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Max Ernst: além da pintura

Por Stuart Nolan
9 de maio de 2007

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Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês, no dia 1 de outubro de 1998

Abertura da exposição Max Ernst, no Centro Georges Pompidou em Paris, e lançamento do livro Max Ernst: Beyond Painting (Max Ernst: além da pintura), compilação de escritos do artista (Wittenborn, Schultz, 1948).

A recente exposição das obras de Max Ernst no Centro Pompidou em Paris nos fornece uma valiosa compreensão da vida e da obra do artista.

Ernst (1891 - 1976) perdura como uma forte e influente figura das artes visuais do século XX. A exposição possibilita examinar alguns temas de sua obra. O que caracteriza a arte de Ernst, acima de tudo, são as mudanças abruptas de direção e uma atitude de rigorosa autocrítica. Com a constante transformação de suas imagens e técnicas ele expressa o desejo de recompor os tumultuosos eventos que presenciou durante a primeira metade do século XX.

As primeiras obras de Ernst, na mostra, são as suas pinturas-colagens, das quais a “Two Children are threatened by a Nightingale” (Duas Crianças Ameaçadas por um Rouxinol), aparenta ser a mais complexa. Estas são seguidas por uma sala dedicada à sua série de pinturas murais, recuperadas da casa do poeta surrealista Paul Eluard, no distrito de Eaubonne, em Paris. Foram produzidas em 1923, dentro do trabalho poético conjunto realizado pelos dois artistas - “Les Malheurs des Immortals” (O Mal dos Imortais). As pinturas entitulam-se “The Birds Cannot Disappear” (Os Pássaros Não Podem Desaparecer), “At the First Clear Word” (Na primeira Palavra Clara) e “Friendly Advice” (Conselho de Amigo).

A exposição também inclui muitas das suas obras com técnicas como frottage e grottage, iniciadas em 1925. Frottage consiste em colocar papel sobre uma superfície e esfrega-lo com grafite preto; na grottage ele aplica camadas de tinta, a mais escura por último, e as raspa para revelar a tinta mais clara. Ele aplicava incontáveis camadas de cores escuras, e então, para criar cores excepcionais em seus quadros, as raspava revelando o branco brilhante da tela. Rembrandt costumava usar técnica semelhante.

Ernst desenvolveu estas técnicas em suas visionárias obras “Forests” (Florestas), “Cities” (Cidades), “Entire Cities” (Cidades Inteiras) e no seu “Monument to the Birds” (Monumento aos Pássaros). Ele procurou expressar, com sua arte, seus mais intensos sentimentos a respeito dos eventos do mundo. Capturou as dimensões psicológicas do período em imagens tão intensas e inesquecíveis quanto seqüências oníricas perturbadoras. Mesmo assim, sua obra estava longe da pintura de sonhos. Sobre a pintura “Fireside Angel”, escreveu: “Pintei ‘Fireside Angel’ após a derrota dos Republicanos na Espanha. Claramente, esta obra tem um título irônico, já que retrata um monstro terrível que bota abaixo e destrói tudo o que vê em seu caminho. Foi esta a impressão que tive, à época, sobre o que iria acontecer no mundo, e eu estava certo”.

A série de pinturas visionárias conhecidas como “Europe after the Rain” (A Europa Após a Chuva), foi produzida entre 1933 e 1942. Nelas, Ernst buscou tornar visíveis seus pensamentos. Usou de forma original a técnica da declomania, desenvolvida por seu amigo e pintor surrealista Dominguez. Ela consiste em colocar papel ou vidro em uma superfície pintada para retirá-los em seguida. Alguns surrealistas deixavam o resultado gerado intocado. Ernst desenvolve a técnica revelando formas mutantes escondidas de animais, seres humanos, selvas, cidades e florestas.

O primeiro quadro da série “Europe after the rain” consiste na vista da terra e do mar por um piloto nas alturas da estratosfera. A paisagem é coberta pela junção de nuvens carregadas - uma encarnação visual da eminente guerra após a tomada do poder por Hitler, na Alemanha.

Ernst foi soldado na I Guerra Mundial e apoiou a Revolução Russa. Se opôs à ascensão do fascismo e protestou contra os Processos de Moscou de Stalin. Na França, foi perseguido pela Gestapo, após ter sido admitido por sua nacionalidade alemã. Todas essas experiências estão traduzidas em pinturas, que refletem a concepção do artista da gravidade do golpe à civilização dado pelo estalinismo e pelo fascismo.

