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Arte e Liberdade

André Breton e os problemas da cultura no século XX

Parte 1

Por Frank Brenner e David Walsh
16 Marzo 2007

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Em junho e julho de 1938, Leon Trotsky, revolucionário russo exilado, e o francês André Breton, poeta e pensador surrealista, colaboraram no México com a escrita do extraordinário “Manifesto por uma arte revolucionária independente”. Esta declaração permanece sendo a expressão mais eloqüente já produzida da comunhão de interesses do artista e do revolucionário marxista.

A declaração começa: “Pode-se dizer, sem exagero, que nunca a civilização humana esteve ameaçada por tantos perigos como agora”. Os autores notam a “violação cada vez mais generalizada das leis que governam a criação intelectual, particularmente na Alemanha nazista e na Rússia stalinista”. Se rejeitamos qualquer solidariedade com a casta atualmente dirigente na URSS, é precisamente porque no nosso entender ela não representa o comunismo, mas é o seu inimigo mais pérfido e mais perigoso”, coloca o manifesto.

“A revolução comunista”, continua o manifesto, “não teme a arte. Ela aprendeu, ao estudar o desenvolvimento das artes na sociedade capitalista em colapso, que o impulso criativo só pode ser resultado do choque entre o indivíduo e as formas sociais que lhe são adversas. “A declaração conclui: O que queremos: a independência da arte—para a revolução; a revolução—para a liberação definitiva da arte.” [1]

O fato de terem sido essas duas personalidades, Trotsky e Breton, que em 1938 escreveram o manifesto, não pode ser considerado um mero acaso. Nenhum indivíduo na história tinha tido uma concepção mais ampla e profunda da transformação socialista da sociedade do que Leon Trotsky, a personificação viva das tradições do bolchevismo. Por isso mesmo que os atuais disseminadores oficiais de informação hoje universalmente excluem seu nome ou falsificam o seu papel de liderança nos eventos.

Breton também não se deu muito melhor. Na França, ele é ignorado ou no máximo tratado como “pré-histórico” por intelectuais contemporâneos; na América do Norte, onde a maior parte de seu trabalho ainda não tinha sido traduzida até recentemente, ele é taxado pelos círculos acadêmicos e literários como um líder despótico de um grupo de vanguarda.

É preciso trazer André Breton de volta à vida. Com o centenário de seu nascimento, o escritor surrealista começou a ser relembrado, e agora temos à nossa disposição uma nova biografia completa, o livro Revolution of the Mind: The Life of André Breton (New York: Farrar, Straus & Giroux, 1995) de Mark Polizzotti. Ainda mais vital para essa reconsideração do artista francês é a enxurrada de traduções de trabalhos de Breton que apareceram na última década (muitos deles vindos da gráfica da universidade de Nebraska): The Communicating Vessels, Arcanum 17, The Immaculate Conception, Mad Love, Earthlight, Lost Steps, Free Rein e Conversations: The Autobiography of Surrealism.

Elas nos dão a oportunidade de lançar um novo olhar sobre Breton—é como se um novo grande escritor subitamente surgisse em cena, alguém enormemente e gloriosamente descompassado com a moda intelectual corrente; cada linha de Breton é repleta do comprometimento apaixonado que os cínicos frios e irônicos do pós-modernismo abominam.

Uma avaliação crítica

O propósito desse artigo é o de reviver o interesse nos textos e pensamentos de Breton, “para impulsionar a tendência de esquecimento na qual ele foi que absorvido” (como disse o artista certa vez, referindo-se ao socialista utópico Charles Fourier).[2] Os marxistas, é claro, não precisam resguardar ninguém de suas críticas, nem mesmo as lideranças de seu próprio movimento. Ao analisar Breton como uma figura intelectual e literária de destaque, acabamos assumindo diversas das grandes contradições do século XX.

De um ponto de partida objetivo, o período mais produtivo de Breton se estendeu de meados da década de 20 até meados da década de 40. No fim das contas, ele foi incapaz de escapar do destino reservado a quase todos os intelectuais que se aproximaram da Revolução de Outubro e que repudiavam a burocracia stalinista. O estrangulamento das revoluções de 1936-8 na Espanha e na França (nesta última, Breton teve um importante papel), os julgamentos de Moscou, a morte de Trotsky em 1940, a 2ª Guerra imperialista e o novo equilíbrio que a sucedeu, o aparente fortalecimento do estalinismo, as dificuldades da IV Internacional—tudo acabou pesando em suas reservas intelectuais.

