Em junho e julho de 1938, Leon Trotsky, revolucionário
russo exilado, e o francês André Breton, poeta e
pensador surrealista, colaboraram no México com a escrita
do extraordinário Manifesto por uma arte revolucionária
independente. Esta declaração permanece sendo
a expressão mais eloqüente já produzida da
comunhão de interesses do artista e do revolucionário
marxista.
A declaração começa: Pode-se dizer,
sem exagero, que nunca a civilização humana esteve
ameaçada por tantos perigos como agora. Os autores
notam a violação cada vez mais generalizada
das leis que governam a criação intelectual, particularmente
na Alemanha nazista e na Rússia stalinista. Se rejeitamos
qualquer solidariedade com a casta atualmente dirigente na URSS,
é precisamente porque no nosso entender ela não
representa o comunismo, mas é o seu inimigo mais pérfido
e mais perigoso, coloca o manifesto.
A revolução comunista, continua o
manifesto, não teme a arte. Ela aprendeu, ao estudar
o desenvolvimento das artes na sociedade capitalista em colapso,
que o impulso criativo só pode ser resultado do choque
entre o indivíduo e as formas sociais que lhe são
adversas. A declaração conclui: O que queremos:
a independência da artepara a revolução;
a revoluçãopara a liberação
definitiva da arte. [1]
O fato de terem sido essas duas personalidades, Trotsky e Breton,
que em 1938 escreveram o manifesto, não pode ser considerado
um mero acaso. Nenhum indivíduo na história tinha
tido uma concepção mais ampla e profunda da transformação
socialista da sociedade do que Leon Trotsky, a personificação
viva das tradições do bolchevismo. Por isso mesmo
que os atuais disseminadores oficiais de informação
hoje universalmente excluem seu nome ou falsificam o seu papel
de liderança nos eventos.
Breton também não se deu muito melhor. Na França,
ele é ignorado ou no máximo tratado como pré-histórico
por intelectuais contemporâneos; na América do Norte,
onde a maior parte de seu trabalho ainda não tinha sido
traduzida até recentemente, ele é taxado pelos círculos
acadêmicos e literários como um líder despótico
de um grupo de vanguarda.
É preciso trazer André Breton de volta à
vida. Com o centenário de seu nascimento, o escritor surrealista
começou a ser relembrado, e agora temos à nossa
disposição uma nova biografia completa, o livro
Revolution of the Mind: The Life of André Breton
(New York: Farrar, Straus & Giroux, 1995) de Mark Polizzotti.
Ainda mais vital para essa reconsideração do artista
francês é a enxurrada de traduções
de trabalhos de Breton que apareceram na última década
(muitos deles vindos da gráfica da universidade de Nebraska):
The Communicating Vessels, Arcanum 17, The Immaculate Conception,
Mad Love, Earthlight, Lost Steps, Free Rein e Conversations:
The Autobiography of Surrealism.
Elas nos dão a oportunidade de lançar um novo
olhar sobre Bretoné como se um novo grande escritor
subitamente surgisse em cena, alguém enormemente e gloriosamente
descompassado com a moda intelectual corrente; cada linha de Breton
é repleta do comprometimento apaixonado que os cínicos
frios e irônicos do pós-modernismo abominam.
Uma avaliação crítica
O propósito desse artigo é o de reviver o interesse
nos textos e pensamentos de Breton, para impulsionar a tendência
de esquecimento na qual ele foi que absorvido (como disse
o artista certa vez, referindo-se ao socialista utópico
Charles Fourier).[2] Os marxistas, é claro, não
precisam resguardar ninguém de suas críticas, nem
mesmo as lideranças de seu próprio movimento. Ao
analisar Breton como uma figura intelectual e literária
de destaque, acabamos assumindo diversas das grandes contradições
do século XX.
De um ponto de partida objetivo, o período mais produtivo
de Breton se estendeu de meados da década de 20 até
meados da década de 40. No fim das contas, ele foi incapaz
de escapar do destino reservado a quase todos os intelectuais
que se aproximaram da Revolução de Outubro e que
repudiavam a burocracia stalinista. O estrangulamento das revoluções
de 1936-8 na Espanha e na França (nesta última,
Breton teve um importante papel), os julgamentos de Moscou, a
morte de Trotsky em 1940, a 2ª Guerra imperialista e o novo
equilíbrio que a sucedeu, o aparente fortalecimento do
estalinismo, as dificuldades da IV Internacionaltudo acabou
pesando em suas reservas intelectuais.