O último quadro da série data de 1942, e é certamente a obra que melhor expõe os devastadores ataques à humanidade. É a visão de Ernst da proximidade da destruição da civilização. De dentro da terrível paisagem, formas vivas começam a surgir das pedras e da vegetação e observam à sua volta, estarrecidas e incapazes de compreender a nova situação. Essas paisagens dos anos 30 e 40 representam seus sentimentos a respeito do progresso da humanidade. Ernst produziu outras pinturas usando a mesma técnica, obras também magníficas e perturbadoras, como “The Robing of the Bride” (O Vestido da Noiva), “Napoleon in the Wilderness” (Napoleão na Selva), “The Antipope” (O Antipapa), and “The Stolen Mirror” (O Espelho Roubado).

Ernst, Breton e a criatividade

Ainda que mais conhecido como pintor, Ernst também esculpia e escrevia poesia. No seu diário autobiográfico “Tissue of truth, Tissue of lies” (Emaranhado de Verdades, Emaranhado de mentiras), escrito em terceira pessoa, examina meticulosamente sua própria criatividade. Ele retrabalhou seus diários antes de morrer, buscando compreender conscientemente a sua inspiração. Certa vez descreveu suas obras como uma tentativa de conquistar o último grande mito da civilização, o mito envolvendo o processo criativo.

Ele compartilhou essa busca com André Breton, líder ideológico do surrealismo. Breton convocou os artistas a depositarem todos os seus esforços no estudo do que ele considerava ser o mais complexo de todos os mecanismos, a inspiração artística. Breton dizia que “a partir do momento em que se deixa de considerar esta [a inspiração] como uma coisa sagrada, não pensem, pela muita confiança que têm na sua extraordinária virtude, senão em desatar-lhe os seus últimos laços, ou mesmo - o que ainda não ousou conceber-se - em dominá-la” (O Segundo Manifesto Surrealista, Breton, 1929).

Em suas obras, Ernst tenta compreender os mistérios do seu próprio processo criativo. Estes ainda eram problemas objetivos que Ernst e Breton não conseguiam resolver. Primeiro, a análise do inconsciente por Freud apenas “abriu os olhos”, como disse Trotsky, para este universo relativamente desconhecido. O estudo da mente está na fase da exploração. A tendência dos surrealistas de adotar as conclusões de Freud acriticamente contribuiu na distorção de seus próprios trabalhos.

A influência de Ernst sobre Breton e a descoberta da sua técnica de colagem

A colaboração com André Breton fora certa vez descrita pelo colega e pintor surrealista, Roberto Matta, como uma “Odisséia” através do processo criativo e uma “Ilíada” pela mente. Apesar das tensões documentadas entre os dois artistas, sua relação foi uma das mais intrigantes do século. No exame de certos aspectos dessa relação vários temas podem ser levantados. Nesse sentido, há um valioso livro que contém os escritos de Ernst: Max Ernst: Beyond Painting (Max Ernst: Além da pintura), publicado em 1948.

No artigo “The Placing Under Whisky Marine”, escrito para a sua primeira exposição em Paris, Ernst explica a origem da forma peculiar de colagem que desenvolveu após a I Guerra Mundial. Essa antiga técnica foi reinventada pelos cubistas sob novos impulsos sociais, mas seu uso era restrito. Ernst começa explicando como sua abordagem da colagem se diferiu da dos artistas do movimento dadá, que surgiu durante a I Guerra Mundial, no qual assumiu um papel de liderança quando estava em Colônia. Mais do que simplesmente justapor imagens para colocá-las em choque, ele buscou juntar imagens díspares para criar uma nova manifestação poética.

Ernst certa vez definiu o fenômeno dadá: “Nós jovens voltávamos da guerra perdidos e nossa aversão por ela precisava encontrar um escape. Quase naturalmente, a aversão tomou a forma de um ataque às bases da civilização que criou essa guerra - ataque através da linguagem, sintaxe, lógica, literatura, pintura e muito mais” (Max Ernst: A Retrospective. - Max Ernst: Uma Retrospectiva).

Um confuso conflito artístico no dadá alemão, entre o grupo de Berlin e o de Colônia, levou a um novo rompimento de relações. Ainda que tivessem uma base política marxista em comum, Ernst expressou seu desacordo com o uso diretamente político da colagem que faziam os dadaístas de Berlin. Ele estava mais interessado em sua larga implicação para a expressão artística.

