, que tem apoiado as manifestações contra os lugares reservados, teve que admitir que poucos poderiam passar no exame sem um bom curso particular e que, dado o alto custo desta instrução particular, somente aqueles que vêm de uma família rica poderiam ter acesso a esta instrução.

Ainda que a grande empresa apresente-se agora como oposta às castas, ela está pronta para promover a Índia como sendo a mais populosa democracia, apesar da regular violência de casta contra os Dalits em grande parte da Índia e de relegar a maioria destes, dos membros de tribos e de muitos outros indianos, à simples subsistência. E mais: a classe dirigente da Índia tem subvencionado e continua a fazer a promoção dos partidos de castas e de partidos comunitaristas, inclusive o BJP, um partido suprematista hindu, e tem incorporado as categorias de castas em suas formas de poder.

Os lugares reservados: pilar da ordem burguesa

Os lugares reservados foram introduzidos pelo Estado colonial britânico como um meio, entre outros, de cultivar diferentes elites pequeno-burguesas para reforçar seu regime contra o movimento nacionalista nascente.

Mesmo que o Congresso Nacional Indiano, um partido burguês, tenha organizado os movimentos de massa controlados contra os britânicos, no fim da estrada, ele se entendeu com os dirigentes coloniais da Índia e fez abortar a luta antiimperialista. Como parte deste abortamento, ele tem adotado um sistema de lugares reservados aos Dalits e aos membros de tribos para as cadeiras do parlamento, para os empregos governamentais e para as universidades. Instituiu, ainda, uma modesta reforma agrária que retirou privilégios dos proprietários fundiários, mas não tem essencialmente tocado nas raízes da opressão de casta que se exprime na histórica desigualdade das relações fundiárias na Índia.

Sessenta anos de lugares reservados desde a independência não conseguiram retirar a imensa maioria dos Dalits e dos membros de tribos da pobreza. Mas, ao contrário, uma camada pequeno-burguesa se desenvolveu e, com zelo, fez a promoção da identidade e da política de casta, ao mesmo tempo que fez a defesa da ordem social capitalista.

Um processo similar tomará lugar com as OCAs, mesmo que a pressão para que uma tal casta seja definida tenha aparecido muito mais tarde e tenha sido alimentada, de um lado, pela crise, se desenvolvendo após a independência do projeto de desenvolvimento econômico nacional do Congresso, e de outro, alimentada pelo desenvolvimento de uma camada relativamente pequena mas politicamente influente de antigos arrendatários prósperos.

Este é o governo do Partido Janata, uma coalizão que unira os elementos dissidentes do Congresso, dos sociais democratas e da direita suprematista hindu, que chegara ao poder depois que Indira Gandhi procurou conter o descontentamento social acrescido em seu governo por meios autoritários, como sua Lei de Urgência. Em virtude desta última, uma comissão fora instituída para estudar quais medidas deveriam ser tomadas para melhorar as condições das “classes atrasadas no sentido social e educativo”, um grupo principalmente definido pelas castas jati e varna.

Se baseando no recenseamento de 1931 (o Estado indiano há séculos cessara de compilar as informações sobre as afiliações de casta), a Comissão Mandal identificara 3.743 jati pertencentes às classes atrasadas no sentido social e educativo, agrupamento conhecido na linguagem popular como as OCAs. Mais tarde, o governo estabelecera uma burocracia permanente, chamada Comissão Nacional Para as Classes Atrasadas, com o mandato de pôr periodicamente em dia o registro das castas.

O governo Janata perdera o poder antes que a Comissão Mandal entregasse seu relatório final. Mas em 1989, num contexto onde a economia nacionalmente regulamentada e protegida da Índia se enterrava na crise, o governo de Frente Nacional do renegado Congresso V. P. Singh se apoderara de uma das proposições de Mandal, esta de reservar 27 por cento dos lugares do governo central para as OCAs, a fim de dar brilho nas pretensões de seu governo em ser uma alternativa plebéia, ou mesmo socialista.