(Vale notar que o manifesto de 1938 lançou a International
Federation of Independent Revolutionary Art (IFIRA). Nela,
Breton conseguiu reunir alguns de seus colegas surrealistas como
o poeta Benjamin Péret, os pintores Yves Tanguy e André
Masson; Victor Serge, Marcel Martinet, Ignazio Silone, Herbert
Read [que, por sua vez, solicitou o apoio de George Orwell] e
outros. Apesar disso, a seção francesa da IFIRA
cessou as suas operações depois da publicação
de dois números do jornal Clé (Chave), em
janeiro e fevereiro de 1939. As diferenças internas tiveram
um papel importante para a falência da IFIRA, mas o maior
problema era o ambiente político, extremamente difícil:
havia a influência do aparato stalinista na intelligentsia,
a condição desmoralizada de muitos dos que não
eram manipulados por esse aparato, e, é claro, a explosão
da guerra na Europa. Em sua última carta para Trotsky,
em junho de 1939, Breton escreveu: Talvez eu não
seja muito talentoso como organizador, mas ao mesmo tempo parece
que lutei contra obstáculos imensos [3]. O elemento
trágico desse depoimento não pode ser ignorado).
No começo dos anos 50, Breton rejeitou formalmente o
marxismo em favor do protesto esquerdista: o anarquismo (cujo
papel traidor na Revolução Espanhola foi denunciado
no próprio manifesto de 1938) e o socialismo utópico
(através do trabalho de Fourier). O artista não
foi o primeiro intelectual que, em um clima de recuo político
e estagnação, repentinamente lembrou que os bolcheviques
tinham sido responsáveis por conduzir a brutal supressão
do levante de Cronstadt em março de 1921.[4] É
difícil não perceber que o trabalho crítico
e poético de Breton decaiu, tanto em qualidade quanto em
quantidade, nos últimos 20 anos da sua vida, como uma conseqüência
das condições gerais desanimadoras dentro das quais
ele trabalhou.
A atitude de Breton em relação às tendências
artísticas concorrentes é outra complicação
trazida à tona por sua vida e obra. O filósofo alemão
Hegel sustentava que o espírito absolutista tinha tido
sua maior expressão no estado e na monarquia prussiana.
De um modo similar, Breton tendia a ver o surrealismo como o ponto
culminante em toda a história dos esforços intelectuais
e artísticos. Ninguém é obrigado a aceitar
sua visão ou a de sua seita de admiradores acríticos,
mas não há dúvida de que as condições
difíceis dos anos 30 e 40 ajudaram a solidificar a sua
insistência doutrinária de que só o surrealismo
expressava progresso artístico, e de que apenas o seu panteão
de heróis artísticos tinham expressado tal progresso
no passado.
Em outras palavras, quem se confronta com Breton é obrigado
a fazer uma boa seleção, para encontrar, então,
verdadeiras pedras preciosas.
Revolução apenas da mente?
A nova biografia de Polizzotti é uma consideração
cuidadosa da vida e da obra de Breton, mas tem as suas limitações.
O título, Revolution of the Mind (Revolução
da Mente), faz Breton parecer mais idealista do que ele de fato
era. De 1925 em diante o eixo fundamental de sua atividade era
a construção de ligações entre a revolução
da mente e a revolução da realidade
social. Para Breton, as duas chaves do surrealismo eram
a injunção de Marx de transformar o mundo e a de
Rimbaud de transformar a vida.[5]
Apesar de Polizzotti ser um biógrafo inteligente, o
seu livro aparentemente não traz nenhuma estrutura teórica
nem um comprometimento intelectual que sustente seu modo de tratar
Breton. Uma imagem distorcida pode surgir: um exemplo disso está
no fato de que, no seu trabalho, as relações pessoais
são colocadas em primeiro plano em detrimento de desenvolvimentos
históricos, artísticos e políticos, distorcendo
ou obscurecendo alguns dos fatos relatados.
Apesar de tudo, para aqueles capazes de preencher as lacunas
ou ler nas entrelinhas, esta biografia, lucidamente escrita e
bem documentada, abre uma janela de uma das grandes vidas do século
XX. É uma vida de sofrida relevância, uma vida significativa
para os nossos dias, porque Breton se dedicou a uma batalha que
ainda precisa ser travada, unindo a vanguarda da arte e a vanguarda
da revolução socialista.