Ele explica o processo de descoberta da técnica de colagem: “Num dia chuvoso de 1919, me encontrando numa vila no Reno, fui surpreendido uma obsessão que prendia meu olhar às páginas de um catálogo ilustrado de objetos para demonstrações antropológicas, microscópicas, mineralógicas e paleontológicas”.

“Essas visões se chamavam novos planos, por causa de um encontro com um novo desconhecido (o plano da não-concordância). Na época, era suficiente embelezar as páginas do catálogo, acrescentando pinturas ou desenhos, e, com isso, reproduzir apenas o que via em mim mesmo, uma cor, uma marca de lápis, uma paisagem exterior ao objeto representado, o deserto, a tempestade, um corte transversal geológico, um chão, uma única linha reta significando o horizonte... assim obtive uma imagem fixa fiel às minhas alucinações e transformei em dramas reveladores os meus mais secretos desejos - tudo isso a partir do que antes eram apenas umas banais páginas de anúncios”. (Max Ernst: Beyond Painting. Wittenborn, Schultz, 1948).

As obras produzidas nesse período foram diferentes dos seus outros experimentos com colagem. Ele tirava fotos de catálogos da virada do século com gravuras de imagens mundanas e tradicionais. Recortava, então, com tesouras, essas cenas e objetos de forma a não serem reconhecidas como parte do seu ambiente inicial. Esses elementos diferentes eram então rearranjados em uma nova ordem tão “real” quanto a inicial. O resultado perturbava boa parte das concepções já pré-ordenadas de realidade. De início lança nossa compreensão numa confusão, mas em seguida gera uma atração peculiar.

Por essa época, Breton começava a ficar cada vez mais desiludido com a anarquia pessimista e indeterminada do dadá. Essas primeiras colagens de Ernst tiveram um grande impacto sobre suas concepções artísticas. Em maio de 1921 ele organizou uma exposição com as primeiras colagens de Ernst. Breton entrou em contato com o dadá de Colônia porque algo em sua obra lhe havia chamado atenção. Ele comenta o impacto que as colagens de Ernst geraram em Paris:

“Lembro-me muito bem da ocasião em que Tzara, Aragon, Soupault e eu descobrimos as colagens de Max Ernst. Estávamos todos na casa do Picabia quando elas chegaram de Colônia. Elas nos influenciaram de uma forma que nunca mais experimentamos novamente. O objeto externo estava deslocado da sua ambientação usual. Ele separava partes que eram liberadas de seu relacionamento enquanto objeto, assim entravam em combinações totalmente novas com outros elementos”.

“Mas a capacidade maravilhosa de alcançar duas realidades distantes, sem se afastar do campo da experiência, e de conseguir que, ao se unirem as duas realidades, elas gerem uma faísca; de colocar ao alcance de nossa compreensão figuras abstratas que carregam a mesma intensidade e o mesmo alívio que as outras; de nos retirar as referências, nos deslocando em nossa própria memória - isso é o que, provisoriamente, nos atraiu” (Preface to the Max Ernst Exhibition - Prefácio à exposição de Max Ernst, maio de 1920).

Esta foi a primeira exposição de Ernst em Paris, e o artista foi impossibilitado de comparecer por ter tido o visto negado pelas tropas britânicas, que ocupavam a Alemanha por conta do Tratado de Versalhes. Ernst estava envolvido na produção da revista “The Ventilator” (O Ventilador), com seu amigo comunista Johannes Baargeld e com o artista Hans Arp. Nessa altura a revista tinha uma circulação de 20 mil exemplares entre intelectuais e operários de Colônia. Foi fechada pelas tropas britânicas. No meio de tantos outros eventos importantes, a exposição em Paris ajudou os artistas a reagirem contra as limitações do dadá.

Muitos artistas passaram por experiências terríveis durante a I Guerra Mundial. Ernst serviu como canhoneiro na Alemanha entre 1914-17. Certa vez escreveu sobre essas suas experiências dizendo que havia morrido em 1914 e renascido em 1918. Breton tentou mostrar o potencial “regenerativo” das colagens de Ernst. Seu trabalho seria, então, um ingrediente vital na transição do anarquismo negativo do dadá para a análise progressista da natureza do homem pelos surrealistas.