(Vale notar que o manifesto de 1938 lançou a International Federation of Independent Revolutionary Art (IFIRA). Nela, Breton conseguiu reunir alguns de seus colegas surrealistas como o poeta Benjamin Péret, os pintores Yves Tanguy e André Masson; Victor Serge, Marcel Martinet, Ignazio Silone, Herbert Read [que, por sua vez, solicitou o apoio de George Orwell] e outros. Apesar disso, a seção francesa da IFIRA cessou as suas operações depois da publicação de dois números do jornal Clé (Chave), em janeiro e fevereiro de 1939. As diferenças internas tiveram um papel importante para a falência da IFIRA, mas o maior problema era o ambiente político, extremamente difícil: havia a influência do aparato stalinista na intelligentsia, a condição desmoralizada de muitos dos que não eram manipulados por esse aparato, e, é claro, a explosão da guerra na Europa. Em sua última carta para Trotsky, em junho de 1939, Breton escreveu: “Talvez eu não seja muito talentoso como organizador, mas ao mesmo tempo parece que lutei contra obstáculos imensos” [3]. O elemento trágico desse depoimento não pode ser ignorado).

No começo dos anos 50, Breton rejeitou formalmente o marxismo em favor do protesto esquerdista: o anarquismo (cujo papel traidor na Revolução Espanhola foi denunciado no próprio manifesto de 1938) e o socialismo utópico (através do trabalho de Fourier). O artista não foi o primeiro intelectual que, em um clima de recuo político e estagnação, repentinamente lembrou que os bolcheviques tinham sido responsáveis por conduzir a “brutal supressão do levante de Cronstadt em março de 1921”.[4] É difícil não perceber que o trabalho crítico e poético de Breton decaiu, tanto em qualidade quanto em quantidade, nos últimos 20 anos da sua vida, como uma conseqüência das condições gerais desanimadoras dentro das quais ele trabalhou.

A atitude de Breton em relação às tendências artísticas “concorrentes” é outra complicação trazida à tona por sua vida e obra. O filósofo alemão Hegel sustentava que o espírito absolutista tinha tido sua maior expressão no estado e na monarquia prussiana. De um modo similar, Breton tendia a ver o surrealismo como o ponto culminante em toda a história dos esforços intelectuais e artísticos. Ninguém é obrigado a aceitar sua visão ou a de sua seita de admiradores acríticos, mas não há dúvida de que as condições difíceis dos anos 30 e 40 ajudaram a solidificar a sua insistência doutrinária de que só o surrealismo expressava progresso artístico, e de que apenas o seu panteão de heróis artísticos tinham expressado tal progresso no passado.

Em outras palavras, quem se confronta com Breton é obrigado a fazer uma boa seleção, para encontrar, então, verdadeiras pedras preciosas.

Revolução apenas da mente?

A nova biografia de Polizzotti é uma consideração cuidadosa da vida e da obra de Breton, mas tem as suas limitações. O título, Revolution of the Mind (Revolução da Mente), faz Breton parecer mais idealista do que ele de fato era. De 1925 em diante o eixo fundamental de sua atividade era a construção de ligações entre a “revolução da mente” e a “revolução da realidade social”. Para Breton, as duas chaves do surrealismo eram a injunção de Marx de transformar o mundo e a de Rimbaud de transformar a vida.[5]

Apesar de Polizzotti ser um biógrafo inteligente, o seu livro aparentemente não traz nenhuma estrutura teórica nem um comprometimento intelectual que sustente seu modo de tratar Breton. Uma imagem distorcida pode surgir: um exemplo disso está no fato de que, no seu trabalho, as relações pessoais são colocadas em primeiro plano em detrimento de desenvolvimentos históricos, artísticos e políticos, distorcendo ou obscurecendo alguns dos fatos relatados.

Apesar de tudo, para aqueles capazes de preencher as lacunas ou ler nas entrelinhas, esta biografia, lucidamente escrita e bem documentada, abre uma janela de uma das grandes vidas do século XX. É uma vida de sofrida relevância, uma vida significativa para os nossos dias, porque Breton se dedicou a uma batalha que ainda precisa ser travada, unindo a vanguarda da arte e a vanguarda da revolução socialista.

