Traduzimos aqui ao português matéria publicada
originalmente em inglês no dia em 29 de dezembro, 1998.
A matéria continua sendo de grande interesse, pois, trata
a respeito de exposição sobre as falsificações
históricas e artísticas da era stalinista, fatos
que muitos socialistas das novas gerações ainda
desconhecem.
"O comissário desaparece": a falsificação
de fotografias e da arte na Rússia estalinista, uma exposição
baseada em documentos da coleção de David King
Berlim, Haus am Waldsee, Argentinische Allee 30.
Dando prosseguimento a montagens bem sucedidas em Viena e Milão,
a extraordinária exposição de David King
sobre as falsificações fotográficas de Stalin
está em cartaz na Haus am Waldsee, em Berlim, até
7 de fevereiro. A exposição "O comissário
desaparece" conta com boa parte do material original no qual
King baseou seu livro homônimo (Metropolitan Books, Henry
Holt and Company, Nova York, 1997). Na introdução
ao seu livro, o autor escreve: "Nos tempos de Stalin havia
tanta manipulação de material pictórico que
é possível reconstruir a história da União
Soviética na base de fotografias retocadas."
A política da Revolução de Outubro e dos
primeiros anos do estado soviético foi nitidamente oposta
às políticas da burocracia de Stalin. Na medida
em que essa burocracia chegou ao poder como uma casta parasitária
baseada nas relações de propriedade estabelecidas
por Outubro, era necessário para Stalin liquidar seus oponentes
dentro do partido bolchevique. A exposição de King
revela e registra acima de tudo a crueldade e a brutalidade com
as quais a burocracia emergente assegurou seu poder. Não
bastava que as vítimas de Stalin fossem fisicamente eliminadas
da face da terra; era preciso também apagá-las da
história e da memória completamente.
Uma das primeiras coisas que se vê ao entrar na exposição
é uma série de quatro retratos. A primeira foto
mostra Stalin no meio de um grupo de três lideranças
do Partido Comunista (Antipov, Kirov e Schwernik) em 1926. Para
a história pictórica da URSS impressa em 1940, Antipov
não devia mais ser visto. Nove anos depois, numa biografia
pictórica de Stalin, Schwernik também desaparece.
A última na série das quatro é uma pintura
de Stalin baseada na foto original, mas agora Stalin está
sozinho.
A crueza com a qual vários "retoques" foram
feitos dá a impressão de que os responsáveis
procuravam intimidar e horrorizar o observador durante os anos
do terror. Em algumas das imagens rostos foram simplesmente cortados
fora ou colados por cima de outros. Em outras fotos, grandes grupos
de pessoas foram cortados para mostrar uma ou duas pessoas que
estavam atrás (veja a seguir entrevista com David King,
que fala sobre a foto de Lenin/Gorky). Nas fotos e retratos, as
espinhas de Stalin sumiam; ao invés disso o ditador era
mostrado em cores pastéis quentes, junto aos seus escudeiros
da polícia secreta, rodeados por crianças e balões
multicoloridos.
Naturalmente, na nova ordem de Stalin não havia lugar
para Trotski, o inimigo número um da burocracia, que junto
com Lênin desempenhou o papel principal na Revolução
de Outubro. Isto se aplica não só às fotos
e imagens que apresentavam Trotski na vida pública. Até
fotos casuais passaram pela tesoura da polícia de Stalin.
A exposição inclui uma foto de Trotski e sua esposa
no banco de trás de um carro durante a convalescença
de Lênin na Geórgia, no inverno de 1924. Numa reprodução
da foto, de 1936, Trotski e sua mulher foram substituídos
por uma figura sobreposta grosseiramente.
Fotos autênticas da época da revolução
e dos líderes bolcheviques eram extremamente difíceis
de encontrar depois que o terror de Stalin começara. Isto
acontecia não só por causa do enorme aparato voltado
para a falsificação, sob as ordens de Stalin. A
ameaça de represália fazia muitos colecionadores
e artistas se autocensurarem. Como King escreve na introdução
de seu livro, nos anos 30 aqueles que se encontravam em posse
de uma imagem ou reprodução de Trotski poderiam
esperar detenção imediata, prisão e provável
execução.
Um dos que preferiram manter seus materiais "suspeitos"
escondidos foi o célebre artista soviético Aleksandr
Rodchenko. No final dos anos 80, King encontrou um tesouro de
materiais no sótão do pintor há muito falecido.
Entre os materiais que ele encontrou estava a foto do livro "Dez
anos no Uzbequistão". No livro, as faces dos funcionários
locais do partido executados por Stalin em 1937 foram simplesmente
pintadas de preto. O resultado é uma espécie de
tributo repulsivo e não-intencional às vitimas mortas.
Finalmente, numa sala da Haus am Waldsee, King abandona os
retoques. Ele preenche as quatro paredes da sala com fotos para
registro policial de um pequeno número das centenas de
milhares de vítimas anônimas e inocentes do terror
stalinista. Qualquer pessoa que esteja verdadeiramente interessada
em compreender o stalinismo e suas repercussões para o
século 20 deve ver essa exposição.
Nota
O trabalho de King indica que a falsificação
deliberada da história soviética não acabou
com Stalin. Depois da morte do ditador em 1953, e do discurso
secreto de Kruschev em 1956 descrevendo os crimes de Stalin, os
falsificadores no Kremlin receberam novas ordens: a remoção
seletiva de Stalin de um grande número de fotos e publicações
- mostrando que, nesse caso, quem com ferro feriu com ferro também
foi ferido.
Livro de David King em inglês: The commissar vanishes:
the falsification of photographs and art in Stalin's Russia.