“Duas Crianças Ameaçadas por um Rouxinol”, 1924

No período entre 1921 e 1924, Ernst desenvolveu sua técnica de colagem na direção da pintura de colagem. Neste contexto é importante considerar uma das mais desafiantes obras da exibição de Pompidou, “Duas Crianças Ameaçadas por um Rouxinol” - valiosa pois, em suas obras mais pessoais, são mais visíveis os sinais de seu complexo processo criativo. Pintado em 1924, foi a realização de um período da obra de Ernst. Ele pensava nesta técnica como a grande contribuição que deu ao surrealismo. Seu objetivo era transformar a pintura em algo mais do que uma experiência visual. Ele queria revelar as tensões físicas, os dramas psicológicos, os distúrbios de percepção, as memórias da complexa jornada da infância à maturidade e a forma com que a vida delimita e transforma esses processos.

Os diários de Ernst apresentam algumas das imagens que aparecem na pintura. Escrito na terceira pessoa, ele explica a primeira aparição do rouxinol que desce até a pintura: “Primeiro contato com a alucinação. Sarampo. Medo da morte e dos poderes aniquiladores. Visão-febril provocada pela imitação de mogno da estrutura da cama, as ranhuras da madeira tomando sucessivamente o aspecto de um olho, um nariz, a cabeça de um pássaro, um perigoso rouxinol, um peão, e por aí vai. Certamente o pequeno Max sentia prazer em ter medo dessas visões e, dessa forma, passou voluntariamente a provocar alucinações desse tipo olhando obstinadamente para painéis de madeira, nuvens, papéis de parede, paredes sem gesso, e muitas outras coisas”.

Este comentário nos leva a fundo na mente do artista. O rouxinol foi a forma como a morte se manifestou pela primeira vez em sua vida. Na obra o rouxinol vem até a cena. Ele aparenta ser pequeno e insignificante, mas, ao mesmo tempo, parece levar a crise às figuras da obra. Uma criança está ao chão sem movimentos; uma mulher perturbada parece correr da criança com uma faca sem sangue na mão. Ela olha desesperada para o rouxinol que se aproxima. Uma figura de terno e gravata, um homem, carrega uma pequena criança. Perturbadoramente ele não possui traços faciais. Está escapando da cena no topo de uma pequena casa. A criança não oferece resistência. Seria resgate ou seqüestro? Ele se estende para alcançar um puxador preso à moldura do quadro. É uma simples maçaneta de porta. Isto poderia levá-lo para fora da pintura, mas não está nem na pintura nem no quadro. Está fixado em ambos. Não poderia abrir logicamente para nenhum dos dois lados. Transformar-se-ia, então, de uma maçaneta de porta em um indefinível desejo?

Ernst recorda em seu diário seus seis anos de idade, quando da experiência da morte de sua irmã mais nova. Novamente em terceira pessoa, ele relata “(1897) Primeiro contato com o nada: quando sua irmã Maria o beijou, disse tchau e morreu poucas horas depois. Após esse evento, os sentimentos do nada e dos poderes aniquiladores passaram a predominar em sua mente, em seu comportamento e - depois - em sua obra.” A memória deste inconsolável e confuso “nada” é um dos elementos que constituem o oxigênio da sua pintura. Ernst fala desta obra como sendo o último resultado lógico da colagem “por enquanto”.

Escrita automática e pintura automática

Em 1925, Ernst, André Masson e outros começam a busca pelo equivalente visual de “escrita automática”, após vários comentários por parte dos poetas surrealistas de que uma pintura surrealista não deveria nem poderia existir. Em abril de 1925, Pierre Naville, um dos editores de A revolução Surrealista e, depois, influente figura no movimento trotskista francês, escreveu, “Todos sabem que não existe pintura surrealista. Nem os traços feitos ao acaso com o pincel, nem as figuras reproduzindo imagens de sonhos, nem idéias imaginativas, podem, é claro, ser descritas.” Esses comentários visavam o que era pensado como uma tentativa de transpor literal e automaticamente a técnica da escrita automática para a pintura.

Discordando da visão de Naville, Ernst escreveu, “graças ao estudo entusiástico do mecanismo da inspiração, os surrealistas tiveram êxito na descoberta de certos processos poéticos essenciais, por meio dos quais a elaboração do trabalho plástico pode ser liberta da influência das tão chamadas faculdades conscientes. Chegando ao encantamento tanto do gosto como da razão e da vontade, esse processo resulta na aplicação rigorosa da definição surrealista para o desenho, a pintura, e, até certo ponto, para a fotografia”.