A questão dos lugares reservados rapidamente tornou-se uma causa célebre para os partidos comunistas stalinistas, que juntaram suas forças à V. P. Singh e a diversos partidos para se proclamarem os representantes das castas inferiores em seus esforços para fazer reservar os lugares às OCAs. Durante este tempo, os estudantes, apoiados por uma parte da mídia, orquestraram barulhentos protestos contra os lugares reservados.

Neste contexto, o BJP, que prega a supremacia hindu, se pôs adiante para explorar os temores e preconceitos da classe média e das famílias tradicionalmente classificadas nas castas superiores, reivindicando em nome da unidade hindu/nacional a construção de um templo em honra ao deus hindu Ram sobre o lugar de uma mesquita célebre em Ayodhya. Esta agitação foi uma revanche à demolição da mesquita de Babri Masjid em dezembro de 1992 e a pior violência comunitarista anti-muçulmana desde a repartição do subcontinente em 1947.

A política oficial do começo dos anos 1990 foi dominada pelas turbas comunitaristas e de casta encorajadas pela agitação em torno do relatório Mandal e de Babri Masjid. Durante este tempo, a classe dirigente indiana conseguira, com a cumplicidade dos stalinistas, escapar das conseqüências potencialmente revolucionárias do aprofundamento de sua estratégia de desenvolvimento nacional. Numa reorientação estratégica maior, ela trabalhou para integrar plenamente a Índia na economia capitalista mundial e torná-la um porto seguro e mercado de mão de obra barata para o capital internacional.

De modo similar, o governo APU pôs adiante a questão dos lugares reservados, em um período de crise social aguda, para se dar uma aparência populista antes de prosseguir com um programa socioeconômico de conseqüências incendiárias para a grande maioria da população da Índia.

E, uma vez mais, existe o grave perigo dos stalinistas permitirem à classe dirigente indiana desviar as mobilizações e o descontentamento social de massa dos trabalhadores da Índia em direção das políticas de casta, mobilizações concentradas no racionamento dos empregos e do acesso à universidade, isto é, no racionamento da miséria criada pelo capitalismo. Uma tal política barateia o programa da grande empresa e da ordem social capitalista e reforça as divisões de casta, permitindo, assim, à burguesia pôr em obra sua política neoliberal e ao BJP e a outras forças de extrema direita, se apresentarem fraudulentamente às classes médias rurais e urbanas como sendo seus defensores.

O World Socialist Web Site conclama imediatamente aos trabalhadores da Índia para não caírem nesta armadilha. Uma luta verdadeira contra a opressão de casta somente é possível se dirigida pela classe operária mobilizando todas as camadas oprimidas, independentes de casta, de religião ou de pertencimento étnico, contra o governo APU e a ordem social capitalista.

* * *

1. De modo geral, se pode dizer que na Índia há mais de 2.000 castas e sub-castas que se dividem de acordo com critérios profissionais, religiosos, regionais e lingüísticos. Mesmo os Dalits, ainda que pese sua condição de párias, se subdividem em muitos grupos. Esta proliferação favorece a discriminação, tanto horizontal como vertical, fazendo com que as relações sociais sejam ainda mais rígidas, hierárquicas e imutáveis. Do mesmo modo, se pode dizer que mais de 1.600 comunidades tribais coabitam no mesmo território, aprofundando os fanatismos e conflitos nacionais e religiosos da Índia. (nota do tradutor).

2. APU—Aliança Progressista Unida: aliança entre o Partido do Congresso e demais forças ditas “progressistas” da Índia, como os partidos ditos “comunistas”. Essa Aliança ucedeu no poder a Aliança Democrática Nacional, dirigida pelo BJP, partido de direita, no começo dos anos 2000. O Partido do Congresso: monopolizou o poder de 1947 (após a Independência da Inglaterra) até 1977 e teve em seus quadros figuras conservadoras como os membros da família Gandhi. Entre os partidos comunistas destaca-se o Partido Comunista Índio (Marxista)—PCI(M) de orientação maoísta, reúne em seu interior várias pequenas organizações regionais guerrilheiras de base camponesa. (nota do tradutor)