Esta relevância tem um caráter contraditório.
Para muitos ela pode não ser auto-evidente. Em grande medida
ela existe na forma de uma crítica destrutiva da vida intelectual
contemporânea; ela destaca o que é preponderantemente
ausente. Muitas das atitudes e visões, por exemplo, que
Breton e seus camaradas tomaram por certasum genuíno
não-conformismo, um desdém pelo patriotismo e pelo
nacionalismo, um ódio pelas restrições morais
da sociedade burguesasão muito raras hoje. Vejamos,
por exemplo,uma declaração dos surrealistas de 1925,
em reação à incursão imperialista
da França no Marrocos:
Até mais do que o patriotismoque é
um tipo bem comum de histeria, embora mais vazio e mais efêmeronós
ficamos enojados com a idéia de pertencer a um país,
a qualquer país, que é o mais bestial e menos filosófico
dos conceitos aos quais estamos sujeitados... Em todo lugar onde
a civilização ocidental é dominante, todo
contato humano desapareceu, exceto o contato que gera granapago
em dinheiro vivo[6]
É claro que nos anos 20 e 30 os surrealistas estavam
longe de ser os únicos da intelligentsia européia
que se opunham ao capitalismo e à guerra, mas se apreciarmos
com propriedade o valor de Breton, podemos compreender o que separava
ele e os surrealistas do restante da intelligentsia. Para Breton
não era só uma questão de simpatizar
com a revolução socialista, como era o caso de muitos
intelectuais do período. Este tipo de atitude, independente
de quão sincera, implicava numa aceitação
subentendida da divisão entre arte e vida, entre o mundo
interior da fantasia e da imaginação e do mundo
exterior da realidade cotidiana; assim, essas simpatias políticas,
mesmo quando encontravam expressão artística direta,
tinham pouca influência em como se sentia (ou vivia) a vida.
O que foi o surrealismo?
Maurice Nadeau, em sua história do movimento, escreveu:
O surrealismo (...) está profundamente incrustado
no período do entre-guerras. Afirmar, como fazem muitos,
de que o que acontecia na arte era apenas manifestação
do período seria um materialismo supersimplificado: o surrealismo
também é herdeiro e difusor de movimentos artísticos
que o precederam e sem os quais ele não teria existido.
[7]
Enquanto fenômeno sociológico, o surrealismo,
cujo primeiro manifesto (escrito por Breton) apareceu em 1924,
sem dúvida tinha como elemento a repulsa que muitos jovens
sentiam pelos massacres da 1ª Guerra e pela sociedade que
a produziu. Os surrealistas levaram isso mais além, em
uma rejeição do que era percebido como o viés
dominante da sociedade francesao racional-positivismo
-, fascinando-se com os estados oníricos e do inconsciente.
Nas palavras de Nadeau: A razão, a todo-poderosa
razão, é denunciada... A realidade está,
por vezes, por trás do que nós vemos, ouvimos, tocamos,
cheiramos, experimentamos. Existem forças desconhecidas
que nos controlam, mas sobre as quais nós queremos atuar.
Nós só precisamos descobrir o que elas são
[8]. Os surrealistas se voltaram, por um lado, ao trabalho de
Freud, e, por outro, retornaram a Hegel e ao idealismo
alemão.
A preocupação com Hegel pode parecer peculiar
sob a luz da hostilidade professada pelos surrealistas à
lógica. Um comentador de esquerda notou que Breton e seus
colegas eram apaixonadamente devotos a Hegel, em cuja dialética
cruel eles encontraram uma arma admirável.[9] Isto
é um pouco fácil demais, confundindo o Breton de
1922 ou 24 com o homem de 12 anos depois. Pode ser que Breton
tenha sido levado a Hegel por razões um distintas em cada
um dos diferentes pontos de seu desenvolvimento intelectual.
Aparte do desejo de provocar loucamente a França anti-alemã
do fim da 1ª Guerra Mundial, demonstrando uma ostensiva estima
em relação à filosofia e a poesia alemãs,
Breton parece ter sido tão atraído pelo idealismo
hegeliano e pela noção do poder ilimitado do pensamento
e do sujeito pensante, quanto pela sua dialética.