Continua ele, “trabalhando mais e mais para conter minha ativa interferência no desenvolvimento do quadro, e, dessa forma, ampliando a interferência das faculdades alucinantes da mente, eu passo a existir como espectador no nascimento de todas as minhas obras”.

Ernst aprofundou o estudo da técnica e a sua importância no processo criativo numa tentativa de desmascarar o mito do gênio criativo, da mesma forma como os surrealistas atacavam os mitos políticos e religiosos. Mas, enquanto tentava explicar a gênese da sua criatividade e a relação entre a técnica e o processo do pensamento, Ernst edificou um novo mito, aquele do artista como um “espectador” impassível, “excluindo todas as orientações conscientes da mente, reduzindo ao extremo a parte ativa daquele que até agora chamamos de ‘autor’ da obra, este método é revelador por ser o real equivalente daquilo que já é conhecido pelo termo ‘escrita automática’. É como um espectador que o autor auxilia, indiferente ou apaixonado, o nascimento de suas obras e observa o desenvolvimento de suas fases”.

No Segundo Manifesto Surrealista, de 1929, Breton descreveu o processo criativo como o “mecanismo mais complexo de todos”. Nesse processo, o artista não seria nem um espectador, nem um mágico, nem um espiritualista. O desdém pelas “tão faladas faculdades mentais” e a introdução de algumas noções místicas como “encanto pelo gosto da razão e da vontade” não têm nada em comum com a obra de Freud, nas quais os surrealistas buscaram inspiração e justificação. Trotsky foi muito mais crítico das hipóteses freudianas do que os surrealistas, mas dava ênfase no que havia de positivo em sua obra, o que estava enraizado numa abordagem materialista de compreensão da mente. O objetivo de Freud não era o de glorificar o “inconsciente”, mas o de aplicar e estender de forma rigorosa a consciência sobre uma região que estava, até então, associada aos deuses, demônios, diabos, e, assim, trazê-las para o controle da razão.

O Surrealismo e a Renascença

Apesar da tendência de Ernst a ver as imagens que produziu como produções intactas do processo consciente individual, a sua obra claramente contém as marcas de eventos externos de magnitude histórica - mediadas pela consciente aplicação da técnica. Um exame mais detalhado sobre a redescoberta da técnica da frottage por Ernst e seu impacto sobre o futuro desenvolvimento do surrealismo nos mostra isso.

Os pensamentos e os interesses dos artistas renascentistas do século XVI permeiam todo o livro Max Ernst: Beyond Painting. Uma particular influência é Leonardo Da Vinci e seu Trattato della pittura. Isso é surpreendente, pois o ponto de vista público dos surrealistas é o da negação da tradição racionalista.

Em suas anotações de 10 de agosto de 1925, Ernst descreve um conflito artístico entre Da Vinci e o pintor Sandro Botticelli acerca da relação entre inspiração e técnica artística. Ernst comenta que Botticelli manteve uma atitude de repulsa diante da pintura de paisagens, chamando este tipo de pintura de “espécie de investigação baixa e medíocre”. Para ilustrar isso, Botticelli jogou “esponjas encharcadas de cores diferentes contra a parede”, questionando se o resultado disso poderia ser visto por alguém como uma bela paisagem.

Da Vinci respondeu com uma explicação sobre a inter-relação entre inspiração e técnica: “Botticelli está certo, algumas pessoas podem encontrar em borrões as coisas mais bizarras. Eu quis dizer que aquele que estiver disposto a olhar detalhadamente para o borrão discernirá cabeças de homens, vários animais, uma batalha, algumas pedras, o mar, nuvens, bosques, e várias outras coisas - é como o tilintar do sino, que faz com que se ouça o que se imagina”.

E continua Da Vinci, “mas ainda que esta mancha sirva para sugerir algumas idéias, ela não nos ensina como terminar a pintura. E, assim, o pintor acima mencionado fica com paisagens horríveis. Para ser universal e agradar a todos, é necessário que na mesma composição sejam encontradas passagens muitos escuras e outras de uma penumbra delicadamente iluminada. Não é de se desprezar, na minha opinião, se, ao olhar atentamente as manchas na parede, alguém se lembre do aspecto do carvão na fornalha, das nuvens, do córrego fluindo; e se você os olhar com atenção encontrará invenções admiráveis”.