Metropolitan Books, Henry Holt and Company, Nova York, 1997.
Em Alemão: Stalin's Retuschen, Foto- und Kunstmanipulation
in der Sowjetunion. Hamburger Edition, 1997.
Entrevista com David King na abertura de sua exposição
"O comissário desaparece: a falsificação
de fotografias e da arte na Rússia stalinista"
"Stalin e seu regime destruíram a revolução"
por Stefan Steinberg
29 de dezembro de 1998
Primeiramente, perguntei a David King sobre os fundamentos
da exposição.
É preciso compreender que não há muito
dinheiro por aí para montar uma exposição
como essa. Ela levou algum tempo para sair do papel. Esta é
a terceira mostra. A primeira foi em Viena, a segunda em Milão.
E a coisa parece estar ganhando força. A exposição
aqui em Berlim está bem montada e no geral estou bastante
satisfeito com ela.
O que é legal nessa exposição é
que ela é uma chance de ver materiais originais assim como
reproduções de impressos. Por exemplo, tudo o que
está nos armários de vidro é original e você
tem a chance de ver de onde o material veio, e os jornais, revistas
e documentos. A exposição se espalha por toda a
casa, em todos os 10 cômodos, e até agora gerou bastante
interesse da mídia.
Que tipo de reações a exposição
provocou?
Bem, quase não houve nenhuma reação hostil.
Ninguém pode argumentar contra o material que eu coletei.
Baseado no que é exposto aqui, ninguém pode defender
Stalin ou o estalinismo. Mas apesar disso houve um caso engraçado
em Milão. Quatro visitantes da exposição
se aproximaram de mim e me elogiaram por ter feito os retoques
[risos]. Eles pensaram que fosse um tipo de intervenção
artística eu achei isso muito engraçado.
Mas o interessante é que algumas vezes você tem uma
reação semelhante também em Moscou, porque
algumas imagens estão tão impressas na mente das
pessoas, por exemplo a imagem de Lênin e Gorki juntos.
Há uma imagem muito estranha, muito longa e estreita, que
traz Lênin e Gorki juntos, uma imagem que todo mundo já
viu e conhece mas nenhum negativo tem essa forma. Na verdade,
a imagem foi recortada e retocada de uma foto tirada de um grupo
de delegados do Segundo Congresso Mundial da Internacional Comunista.
Quando as pessoas vêem a ampliação original
inteira, que tem 25 pessoas, aí em Moscou sou recebido
com expressões interrogatórias, as pessoas se perguntando
"será que é isso mesmo?"
Como e quando você começou seu trabalho?
Eu comecei a coletar material em 1970. Fui para a Rússia
e procurei material sobre Trotski e não havia nada. Me
perguntaram por que eu estava interessado em Trotski. Stalin é
que foi importante para a revolução, não
Trotski, eles me disseram. Quando eu voltei para Londres eu estava
determinado a fazer uma história visual tanto quanto
possível, uma história visual, verdadeira, do que
aconteceu na União Soviética. Eu tenho coletado
material desde então e obviamente numa perspectiva socialista,
ou seja, não como Richard Pipes e Robert Conquest [historiadores
da guerra fria, anticomunistas]. E outra coisa naquele
tempo, no fim dos anos 60, uma grande quantidade de coisas estavam
sendo escritas sobre política, incluindo as idéias
de Trotski, mas as pessoas não estavam realmente lendo
tudo aquilo. No entanto, quando meu parceiro de trabalho Francis
[Wyndham] e eu fizemos a primeira biografia pictórica de
Trotsky em 1972, 25.000 cópias foram vendidas. Você
via pessoas lendo o livro no metrô, foi uma coisa grande
na época, com uma edição capa-mole da Penguin,
uma das maiores editoras britânicas. Nos pensávamos
em comunicar algumas das idéias de Trotski e assim encorajar
as pessoas a lerem mais sobre ele e dele.
Eu perguntei a King sua opinião sobre a relevância
do seu trabalho frente à campanha atual, que acompanha
a publicação do "Livro negro do comunismo"
[Blackbook of Communism, vários autores], que iguala Lênin
e as conquistas da revolução Russa com Stalin e
o stalinismo.
Bom, naturalmente eu discordo de uma tese dessas. É
muito difícil fazer as coisas que eu estou fazendo em uma
época como a nossa, mas é claro que não há
continuidade política entre Lênin e Stalin. Stalin
e seu regime destruíram a revolução, ele
destruiu as esperanças do comunismo. Você só
precisa dar uma olhada nas imagens da sala 3 da exposição.
Lá estão fotos da polícia secreta NKVD de
pessoas comuns, cidadãos completamente inocentes que foram
levados pelos capangas de Stalin homens, mulheres e crianças,
arrancados de suas casas e assassinados. Eles não chegaram
nem a ir para o gulag.
Existem planos para montagens futuras, ou talvez para levar
a exposição a Moscou?
No momento não. Só sei que com certeza haveria
muitas dificuldades para levá-la a Moscou. Você sabia
que eles querem restaurar o monumento de Felix Dzerzhinsky, que
é o símbolo do poder do aparato da KGB? Ele costumava
ficar bem de frente para a prisão Lubyanka em Moscou. A
maioria dos deputados do partido comunista de Zyuganov votou pela
restauração da estátua. É realmente
assustador porque no caos da União Soviética, esses
caras [a KGB] têm ficado quietos, escondidos, mas continuam
lá. Agora eles dizem, "nossas mãos estão
limpas, dêem-nos a chance de controlar as coisas."
Isso talvez demonstre que minha exposição não
é somente um árido exercício histórico.
Ela levanta e tenta esclarecer questões que são
muito imporantes também para os dias de hoje.