Na rejeição surrealista ao positivismo e ao empirismo,
combinado com o interesse em Hegel, pode-se encontrar um eco da
revisão leninista da Lógica de Hegel, de 1915. Sem
dúvida a falência do pensar objetivista,
diretamente relacionado com o crescimento relativamente pacífico
do capitalismo de 1871 a 1914, tornou-se clara para pensadores
de muitos matizes. O ponto de vista adotado e as conclusões
tiradas, no entanto, variaram de acordo com as perspectivas e
as condições de classe dos indivíduos e grupos
em questão.
Pode-se dizer que, em última instância, a predisposição
dos surrealistas à dialética de Hegel facilitou
seu movimento subseqüente geral em direção
ao marxismo. Eles cumpriram um valioso papel na promoção
dos estudos dos Manuscritos filosóficos de Lênin:
na verdade, os primeiros trechos dos manuscritos traduzidos para
o francês apareceram nas suas publicações
de 1933.
Como um movimento artístico, em contraste com o dadaísmo
do qual ele emergiu e que descartava as criações
do passado, o surrealismo insistiu na importância da tradição.
Ele se colocou como seguidor do trabalho de um número de
indivíduos e tendênciasem particular um seleto
grupo de românticos franceses e alemães menos conhecidos
e, acima de tudo, Lautréamont (Isidore Ducasse, autor dos
Chants de Maldoror), do poeta Arthur Rimbaud e do dramaturgo
de humor negro Alfred Jarry.
No primeiro Manifesto de Surrealismo (1924), Breton declarou
que o novo princípio determinador do movimento era o automatismo
psíquico, que queria dizer a liberação
do pensamento de qualquer controle exercido pela razão,
isento de qualquer preocupação moral ou estética.
O surrealismo é baseado na crença na realidade
superior de certas formas de associação previamente
negligenciadas, na onipotência do sonho, no jogo desinteressado
do pensamento. E mais adiante: acredito na futura
resolução desses dois estados, sonho e realidade,
que aparentemente são tão contraditórios,
em um tipo de realidade absoluta, uma surrealidade [sur = sobre,
acima em francês] [10]
Qual é a fonte desse irracionalismo extremoaparte
do saudável, insolente desejo de chocar a opinião
pública da classe média? Do ponto de vista do desenvolvimento
histórico, isso sem dúvida expressou a posição
de camadas sociais cuja confiança na estabilidade da ordem
existente e cuja percepção de satisfação
foi profundamente chacoalhada pela calamitosa guerra mundial e
suas conseqüências políticas, incluindo a Revolução
Russa.
Uma variedade de tendências que apareceram nesses anos
celebravam o não-convencional ou o irracional. Alguns exaltavam
o futuro ou a máquina como coisas
em si mesmas; outros, os mais depravados, denegriam o esclarecimento
e a decadente democracia ocidental e veneravam sangue
e raça, ajudando a construir os pilares ideológicos
dos futuros movimentos fascistas. Na esfera das concepções
sociais, o dadaísmo e o surrealismo não tinham nada
em comum com essas tendências, mas o seu surgimento comum
demonstra a crise da vida intelectual.
Também podemos perguntar: de onde vinha o apelo desta
anti-razão para Breton, um intelectual que, como indivíduo,
tinha servido no exército francês durante a selvageria
da guerra? Talvez possamos ver, nessa maneira peculiar de devoção
ao espontâneo e em sua preocupação com os
estados oníricos, um ato de compensação exagerada;
um ato furioso, vindo de um jovem de classe média, rigorosamente
educado, que rejeitava (mesmo não entendendo-a plenamente)
uma ordem social oficialmente dedicada à razão e
à lógica. Na fúria dessa rejeição
a distinção entre a razão como
a ideologia da classe dominante francesa e a razão como
seu potencial antídoto revolucionário pode se perder
de vista.
Para atingir seus objetivos declarados de juntar sonho e realidade,
os surrealistas desenvolveram várias técnicas como
escrita automática, jogos e experimentos com hipnose, sessões
espíritas e estados de transe; acaso e espontaneidade eram
valorizados como um meio de acessar as profundezas do inconsciente
mental.
Essas excursões, independente de quão freqüente
Breton e outros solenemente rejeitassem a existência do
sobrenatural, levou por vezes o grupo surrealista ao pântano
do espiritualismo. De acordo com Nadeau, por exemplo, em uma
hosana em honra ao Leste, consistia quase toda a 3ª
edição da La Révolution Surrealiste,
editada por Antonin Artaud na primavera de 1925. Artaud, Robert
Desnos e outros tinham descoberto um novo tipo de misticismo
associado com O misterioso Leste de Buda e de Dalai Lama.