Esta “relevância” tem um caráter contraditório. Para muitos ela pode não ser auto-evidente. Em grande medida ela existe na forma de uma crítica destrutiva da vida intelectual contemporânea; ela destaca o que é preponderantemente ausente. Muitas das atitudes e visões, por exemplo, que Breton e seus camaradas tomaram por certas—um genuíno não-conformismo, um desdém pelo patriotismo e pelo nacionalismo, um ódio pelas restrições morais da sociedade burguesa—são muito raras hoje. Vejamos, por exemplo,uma declaração dos surrealistas de 1925, em reação à incursão imperialista da França no Marrocos:

“Até mais do que o patriotismo—que é um tipo bem comum de histeria, embora mais vazio e mais efêmero—nós ficamos enojados com a idéia de pertencer a um país, a qualquer país, que é o mais bestial e menos filosófico dos conceitos aos quais estamos sujeitados... Em todo lugar onde a civilização ocidental é dominante, todo contato humano desapareceu, exceto o contato que gera grana—pago em dinheiro vivo”[6]

É claro que nos anos 20 e 30 os surrealistas estavam longe de ser os únicos da intelligentsia européia que se opunham ao capitalismo e à guerra, mas se apreciarmos com propriedade o valor de Breton, podemos compreender o que separava ele e os surrealistas do restante da intelligentsia. Para Breton não era só uma questão de “simpatizar” com a revolução socialista, como era o caso de muitos intelectuais do período. Este tipo de atitude, independente de quão sincera, implicava numa aceitação subentendida da divisão entre arte e vida, entre o mundo interior da fantasia e da imaginação e do mundo exterior da realidade cotidiana; assim, essas simpatias políticas, mesmo quando encontravam expressão artística direta, tinham pouca influência em como se sentia (ou vivia) a vida.

O que foi o surrealismo?

Maurice Nadeau, em sua história do movimento, escreveu: “O surrealismo (...) está profundamente incrustado no período do entre-guerras. Afirmar, como fazem muitos, de que o que acontecia na arte era apenas manifestação do período seria um materialismo supersimplificado: o surrealismo também é herdeiro e difusor de movimentos artísticos que o precederam e sem os quais ele não teria existido”. [7]

Enquanto fenômeno sociológico, o surrealismo, cujo primeiro manifesto (escrito por Breton) apareceu em 1924, sem dúvida tinha como elemento a repulsa que muitos jovens sentiam pelos massacres da 1ª Guerra e pela sociedade que a produziu. Os surrealistas levaram isso mais além, em uma rejeição do que era percebido como o viés dominante da sociedade francesa—o “racional-positivismo” -, fascinando-se com os estados oníricos e do inconsciente. Nas palavras de Nadeau: “A razão, a todo-poderosa razão, é denunciada... A realidade está, por vezes, por trás do que nós vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos, experimentamos. Existem forças desconhecidas que nos controlam, mas sobre as quais nós queremos atuar. Nós só precisamos descobrir o que elas são” [8]. Os surrealistas se voltaram, por um lado, ao trabalho de Freud, e, por outro, “retornaram” a Hegel e ao idealismo alemão.

A preocupação com Hegel pode parecer peculiar sob a luz da hostilidade professada pelos surrealistas à lógica. Um comentador de esquerda notou que Breton e seus colegas “eram apaixonadamente devotos a Hegel, em cuja dialética cruel eles encontraram uma arma admirável”.[9] Isto é um pouco fácil demais, confundindo o Breton de 1922 ou 24 com o homem de 12 anos depois. Pode ser que Breton tenha sido levado a Hegel por razões um distintas em cada um dos diferentes pontos de seu desenvolvimento intelectual.

Aparte do desejo de provocar loucamente a França anti-alemã do fim da 1ª Guerra Mundial, demonstrando uma ostensiva estima em relação à filosofia e a poesia alemãs, Breton parece ter sido tão atraído pelo idealismo hegeliano e pela noção do poder ilimitado do pensamento e do sujeito pensante, quanto pela sua dialética.

