Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 1 de outubro de 1998
Abertura da exposição Max Ernst, no Centro
Georges Pompidou em Paris, e lançamento do livro Max Ernst:
Beyond Painting (Max Ernst: além da pintura), compilação
de escritos do artista (Wittenborn, Schultz, 1948).
A recente exposição das obras de Max Ernst no
Centro Pompidou em Paris nos fornece uma valiosa compreensão
da vida e da obra do artista.
Ernst (1891 - 1976) perdura como uma forte e influente figura
das artes visuais do século XX. A exposição
possibilita examinar alguns temas de sua obra. O que caracteriza
a arte de Ernst, acima de tudo, são as mudanças
abruptas de direção e uma atitude de rigorosa autocrítica.
Com a constante transformação de suas imagens e
técnicas ele expressa o desejo de recompor os tumultuosos
eventos que presenciou durante a primeira metade do século
XX.
As primeiras obras de Ernst, na mostra, são as suas
pinturas-colagens, das quais a Two Children are threatened
by a Nightingale (Duas Crianças Ameaçadas
por um Rouxinol), aparenta ser a mais complexa. Estas são
seguidas por uma sala dedicada à sua série de pinturas
murais, recuperadas da casa do poeta surrealista Paul Eluard,
no distrito de Eaubonne, em Paris. Foram produzidas em 1923, dentro
do trabalho poético conjunto realizado pelos dois artistas
- Les Malheurs des Immortals (O Mal dos Imortais).
As pinturas entitulam-se The Birds Cannot Disappear
(Os Pássaros Não Podem Desaparecer),At
the First Clear Word (Na primeira Palavra Clara)
e Friendly Advice(Conselho de Amigo).
A exposição também inclui muitas das suas
obras com técnicas como frottage e grottage,
iniciadas em 1925. Frottage consiste em colocar papel sobre
uma superfície e esfrega-lo com grafite preto; na grottage
ele aplica camadas de tinta, a mais escura por último,
e as raspa para revelar a tinta mais clara. Ele aplicava incontáveis
camadas de cores escuras, e então, para criar cores excepcionais
em seus quadros, as raspava revelando o branco brilhante da tela.
Rembrandt costumava usar técnica semelhante.
Ernst desenvolveu estas técnicas em suas visionárias
obras Forests (Florestas), Cities
(Cidades), Entire Cities (Cidades Inteiras)
e no seu Monument to the Birds (Monumento aos Pássaros).
Ele procurou expressar, com sua arte, seus mais intensos sentimentos
a respeito dos eventos do mundo. Capturou as dimensões
psicológicas do período em imagens tão intensas
e inesquecíveis quanto seqüências oníricas
perturbadoras. Mesmo assim, sua obra estava longe da pintura de
sonhos. Sobre a pintura Fireside Angel, escreveu:
Pintei Fireside Angel após a derrota
dos Republicanos na Espanha. Claramente, esta obra tem um título
irônico, já que retrata um monstro terrível
que bota abaixo e destrói tudo o que vê em seu caminho.
Foi esta a impressão que tive, à época, sobre
o que iria acontecer no mundo, e eu estava certo.
A série de pinturas visionárias conhecidas como
Europe after the Rain (A Europa Após a Chuva),
foi produzida entre 1933 e 1942. Nelas, Ernst buscou tornar visíveis
seus pensamentos. Usou de forma original a técnica da declomania,
desenvolvida por seu amigo e pintor surrealista Dominguez. Ela
consiste em colocar papel ou vidro em uma superfície pintada
para retirá-los em seguida. Alguns surrealistas deixavam
o resultado gerado intocado. Ernst desenvolve a técnica
revelando formas mutantes escondidas de animais, seres humanos,
selvas, cidades e florestas.
O primeiro quadro da série Europe after the rain
consiste na vista da terra e do mar por um piloto nas alturas
da estratosfera. A paisagem é coberta pela junção
de nuvens carregadas - uma encarnação visual da
eminente guerra após a tomada do poder por Hitler, na Alemanha.
Ernst foi soldado na I Guerra Mundial e apoiou a Revolução
Russa. Se opôs à ascensão do fascismo e protestou
contra os Processos de Moscou de Stalin. Na França, foi
perseguido pela Gestapo, após ter sido admitido por sua
nacionalidade alemã. Todas essas experiências estão
traduzidas em pinturas, que refletem a concepção
do artista da gravidade do golpe à civilização
dado pelo estalinismo e pelo fascismo.