[11] Nesse ponto Breton reassumiu o controle editorial do periódico
e logo depois desenvolveu uma orientação em direção
ao marxismo e ao Partido Comunista.
No primeiro manifesto, Breton tinha ido tão longe em
sua paixão pelos sonhos e pelo sonhar que chegou a sugerir
que o estado desperto era um fenômeno de interferência.
[12] Sua visão se alterou, por um tempo pelo menos, assim
que fez um sério esforço de reconciliação
com as concepções marxistas de meados dos anos 20
em diante. Em uma palestra dada na Bélgica em 1934, Breton
notou que em 1925 a atividade surrealista... entrou em sua
fase pensante. Ela subitamente experimentou a necessidade de atravessar
o vácuo que separa o idealismo absoluto do materialismo
dialético. [13] Em um de seus melhores ensaios, Fronteiras
não-nacionais do Surrealismo (1937), Breton proclamou
a primeira de um conjunto fundamental e indivisível
de proposições: a adesão a todos
os princípios do materialismo dialético endossados
em sua plenitude pelo surrealismo: a supremacia da matéria
sobre o pensamento.... [14]
Seria justo dizer que sempre teve algo de temporário
sobre esta adesão e que Breton achava a dialética
muito mais convincente do que o materialismo. Ele aparentemente
manteve a visão, compartilhada por muitos intelectuais
de esquerda daquele século, de que Materialismo e Empiriocriticismo
de Lênin era um trabalho particularmente vulgar e simplista.
A obsessão de Breton com o não-racional era no
mínimo parcial e no máximo uma descida sem valor
ao idealismo aberto. (Em seus últimos anos, o interesse
de Breton pelo oculto se tornou uma séria preocupação.
Trotsky, em suas conversas de 1938, sugeriu que Breton estava
tentando manter uma pequena janela para o além.
[15] Apenas onze anos depois de seu firme endosso ao materialismo,
de fato, ele podia escrever que sua oposição ao
idealismo era puramente formal. [16]).
O desejo inteiramente legítimo de compreender os fundamentos
de uma determinada tendência artística precisa ser
balanceado com o reconhecimento de que sua significância
última é determinada pela sua contribuição
à verdade artística. A confusão nunca é
uma virtude, mas sua presença pode ser evidencia de um
rompimento com a inércia intelectual e a rotina, e no caso
dos surrealistas, ela era sintomática de um tremendo fermento
criativo. Emergiu no surrealismo uma perspectiva que afetou o
curso da arte ocidental e, até, em certos aspectos, apontava
o modo como a cultura poderia ser em uma sociedade genuinamente
humana, sem classes. É este o elemento revolucionário
que precisa ser recuperado e assimilado.
A vida artística na França
Para compreender o surrealismo, é importante colocá-lo
em seu contexto artístico, assim como em seu contexto histórico.
Mark Polizzotti fornece uma lista de dúzias de movimentos
artísticos na França (simbolismo, naturalismo, parnasianismo,
cientificismo, etc.) que precederam o surrealismo nas últimas
décadas do século XIV e nas primeiras décadas
do século XX. [17]
Seria equivocado ver nessa proliferação de ismos
artísticos um sinal da vitalidade da cultura burguesa:
ao contrário, muitos desses movimentos eram febris e abortivos,
logo desaparecendo na obscuridade. Mas olhando para eles de novo
agora, o que parece ser mais fulminante sobre esse período
é ver como as pessoas tratavam seriamente a arte.
É claro que o egoísmo e o subjetivismo representaram
um grande papel em tudo isso, mas é notável quão
avidamente o pessoal procurava se tornar impessoal (ou, talvez,
mais precisamente, superpessoal), como se a força abrupta
da visão artística de um indivíduo não
pudesse ser contida em um homem só. Isto é o que
parece estar tão distante da sensibilidade cultural prevalecente
no fim do século XX. A suposição comum do
nosso período é a impotência da arte e do
artista: já que a arte não pode realmente mudar
nada, já que a mudançaem qualquer sentido
fundamentalparece impossível, qual sentido existiria
no agrupamento de artistas? No lugar de movimentos baseados em
idéias artísticas e objetivos comuns, abundam pequenos
grupos fechados e exclusivos de supostos artistas.