Na rejeição surrealista ao positivismo e ao empirismo, combinado com o interesse em Hegel, pode-se encontrar um eco da revisão leninista da Lógica de Hegel, de 1915. Sem dúvida a falência do pensar “objetivista”, diretamente relacionado com o crescimento relativamente pacífico do capitalismo de 1871 a 1914, tornou-se clara para pensadores de muitos matizes. O ponto de vista adotado e as conclusões tiradas, no entanto, variaram de acordo com as perspectivas e as condições de classe dos indivíduos e grupos em questão.

Pode-se dizer que, em última instância, a predisposição dos surrealistas à dialética de Hegel facilitou seu movimento subseqüente geral em direção ao marxismo. Eles cumpriram um valioso papel na promoção dos estudos dos Manuscritos filosóficos de Lênin: na verdade, os primeiros trechos dos manuscritos traduzidos para o francês apareceram nas suas publicações de 1933.

Como um movimento artístico, em contraste com o dadaísmo do qual ele emergiu e que descartava as criações do passado, o surrealismo insistiu na importância da tradição. Ele se colocou como seguidor do trabalho de um número de indivíduos e tendências—em particular um seleto grupo de românticos franceses e alemães menos conhecidos e, acima de tudo, Lautréamont (Isidore Ducasse, autor dos Chants de Maldoror), do poeta Arthur Rimbaud e do dramaturgo de humor negro Alfred Jarry.

No primeiro Manifesto de Surrealismo (1924), Breton declarou que o novo princípio determinador do movimento era o “automatismo psíquico”, que queria dizer a liberação do pensamento de “qualquer controle exercido pela razão, isento de qualquer preocupação moral ou estética”. O surrealismo “é baseado na crença na realidade superior de certas formas de associação previamente negligenciadas, na onipotência do sonho, no jogo desinteressado do pensamento.” E mais adiante: “acredito na futura resolução desses dois estados, sonho e realidade, que aparentemente são tão contraditórios, em um tipo de realidade absoluta, uma surrealidade [sur = “sobre”, “acima” em francês]” [10]

Qual é a fonte desse irracionalismo extremo—aparte do saudável, insolente desejo de chocar a opinião pública da classe média? Do ponto de vista do desenvolvimento histórico, isso sem dúvida expressou a posição de camadas sociais cuja confiança na estabilidade da ordem existente e cuja percepção de satisfação foi profundamente chacoalhada pela calamitosa guerra mundial e suas conseqüências políticas, incluindo a Revolução Russa.

Uma variedade de tendências que apareceram nesses anos celebravam o não-convencional ou o irracional. Alguns exaltavam “o futuro” ou “a máquina” como coisas em si mesmas; outros, os mais depravados, denegriam o esclarecimento e a “decadente” democracia ocidental e veneravam “sangue” e “raça”, ajudando a construir os pilares ideológicos dos futuros movimentos fascistas. Na esfera das concepções sociais, o dadaísmo e o surrealismo não tinham nada em comum com essas tendências, mas o seu surgimento comum demonstra a crise da vida intelectual.

Também podemos perguntar: de onde vinha o apelo desta anti-razão para Breton, um intelectual que, como indivíduo, tinha servido no exército francês durante a selvageria da guerra? Talvez possamos ver, nessa maneira peculiar de devoção ao espontâneo e em sua preocupação com os estados oníricos, um ato de compensação exagerada; um ato furioso, vindo de um jovem de classe média, rigorosamente educado, que rejeitava (mesmo não entendendo-a plenamente) uma ordem social oficialmente dedicada à razão e à lógica. Na fúria dessa rejeição a distinção entre a “razão” como a ideologia da classe dominante francesa e a razão como seu potencial antídoto revolucionário pode se perder de vista.

Para atingir seus objetivos declarados de juntar sonho e realidade, os surrealistas desenvolveram várias técnicas como escrita automática, jogos e experimentos com hipnose, sessões espíritas e estados de transe; acaso e espontaneidade eram valorizados como um meio de acessar as profundezas do inconsciente mental.