O último quadro da série data de 1942, e é
certamente a obra que melhor expõe os devastadores ataques
à humanidade. É a visão de Ernst da proximidade
da destruição da civilização. De dentro
da terrível paisagem, formas vivas começam a surgir
das pedras e da vegetação e observam à sua
volta, estarrecidas e incapazes de compreender a nova situação.
Essas paisagens dos anos 30 e 40 representam seus sentimentos
a respeito do progresso da humanidade. Ernst produziu outras pinturas
usando a mesma técnica, obras também magníficas
e perturbadoras, como The Robing of the Bride (O
Vestido da Noiva), Napoleon in the Wilderness
(Napoleão na Selva), The Antipope (O
Antipapa), and The Stolen Mirror (O Espelho
Roubado).
Ernst, Breton e a criatividade
Ainda que mais conhecido como pintor, Ernst também esculpia
e escrevia poesia. No seu diário autobiográfico
Tissue of truth, Tissue of lies (Emaranhado de
Verdades, Emaranhado de mentiras), escrito em terceira pessoa,
examina meticulosamente sua própria criatividade. Ele retrabalhou
seus diários antes de morrer, buscando compreender conscientemente
a sua inspiração. Certa vez descreveu suas obras
como uma tentativa de conquistar o último grande mito da
civilização, o mito envolvendo o processo criativo.
Ele compartilhou essa busca com André Breton, líder
ideológico do surrealismo. Breton convocou os artistas
a depositarem todos os seus esforços no estudo do que ele
considerava ser o mais complexo de todos os mecanismos, a inspiração
artística. Breton dizia que a partir do momento em
que se deixa de considerar esta [a inspiração] como
uma coisa sagrada, não pensem, pela muita confiança
que têm na sua extraordinária virtude, senão
em desatar-lhe os seus últimos laços, ou mesmo -
o que ainda não ousou conceber-se - em dominá-la
(O Segundo Manifesto Surrealista, Breton, 1929).
Em suas obras, Ernst tenta compreender os mistérios
do seu próprio processo criativo. Estes ainda eram problemas
objetivos que Ernst e Breton não conseguiam resolver. Primeiro,
a análise do inconsciente por Freud apenas abriu
os olhos, como disse Trotsky, para este universo relativamente
desconhecido. O estudo da mente está na fase da exploração.
A tendência dos surrealistas de adotar as conclusões
de Freud acriticamente contribuiu na distorção de
seus próprios trabalhos.
A influência de Ernst sobre Breton e
a descoberta da sua técnica de colagem
A colaboração com André Breton fora certa
vez descrita pelo colega e pintor surrealista, Roberto Matta,
como uma Odisséia através do processo
criativo e uma Ilíada pela mente. Apesar das
tensões documentadas entre os dois artistas, sua relação
foi uma das mais intrigantes do século. No exame de certos
aspectos dessa relação vários temas podem
ser levantados. Nesse sentido, há um valioso livro que
contém os escritos de Ernst: Max Ernst: Beyond Painting
(Max Ernst: Além da pintura), publicado em 1948.
No artigo The Placing Under Whisky Marine, escrito
para a sua primeira exposição em Paris, Ernst explica
a origem da forma peculiar de colagem que desenvolveu após
a I Guerra Mundial. Essa antiga técnica foi reinventada
pelos cubistas sob novos impulsos sociais, mas seu uso era restrito.
Ernst começa explicando como sua abordagem da colagem se
diferiu da dos artistas do movimento dadá, que surgiu durante
a I Guerra Mundial, no qual assumiu um papel de liderança
quando estava em Colônia. Mais do que simplesmente justapor
imagens para colocá-las em choque, ele buscou juntar imagens
díspares para criar uma nova manifestação
poética.
Ernst certa vez definiu o fenômeno dadá: Nós
jovens voltávamos da guerra perdidos e nossa aversão
por ela precisava encontrar um escape. Quase naturalmente, a aversão
tomou a forma de um ataque às bases da civilização
que criou essa guerra - ataque através da linguagem, sintaxe,
lógica, literatura, pintura e muito mais (Max
Ernst: A Retrospective. - Max Ernst: Uma Retrospectiva).