“Dessas o gênio do pintor pode tirar grande vantagem, para compor batalhas de animais, de homens, paisagens ou monstros, demônios e outras coisas fantásticas que o deixem estimado. Nessas coisas confusas o gênio deve estar atento à invenção, mas é necessário saber bem [como desenhar] todas as partes geralmente ignoradas, assim como as partes dos animais e os aspectos das paisagens, pedras e vegetação” (Tratado Sobre Pintura, Leonardo da Vinci).

Os historiadores de arte consideram que a técnica do uso “espontâneo” dos planos de fundo nas paisagens de Da Vinci, com um caráter onírico, dá forma às suas mais enigmáticas obras. Um estudo sobre a Mona Lisa foi feito sob este escopo. Com esta questão em mente, Ernst considerou a forma de resolvê-la em sua própria obra. Ele recorda uma experiência pessoal quando da redescoberta da antiga técnica da frottage em 1925. Uma forma da frottage foi usada na Grécia Antiga, onde papel de arroz era aplicado em cima das pinturas da parede e, quando esfregado sobre ele, se formava um negativo da pintura. Ernst explica como usava essa técnica:

“Começou com uma memória da infância, no curso da qual um painel de mogno falso, situado na frente da minha cama, tinha gerado todo tipo de estímulos óticos em estados de vigília, e, me encontrando em um anoitecer chuvoso no litoral, fui tomado pela obsessão que fixou meu olhar no assoalho, que possuía milhares de ranhuras profundas”.

“Decidi então investigar o simbolismo desta obsessão e, no sentido de auxiliar minhas faculdades meditativas e alucinógenas, fiz várias séries de desenhos das tábuas colocando sobre elas pedaços de papel ao acaso, que rabisquei suavemente com grafite preto. Olhando atentamente para os desenhos, eu obtive ‘passagens muitos escuras e outras de uma penumbra delicadamente iluminada’, fiquei surpreso com a repentina intensificação das minhas capacidades visuais e com a sucessão alucinante de imagens contraditórias sobrepostas, uma sobre a outra, com uma persistência e a rapidez característica das memórias amorosas” (Max Ernst: Beyond Painting, 1948).

Em 1926, Ernst publicou essas obras sob o título de “História Natural”, em Paris. As imagens pulavam do livro ao abri-lo, não por “alucinação”, mas por desejo, como um reconhecimento consciente da nova técnica. Sob os impulsos das novas condições e o desenvolvimento em todas as ciências, que sempre influenciaram Ernst, ele reexaminou longamente os problemas da cognição artística.

Ernst cita Breton sobre o amplo impacto das idéias renascentistas sobre o desenvolvimento do surrealismo.

“A lição de Leonardo, que colocava os seus alunos para copiar, em suas pinturas, aquilo que viam tomar forma nas ranhuras de uma velha parede (cada um de acordo com a posição que ocupava em relação à luz) está longe de ser compreendida. Toda a passagem da subjetividade à objetividade está implicitamente determinada aí, e o peso dessa resolução vai muito além, nos interesses humanos, da própria inspiração. O surrealismo, particularmente, tem se preocupado muito com essa parte da lição. Ele não surgiu daí, mas redescobriu o caminho e, com ele, pode se estender para muitos outros domínios além do da pintura.” (Star Shaped Castle - Castelo em Forma de Estrela, de André Breton).

Breton comenta a importância de estudar percepção e realidade como áreas que requerem um sério estudo a longo termo. Breton estava, entretanto, investigando uma das significantes linhas que conectam a infinita tapeçaria da criatividade através da história humana.

As concepções de Ernst sobre independência artística

O que possibilitou Ernst manter sua independência e liberdade de criação? Essas foram as qualidades responsáveis por reter o respeito de Breton por toda a vida. Seu importante ensaio “Inspiration to Order” (Inspiração para a Ordem) abre com uma imagem que se dirige ao elemento dominante da sua criatividade. Ele diz, “Entre, entre, não tenha medo de se cegar”.

Breton sempre teve muito respeito por aquilo que ele chamava de “profunda humanidade” de Ernst. Em dois ensaios, escritos respectivamente em 1920 e 1927, Breton procura explicar isso. Ele escreve, “[Ernst] projeta diante de nossos olhos o mais cativante filme do mundo, e retém a graça de sorrir mesmo quando ilumina nossa vida interior de forma profunda e radiante, nós não hesitamos em ver em Max Ernst um homem com essas infinitas possibilidades” (Max Ernst: Beyond Painting).