Essas excursões, independente de quão freqüente Breton e outros solenemente rejeitassem a existência do sobrenatural, levou por vezes o grupo surrealista ao pântano do espiritualismo. De acordo com Nadeau, por exemplo, em “uma hosana em honra ao Leste”, consistia quase toda a 3ª edição da La Révolution Surrealiste, editada por Antonin Artaud na primavera de 1925. Artaud, Robert Desnos e outros tinham descoberto um “novo tipo de misticismo” associado com “O misterioso Leste de Buda e de Dalai Lama”. [11] Nesse ponto Breton reassumiu o controle editorial do periódico e logo depois desenvolveu uma orientação em direção ao marxismo e ao Partido Comunista.

No primeiro manifesto, Breton tinha ido tão longe em sua paixão pelos sonhos e pelo sonhar que chegou a sugerir que o estado desperto era “um fenômeno de interferência.” [12] Sua visão se alterou, por um tempo pelo menos, assim que fez um sério esforço de reconciliação com as concepções marxistas de meados dos anos 20 em diante. Em uma palestra dada na Bélgica em 1934, Breton notou que em 1925 “a atividade surrealista... entrou em sua fase pensante. Ela subitamente experimentou a necessidade de atravessar o vácuo que separa o idealismo absoluto do materialismo dialético.” [13] Em um de seus melhores ensaios, “Fronteiras não-nacionais do Surrealismo” (1937), Breton proclamou a primeira de “um conjunto fundamental e indivisível de proposições”: “a adesão a todos os princípios do materialismo dialético endossados em sua plenitude pelo surrealismo: a supremacia da matéria sobre o pensamento....” [14]

Seria justo dizer que sempre teve algo de temporário sobre esta “adesão” e que Breton achava a dialética muito mais convincente do que o materialismo. Ele aparentemente manteve a visão, compartilhada por muitos intelectuais de esquerda daquele século, de que Materialismo e Empiriocriticismo de Lênin era um trabalho particularmente vulgar e simplista.

A obsessão de Breton com o não-racional era no mínimo parcial e no máximo uma descida sem valor ao idealismo aberto. (Em seus últimos anos, o interesse de Breton pelo oculto se tornou uma séria preocupação. Trotsky, em suas conversas de 1938, sugeriu que Breton estava tentando “manter uma pequena janela para o além”. [15] Apenas onze anos depois de seu firme endosso ao materialismo, de fato, ele podia escrever que sua oposição ao idealismo era “puramente formal”. [16]).

O desejo inteiramente legítimo de compreender os fundamentos de uma determinada tendência artística precisa ser balanceado com o reconhecimento de que sua significância última é determinada pela sua contribuição à verdade artística. A confusão nunca é uma virtude, mas sua presença pode ser evidencia de um rompimento com a inércia intelectual e a rotina, e no caso dos surrealistas, ela era sintomática de um tremendo fermento criativo. Emergiu no surrealismo uma perspectiva que afetou o curso da arte ocidental e, até, em certos aspectos, apontava o modo como a cultura poderia ser em uma sociedade genuinamente humana, sem classes. É este o elemento revolucionário que precisa ser recuperado e assimilado.

A vida artística na França

Para compreender o surrealismo, é importante colocá-lo em seu contexto artístico, assim como em seu contexto histórico. Mark Polizzotti fornece uma lista de dúzias de movimentos artísticos na França (simbolismo, naturalismo, parnasianismo, cientificismo, etc.) que precederam o surrealismo nas últimas décadas do século XIV e nas primeiras décadas do século XX. [17]

Seria equivocado ver nessa proliferação de “ismos” artísticos um sinal da vitalidade da cultura burguesa: ao contrário, muitos desses movimentos eram febris e abortivos, logo desaparecendo na obscuridade. Mas olhando para eles de novo agora, o que parece ser mais fulminante sobre esse período é ver como as pessoas tratavam seriamente a arte.

É claro que o egoísmo e o subjetivismo representaram um grande papel em tudo isso, mas é notável quão avidamente o pessoal procurava se tornar impessoal (ou, talvez, mais precisamente, superpessoal), como se a força abrupta da visão artística de um indivíduo não pudesse ser contida em um homem só. Isto é o que parece estar tão distante da sensibilidade cultural prevalecente no fim do século XX. A suposição comum do nosso período é a impotência da arte e do artista: já que a arte não pode realmente mudar nada, já que a mudança—em qualquer sentido fundamental—parece impossível, qual sentido existiria no agrupamento de artistas? No lugar de movimentos baseados em idéias artísticas e objetivos comuns, abundam pequenos grupos fechados e exclusivos de supostos “artistas”.