Um confuso conflito artístico no dadá alemão,
entre o grupo de Berlin e o de Colônia, levou a um novo
rompimento de relações. Ainda que tivessem uma base
política marxista em comum, Ernst expressou seu desacordo
com o uso diretamente político da colagem que faziam os
dadaístas de Berlin. Ele estava mais interessado em sua
larga implicação para a expressão artística.
Ele explica o processo de descoberta da técnica de colagem:
Num dia chuvoso de 1919, me encontrando numa vila no Reno,
fui surpreendido uma obsessão que prendia meu olhar às
páginas de um catálogo ilustrado de objetos para
demonstrações antropológicas, microscópicas,
mineralógicas e paleontológicas.
Essas visões se chamavam novos planos, por causa
de um encontro com um novo desconhecido (o plano da não-concordância).
Na época, era suficiente embelezar as páginas do
catálogo, acrescentando pinturas ou desenhos, e, com isso,
reproduzir apenas o que via em mim mesmo, uma cor, uma marca de
lápis, uma paisagem exterior ao objeto representado, o
deserto, a tempestade, um corte transversal geológico,
um chão, uma única linha reta significando o horizonte...
assim obtive uma imagem fixa fiel às minhas alucinações
e transformei em dramas reveladores os meus mais secretos desejos
- tudo isso a partir do que antes eram apenas umas banais páginas
de anúncios. (Max Ernst: Beyond Painting. Wittenborn,
Schultz, 1948).
As obras produzidas nesse período foram diferentes dos
seus outros experimentos com colagem. Ele tirava fotos de catálogos
da virada do século com gravuras de imagens mundanas e
tradicionais. Recortava, então, com tesouras, essas cenas
e objetos de forma a não serem reconhecidas como parte
do seu ambiente inicial. Esses elementos diferentes eram então
rearranjados em uma nova ordem tão real quanto
a inicial. O resultado perturbava boa parte das concepções
já pré-ordenadas de realidade. De início
lança nossa compreensão numa confusão, mas
em seguida gera uma atração peculiar.
Por essa época, Breton começava a ficar cada
vez mais desiludido com a anarquia pessimista e indeterminada
do dadá. Essas primeiras colagens de Ernst tiveram um grande
impacto sobre suas concepções artísticas.
Em maio de 1921 ele organizou uma exposição com
as primeiras colagens de Ernst. Breton entrou em contato com o
dadá de Colônia porque algo em sua obra lhe havia
chamado atenção. Ele comenta o impacto que as colagens
de Ernst geraram em Paris:
Lembro-me muito bem da ocasião em que Tzara, Aragon,
Soupault e eu descobrimos as colagens de Max Ernst. Estávamos
todos na casa do Picabia quando elas chegaram de Colônia.
Elas nos influenciaram de uma forma que nunca mais experimentamos
novamente. O objeto externo estava deslocado da sua ambientação
usual. Ele separava partes que eram liberadas de seu relacionamento
enquanto objeto, assim entravam em combinações totalmente
novas com outros elementos.
Mas a capacidade maravilhosa de alcançar duas
realidades distantes, sem se afastar do campo da experiência,
e de conseguir que, ao se unirem as duas realidades, elas gerem
uma faísca; de colocar ao alcance de nossa compreensão
figuras abstratas que carregam a mesma intensidade e o mesmo alívio
que as outras; de nos retirar as referências, nos deslocando
em nossa própria memória - isso é o que,
provisoriamente, nos atraiu (Preface to the Max Ernst
Exhibition - Prefácio à exposição
de Max Ernst, maio de 1920).
Esta foi a primeira exposição de Ernst em Paris,
e o artista foi impossibilitado de comparecer por ter tido o visto
negado pelas tropas britânicas, que ocupavam a Alemanha
por conta do Tratado de Versalhes. Ernst estava envolvido na produção
da revista The Ventilator (O Ventilador),
com seu amigo comunista Johannes Baargeld e com o artista Hans
Arp. Nessa altura a revista tinha uma circulação
de 20 mil exemplares entre intelectuais e operários de
Colônia. Foi fechada pelas tropas britânicas. No meio
de tantos outros eventos importantes, a exposição
em Paris ajudou os artistas a reagirem contra as limitações
do dadá.