Outro modo possível de definir o surrealismo, então,
seria descrevendo-o como a mais alta e mais extrema expressão
da crença no poder da arte. Mas, no limite, a arte não
pode mais ser o que muitos de nós pensávamos que
ela fosse, isto é, a produção de artefatos,
de belas imagens em palavras, pintura, filme, etc. Os surrealistas
eram hostis à arte convencional e às profissões
que intencionavam fazê-la. Como Polizzotti explica, era
a pura vaidade do empreendimento literário que os revoltava,
a inutilidade de escrever mais um romance, de publicar mais uma
coleção de poemas, e, no final, não ter feito
nada além de aumentar a fama de alguém. Se
o ato de escrever deveria significar alguma coisa, devia ser mais
do que só literatura; a criação deveria gerar
mais do que a mera arte. [18]
De fato, em algumas das primeiras edições do
seu jornal, os surrealistas astutamente expuseram essa vaidade
propondo um questionário simples mas eficaz para os membros
da cena literária de Paris: Por que você escreve?
A maioria das respostas demonstraramalgumas vezes de maneira
hilárianão só que os autores não
tinham razão que justificasse as suas atividades artísticas,
mas que a própria questão nunca tinha ocorrido antes
para eles. Inútil dizer, esta questão permanece
tão relevante em atualmente como era em 1919.
Nesta ação, mais do que a impertinência
e os maus-costumes de um expoente grupo de artistas em relação
aos mais velhos, estava em pauta, acima de tudo, a razão
principal para se fazer arte. A beleza será CONVULSIVA,
declara Breton no fim de seu extraordinário romance Nadja,
ou não será nada. [19] Esta era uma
declaração de guerra à noção
estética que via a beleza como contemplativa e um refúgio
da vida, um oásis de perfeição em um mundo
áspero e feio. A poesia era muito menos uma questão
de palavras em uma página do que um modo de vida, um parâmetro
ético antes de um estético, algo que permitia a
experiência da convulsão da beleza, mesmo até
o ponto do delírio. [20]
Dizer que a beleza estava na vida não significava fechar
os olhos diante da miséria e da desgraça da vida
da maior parte das pessoas; pelo contrário, era porque
odiavam essa desgraça que os surrealistas eventualmente
se voltaram ao marxismo. Mas a vida era mais do que a simples
soma de suas manifestações externas, e tendências
artísticas como o realismo e o naturalismo não estavam,
na visão de Breton, sendo realistas o suficiente pois ignoravam
amplamente as outras dimensões da vidao reinado interior
dos sonhos e da imaginação. Esta era a realidade
a partir da qual poderia surgir uma nova concepção
de beleza e da relação entre arte e vida.
Notas :
1. André Breton, Free Rein (La Clé des Champs),
trad. Michel Parmentier and Jacqueline dAmboise (Lincoln:
University of Nebraska Press, 1995), pp. 29-31, 34.
2. Franklin Rosemont, ed., What is Surrealism?: Selected
Writings, (New York: Pathfinder, 1978), p. 264.
3. Mark Polizzotti, Revolution of the Mind: The Life of André
Breton (New York: Farrar, Straus & Giroux, 1995), p. 472.
4. Breton, Free Rein, p. 266.
5. André Breton, Manifestoes of Surrealism, trad.
Richard Seaver and Helen R. Lane (Ann Arbor: The University of
Michigan Press, 1972), p. 241.
6. Rosemont, ed., What is Surrealism?, pp. 318-19.
7. Maurice Nadeau, The History of Surrealism, trad. Richard
Howard (New York: Macmillan Co., 1965), p. 43.
8. Ibid., p. 48.
9. Rosemont, ed., What is Surrealism?, p. 33
10. Breton, Manifestoes of Surrealism, pp. 26, 14.
11. Nadeau, The History of Surrealism, p. 105.
12. Breton, Manifestoes of Surrealism, p. 12.
13. Rosemont, ed., What is Surrealism?,pp. 116-17.
14. Breton, Free Rein, p. 9. Back
15. Polizzotti, Revolution of the Mind, p. 458.
16. Breton, Free Rein, p. 109.
17. Polizzotti, Revolution of the Mind, pp. 17-18.
18. Ibid., p. 95.
19. André Breton, Nadja, trad. Richard Howard (New
York: Grove Weidenfeld, 1960), p. 160.
20. Nadeau, The History of Surrealism, p. 274.