Quando Breton examinou a natureza da colagem de Ernst, ele meditou sobre a natureza da atitude artística diante da cultura do passado: “Max Ernst parece ter herdado o senso da cultura de uma forma extraordinária, cativante, paradoxal e inestimável”. No mesmo artigo Breton aponta as concepções gerais que influenciaram sua liberdade de criação. Ele comenta que aí “talvez resida, para Max Ernst, a possibilidade de viver, de viver livre, e esta é a raiz de sua profunda humanidade”. Essas palavras de Breton são fortes.

A descrição de Ernst de uma de suas pinturas frottage, “The Hundred Thousand Doves” (As Cem Mil Andorinhas), nos fornece a sensação verbal e visual dos seus sentimentos de liberdade: “Em um país da cor do peito de um pombo eu saudei o vôo de 1.000.000 andorinhas. Eu as vejo invadindo as florestas, negras de desejo, as falésias e as praias sem fim. Vejo uma folha de hera flutuando no oceano e sinto um muito brando terremoto. Eu vejo um andorinha branca e pálida, flor do deserto. Ela se nega a entender” (Max Ernst: Beyond Painting).

Ele reage com hostilidade a tudo o que compromete seu senso de independência em arte. Por conta disso é que Breton e Ernst mantiveram um respeito mútuo, que durou por toda vida. Muitas das concepções artísticas de Ernst eram fruto de sua colaboração com Breton. Ernst, sempre que podia, admitia isso em seus escritos.

Ernst explica sua visão de que as concepções surrealistas abririam muitas possibilidades para a futura criatividade humana. Em uma notável passagem escrita em 1934, após a vitória de Hitler na Alemanha, quando estava profundamente afetado pela ascensão do estalinismo e do fascismo ao mesmo tempo, definiu sua atitude diante da arte. “Cada ser humano normal (e não meramente o ‘artista’) têm uma inesgotável história de imagens enterradas em seu subconsciente, trata-se meramente de ter procedimentos para encorajá-las e liberá-las... para viajar pelo inconsciente, para trazer objetos puros e ainda não adulterados à luz”.

Isto expressa a sua confiança de que a criação artística está aberta para toda a humanidade. Esse é um ponto importantíssimo em seu desenvolvimento. Apesar de ser sob a influência do movimento surrealista que ele tenha chegado à tão claras conclusões, Ernst sempre se manteve fiel à idéias como essas, ao longo de toda a sua vida - em seus estudos sobre arte e sociedade na Universidade de Colônia, em seus estudos sobre as mais progressistas idéias acerca do inconsciente, em suas fortes experiências durante a I Guerra Mundial, em sua recusa de se ligar a escolas artísticas restritivas. Essas atitudes permeiam a sua obra e podem, de certa forma, explicar sua influência sobre outros artistas e sobre outros movimentos artísticos.

A influência de Ernst sobre a Arte Abstrata

Um exemplo da influência de Ernst sobre a arte abstrata aparece no prefácio do Max Ernst: Beyond Painting, escrito pelo artista americano Robert Motherwell. Neste texto Motherwell, um dos fundadores da escola americana de arte abstrata expressionista, examina seu próprio fascínio pelas questões postas aos artistas pela obra e vida de Max Ernst. Ele faz algumas observações interessantes sobre Ernst e a natureza da arte abstrata:

“A luta da maioria dos pintores modernos se dá em seus estúdios. Seus inventos são a significação plástica que reproduz os dramas ocorridos no eu interior. Sua investida contra a sociedade é feita través da indeterminação, através do contraste entre o real subjetivo e o convencional. De forma oposta, Max Ernst está entre os poucos pintores modernos cujos interesses estão vinculados ao mundo exterior, aos eventos e instituições sociais - a igreja, a repressão política, escravidão sexual. Sua obra é repleta de ironias e crueldades, sarcasmos e sátiras” (Max Ernst: Beyond Painting).

Motherwell comenta a influência que Ernst teve sobre os artistas americanos. Ele ficou exilado em Nova York em 1941, após ter sido cassado por toda a Europa pela Gestapo. Antes de escapar pelo sul da França, pelo porto de Marselha, ele se encontrou com André Breton. Eles resolveram as diferenças surgidas quando Ernst e seu amigo Man Ray deixaram o movimento surrealista, em 1938. Ernst havia sido internado na França e sua vinda à América era inicialmente restrita à Nova York.