Muitos artistas passaram por experiências terríveis
durante a I Guerra Mundial. Ernst serviu como canhoneiro na Alemanha
entre 1914-17. Certa vez escreveu sobre essas suas experiências
dizendo que havia morrido em 1914 e renascido em 1918. Breton
tentou mostrar o potencial regenerativo das colagens
de Ernst. Seu trabalho seria, então, um ingrediente vital
na transição do anarquismo negativo do dadá
para a análise progressista da natureza do homem pelos
surrealistas.
Duas Crianças Ameaçadas
por um Rouxinol, 1924
No período entre 1921 e 1924, Ernst desenvolveu sua
técnica de colagem na direção da pintura
de colagem. Neste contexto é importante considerar uma
das mais desafiantes obras da exibição de Pompidou,
Duas Crianças Ameaçadas por um Rouxinol
- valiosa pois, em suas obras mais pessoais, são mais visíveis
os sinais de seu complexo processo criativo. Pintado em 1924,
foi a realização de um período da obra de
Ernst. Ele pensava nesta técnica como a grande contribuição
que deu ao surrealismo. Seu objetivo era transformar a pintura
em algo mais do que uma experiência visual. Ele queria revelar
as tensões físicas, os dramas psicológicos,
os distúrbios de percepção, as memórias
da complexa jornada da infância à maturidade e a
forma com que a vida delimita e transforma esses processos.
Os diários de Ernst apresentam algumas das imagens que
aparecem na pintura. Escrito na terceira pessoa, ele explica a
primeira aparição do rouxinol que desce até
a pintura: Primeiro contato com a alucinação.
Sarampo. Medo da morte e dos poderes aniquiladores. Visão-febril
provocada pela imitação de mogno da estrutura da
cama, as ranhuras da madeira tomando sucessivamente o aspecto
de um olho, um nariz, a cabeça de um pássaro, um
perigoso rouxinol, um peão, e por aí vai. Certamente
o pequeno Max sentia prazer em ter medo dessas visões e,
dessa forma, passou voluntariamente a provocar alucinações
desse tipo olhando obstinadamente para painéis de madeira,
nuvens, papéis de parede, paredes sem gesso, e muitas outras
coisas.
Este comentário nos leva a fundo na mente do artista.
O rouxinol foi a forma como a morte se manifestou pela primeira
vez em sua vida. Na obra o rouxinol vem até a cena. Ele
aparenta ser pequeno e insignificante, mas, ao mesmo tempo, parece
levar a crise às figuras da obra. Uma criança está
ao chão sem movimentos; uma mulher perturbada parece correr
da criança com uma faca sem sangue na mão. Ela olha
desesperada para o rouxinol que se aproxima. Uma figura de terno
e gravata, um homem, carrega uma pequena criança. Perturbadoramente
ele não possui traços faciais. Está escapando
da cena no topo de uma pequena casa. A criança não
oferece resistência. Seria resgate ou seqüestro? Ele
se estende para alcançar um puxador preso à moldura
do quadro. É uma simples maçaneta de porta. Isto
poderia levá-lo para fora da pintura, mas não está
nem na pintura nem no quadro. Está fixado em ambos. Não
poderia abrir logicamente para nenhum dos dois lados. Transformar-se-ia,
então, de uma maçaneta de porta em um indefinível
desejo?
Ernst recorda em seu diário seus seis anos de idade,
quando da experiência da morte de sua irmã mais nova.
Novamente em terceira pessoa, ele relata (1897) Primeiro
contato com o nada: quando sua irmã Maria o beijou, disse
tchau e morreu poucas horas depois. Após esse evento, os
sentimentos do nada e dos poderes aniquiladores passaram a predominar
em sua mente, em seu comportamento e - depois - em sua obra.
A memória deste inconsolável e confuso nada
é um dos elementos que constituem o oxigênio da sua
pintura. Ernst fala desta obra como sendo o último resultado
lógico da colagem por enquanto.