Outro modo possível de definir o surrealismo, então, seria descrevendo-o como a mais alta e mais extrema expressão da crença no poder da arte. Mas, no limite, a arte não pode mais ser o que muitos de nós pensávamos que ela fosse, isto é, a produção de artefatos, de belas imagens em palavras, pintura, filme, etc. Os surrealistas eram hostis à arte convencional e às profissões que intencionavam fazê-la. Como Polizzotti explica, “era a pura vaidade do empreendimento literário que os revoltava, a inutilidade de escrever mais um romance, de publicar mais uma coleção de poemas, e, no final, não ter feito nada além de aumentar a fama de alguém”. Se o ato de escrever deveria significar alguma coisa, devia ser mais do que só literatura; a criação deveria gerar mais do que a mera arte.” [18]

De fato, em algumas das primeiras edições do seu jornal, os surrealistas astutamente expuseram essa vaidade propondo um questionário simples mas eficaz para os membros da cena literária de Paris: “Por que você escreve?” A maioria das respostas demonstraram—algumas vezes de maneira hilária—não só que os autores não tinham razão que justificasse as suas atividades artísticas, mas que a própria questão nunca tinha ocorrido antes para eles. Inútil dizer, esta questão permanece tão relevante em atualmente como era em 1919.

Nesta ação, mais do que a impertinência e os maus-costumes de um expoente grupo de artistas em relação aos mais velhos, estava em pauta, acima de tudo, a razão principal para se fazer arte. “A beleza será CONVULSIVA”, declara Breton no fim de seu extraordinário romance Nadja, “ou não será nada”. [19] Esta era uma declaração de guerra à noção estética que via a beleza como contemplativa e um refúgio da vida, um oásis de perfeição em um mundo áspero e feio. A poesia era muito menos uma questão de palavras em uma página do que um modo de vida, um parâmetro ético antes de um estético, algo que permitia a experiência da convulsão da beleza, mesmo até o ponto do delírio. [20]

Dizer que a beleza estava na vida não significava fechar os olhos diante da miséria e da desgraça da vida da maior parte das pessoas; pelo contrário, era porque odiavam essa desgraça que os surrealistas eventualmente se voltaram ao marxismo. Mas a vida era mais do que a simples soma de suas manifestações externas, e tendências artísticas como o realismo e o naturalismo não estavam, na visão de Breton, sendo realistas o suficiente pois ignoravam amplamente as outras dimensões da vida—o reinado interior dos sonhos e da imaginação. Esta era a realidade a partir da qual poderia surgir uma nova concepção de beleza e da relação entre arte e vida.

Notas :
1. André Breton, Free Rein (La Clé des Champs), trad. Michel Parmentier and Jacqueline d’Amboise (Lincoln: University of Nebraska Press, 1995), pp. 29-31, 34.
2. Franklin Rosemont, ed., What is Surrealism?: Selected Writings, (New York: Pathfinder, 1978), p. 264.
3. Mark Polizzotti, Revolution of the Mind: The Life of André Breton (New York: Farrar, Straus & Giroux, 1995), p. 472.
4. Breton, Free Rein, p. 266.
5. André Breton, Manifestoes of Surrealism, trad. Richard Seaver and Helen R. Lane (Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1972), p. 241.
6. Rosemont, ed., What is Surrealism?, pp. 318-19.
7. Maurice Nadeau, The History of Surrealism, trad. Richard Howard (New York: Macmillan Co., 1965), p. 43.
8. Ibid., p. 48.
9. Rosemont, ed., What is Surrealism?, p. 33
10. Breton, Manifestoes of Surrealism, pp. 26, 14.
11. Nadeau, The History of Surrealism, p. 105.
12. Breton, Manifestoes of Surrealism, p. 12.
13. Rosemont, ed., What is Surrealism?,pp. 116-17.
14. Breton, Free Rein, p. 9. Back
15. Polizzotti, Revolution of the Mind, p. 458.
16. Breton, Free Rein, p. 109.
17. Polizzotti, Revolution of the Mind, pp. 17-18.
18. Ibid., p. 95.
19. André Breton, Nadja, trad. Richard Howard (New York: Grove Weidenfeld, 1960), p. 160.
20. Nadeau, The History of Surrealism, p. 274.