Por lá Ernst fez uma exposição na Livraria Wakefield, onde um grupo de jovens artistas americanos compareceu. Ele lhes apresentou uma nova técnica, chamada de “child´s play” (brincadeira de criança). Ela consiste num tubo pendurado todo furado no fundo. A tinta vaza por ele, que pode ser colocado em movimento sobre a tela. Um dos jovens artistas era Jackson Pollock; Pollock usou a técnica em suas pinturas “gotejadas”. A fascinação de Pollock com a técnica inspirou Ernst a produzir a obra “Young Man Intrigued by the Flight of a Non-Euclidean Fly” (“Jovem Intrigado pelo Vôo da Mosca Não-euclidiana”). A obra era inicialmente chamada de “Arte Abstrata, Arte Concreta”. Esse título inusitado antecipou um conflito entre diferentes escolas artísticas que emergiria apenas após a II Guerra.

Em seu prefácio, Motherwell trata do que acredita ser a diferença essencial entre a arte abstrata e a surrealista. Ele vê Ernst como um comentarista dos eventos políticos que foram surgindo. Mas Ernst, em sua discussão a respeito da técnica da colagem, deixa claro que o uso da arte para fins políticos era oposto às suas concepções artísticas, suas idéias de liberdade e sua vida.

Motherwell avalia a dinâmica da vida e da obra de Ernst e mostra como são inseparáveis: “Em última instância, não estou preocupado com qual forma de expressão me importa mais... a minimização do papel dos objetos, da tatilidade, nivelando tudo, a plasticidade abstrata... era ignorada ou mesmo minada pela obra de Ernst. Sua vontade subjetiva era contemporânea, para ele o homem era essencialmente um ser histórico; Ernst trabalhava com imagens, objetos e parafernálias do mundo exterior; ele advertia, criticava, zombava, profetizava, revelava fantasias. Sua visão era a de que ‘nada está em ordem’ e que a ordem de fora não tem nada a ver com a verdadeira ordem humana, e também a de que nós somos vitimas da história” (prefácio de Max Ernst: Beyond Painting).

Mesmo pensando dessa forma, Ernst se recusa a refugiar na incompreensibilidade. Ele não deixa de expressar a desordem, e nem tenta resolvê-la de forma harmoniosa em sua própria obra. Isso significaria uma fuga das complexas relações entra sua arte e sua vida social, uma fuga da tensão que alimenta sua obra.

Motherwell termina seu prefácio falando do seu peculiar interesse pelo universo do Max Ernst. Ele explica o poder da “liberdade em ação” e do “uso da liberdade” de Ernst e conclui, “mesmo alguém que não o conhece, mas comprometido, como eu, com outras visões de pintura, acabam inevitavelmente sendo levadas, uma hora ou outra, a contemplar suas mensagens. Sua obra representa o ataque da sua poética ao convencional, incluindo muitas das convenções das artes plásticas modernas”.

Não é apenas o interesse em suas concepções sobre liberdade de criação que atraiu os artistas abstratos, nem sua contínua subversão das tentativas de restringir a liberdade artística pelos estados totalitários ou escolas artísticas restritivas. Breton fez um comentário que lança luz sobre esta atração inusitada dos artistas “concretos” e “abstratos”: ele disse que a arte surrealista “empresta a máscara dos concretos aos abstratos e vice-versa”.

Ao passar pela exposição da obra de Max Ernst pode-se testemunhar o desdobramento de um drama social e psicológico, com os temas essenciais de quem foi tomado pelos eventos do século XX. Uma constante em Ernst é sua aderência imaculada à independência artística e à liberdade de criação. A maior parte de sua obra continua muito viva, pois os problemas que levantou somente cresceram e se aprofundaram em complexidade. Sua vida lança uma sombra inflexível sobre a crise presente nas artes visuais.

Na última anotação de seu diário, ele explica a obra da sua vida da seguinte forma: “Esta foi a última frase que Max Ernst anotou... Uma precisa e iluminada definição através da qual ele se retira e nos apresenta uma questão. Não é coincidência que, para resumir sua vida e sua atividade, ele não ofereça uma definição ou a declaração de um manifesto de um estilo, mas uma questão.” Fica para a nova geração de artistas agarrar esta questão fundamental sobre a arte e penetrar, sem medo, nos problemas da cognição artística.