Escrita automática e pintura automática
Em 1925, Ernst, André Masson e outros começam
a busca pelo equivalente visual de escrita automática,
após vários comentários por parte dos poetas
surrealistas de que uma pintura surrealista não deveria
nem poderia existir. Em abril de 1925, Pierre Naville, um dos
editores de A revolução Surrealista e, depois,
influente figura no movimento trotskista francês, escreveu,
Todos sabem que não existe pintura surrealista. Nem
os traços feitos ao acaso com o pincel, nem as figuras
reproduzindo imagens de sonhos, nem idéias imaginativas,
podem, é claro, ser descritas. Esses comentários
visavam o que era pensado como uma tentativa de transpor literal
e automaticamente a técnica da escrita automática
para a pintura.
Discordando da visão de Naville, Ernst escreveu, graças
ao estudo entusiástico do mecanismo da inspiração,
os surrealistas tiveram êxito na descoberta de certos processos
poéticos essenciais, por meio dos quais a elaboração
do trabalho plástico pode ser liberta da influência
das tão chamadas faculdades conscientes. Chegando ao encantamento
tanto do gosto como da razão e da vontade, esse processo
resulta na aplicação rigorosa da definição
surrealista para o desenho, a pintura, e, até certo ponto,
para a fotografia.
Continua ele, trabalhando mais e mais para conter minha
ativa interferência no desenvolvimento do quadro, e, dessa
forma, ampliando a interferência das faculdades alucinantes
da mente, eu passo a existir como espectador no nascimento de
todas as minhas obras.
Ernst aprofundou o estudo da técnica e a sua importância
no processo criativo numa tentativa de desmascarar o mito do gênio
criativo, da mesma forma como os surrealistas atacavam os mitos
políticos e religiosos. Mas, enquanto tentava explicar
a gênese da sua criatividade e a relação entre
a técnica e o processo do pensamento, Ernst edificou um
novo mito, aquele do artista como um espectador impassível,
excluindo todas as orientações conscientes
da mente, reduzindo ao extremo a parte ativa daquele que até
agora chamamos de autor da obra, este método
é revelador por ser o real equivalente daquilo que já
é conhecido pelo termo escrita automática.
É como um espectador que o autor auxilia, indiferente ou
apaixonado, o nascimento de suas obras e observa o desenvolvimento
de suas fases.
No Segundo Manifesto Surrealista, de 1929, Breton descreveu
o processo criativo como o mecanismo mais complexo de todos.
Nesse processo, o artista não seria nem um espectador,
nem um mágico, nem um espiritualista. O desdém pelas
tão faladas faculdades mentais e a introdução
de algumas noções místicas como encanto
pelo gosto da razão e da vontade não têm
nada em comum com a obra de Freud, nas quais os surrealistas buscaram
inspiração e justificação. Trotsky
foi muito mais crítico das hipóteses freudianas
do que os surrealistas, mas dava ênfase no que havia de
positivo em sua obra, o que estava enraizado numa abordagem materialista
de compreensão da mente. O objetivo de Freud não
era o de glorificar o inconsciente, mas o de aplicar
e estender de forma rigorosa a consciência sobre uma região
que estava, até então, associada aos deuses, demônios,
diabos, e, assim, trazê-las para o controle da razão.
O Surrealismo e a Renascença
Apesar da tendência de Ernst a ver as imagens que produziu
como produções intactas do processo consciente individual,
a sua obra claramente contém as marcas de eventos externos
de magnitude histórica - mediadas pela consciente aplicação
da técnica. Um exame mais detalhado sobre a redescoberta
da técnica da frottage por Ernst e seu impacto sobre
o futuro desenvolvimento do surrealismo nos mostra isso.
Os pensamentos e os interesses dos artistas renascentistas
do século XVI permeiam todo o livro Max Ernst: Beyond
Painting. Uma particular influência é Leonardo
Da Vinci e seu Trattato della pittura. Isso é surpreendente,
pois o ponto de vista público dos surrealistas é
o da negação da tradição racionalista.
Em suas anotações de 10 de agosto de 1925, Ernst
descreve um conflito artístico entre Da Vinci e o pintor
Sandro Botticelli acerca da relação entre inspiração
e técnica artística. Ernst comenta que Botticelli
manteve uma atitude de repulsa diante da pintura de paisagens,
chamando este tipo de pintura de espécie de investigação
baixa e medíocre. Para ilustrar isso, Botticelli
jogou esponjas encharcadas de cores diferentes contra a
parede, questionando se o resultado disso poderia ser visto
por alguém como uma bela paisagem.
Da Vinci respondeu com uma explicação sobre a
inter-relação entre inspiração e técnica:
Botticelli está certo, algumas pessoas podem encontrar
em borrões as coisas mais bizarras. Eu quis dizer que aquele
que estiver disposto a olhar detalhadamente para o borrão
discernirá cabeças de homens, vários animais,
uma batalha, algumas pedras, o mar, nuvens, bosques, e várias
outras coisas - é como o tilintar do sino, que faz com
que se ouça o que se imagina.
E continua Da Vinci, mas ainda que esta mancha sirva
para sugerir algumas idéias, ela não nos ensina
como terminar a pintura. E, assim, o pintor acima mencionado fica
com paisagens horríveis. Para ser universal e agradar a
todos, é necessário que na mesma composição
sejam encontradas passagens muitos escuras e outras de uma penumbra
delicadamente iluminada. Não é de se desprezar,
na minha opinião, se, ao olhar atentamente as manchas na
parede, alguém se lembre do aspecto do carvão na
fornalha, das nuvens, do córrego fluindo; e se você
os olhar com atenção encontrará invenções
admiráveis.
Dessas o gênio do pintor pode tirar grande vantagem,
para compor batalhas de animais, de homens, paisagens ou monstros,
demônios e outras coisas fantásticas que o deixem
estimado. Nessas coisas confusas o gênio deve estar atento
à invenção, mas é necessário
saber bem [como desenhar] todas as partes geralmente ignoradas,
assim como as partes dos animais e os aspectos das paisagens,
pedras e vegetação (Tratado Sobre Pintura,
Leonardo da Vinci).
Os historiadores de arte consideram que a técnica do
uso espontâneo dos planos de fundo nas paisagens
de Da Vinci, com um caráter onírico, dá forma
às suas mais enigmáticas obras. Um estudo sobre
a Mona Lisa foi feito sob este escopo. Com esta questão
em mente, Ernst considerou a forma de resolvê-la em sua
própria obra. Ele recorda uma experiência pessoal
quando da redescoberta da antiga técnica da frottage
em 1925. Uma forma da frottage foi usada na Grécia
Antiga, onde papel de arroz era aplicado em cima das pinturas
da parede e, quando esfregado sobre ele, se formava um negativo
da pintura. Ernst explica como usava essa técnica:
Começou com uma memória da infância,
no curso da qual um painel de mogno falso, situado na frente da
minha cama, tinha gerado todo tipo de estímulos óticos
em estados de vigília, e, me encontrando em um anoitecer
chuvoso no litoral, fui tomado pela obsessão que fixou
meu olhar no assoalho, que possuía milhares de ranhuras
profundas.
Decidi então investigar o simbolismo desta obsessão
e, no sentido de auxiliar minhas faculdades meditativas e alucinógenas,
fiz várias séries de desenhos das tábuas
colocando sobre elas pedaços de papel ao acaso, que rabisquei
suavemente com grafite preto. Olhando atentamente para os desenhos,
eu obtive passagens muitos escuras e outras de uma penumbra
delicadamente iluminada, fiquei surpreso com a repentina
intensificação das minhas capacidades visuais e
com a sucessão alucinante de imagens contraditórias
sobrepostas, uma sobre a outra, com uma persistência e a
rapidez característica das memórias amorosas
(Max Ernst: Beyond Painting, 1948).
Em 1926, Ernst publicou essas obras sob o título de
História Natural, em Paris. As imagens pulavam
do livro ao abri-lo, não por alucinação,
mas por desejo, como um reconhecimento consciente da nova técnica.
Sob os impulsos das novas condições e o desenvolvimento
em todas as ciências, que sempre influenciaram Ernst, ele
reexaminou longamente os problemas da cognição artística.
Ernst cita Breton sobre o amplo impacto das idéias renascentistas
sobre o desenvolvimento do surrealismo.
A lição de Leonardo, que colocava os seus
alunos para copiar, em suas pinturas, aquilo que viam tomar forma
nas ranhuras de uma velha parede (cada um de acordo com a posição
que ocupava em relação à luz) está
longe de ser compreendida. Toda a passagem da subjetividade à
objetividade está implicitamente determinada aí,
e o peso dessa resolução vai muito além,
nos interesses humanos, da própria inspiração.
O surrealismo, particularmente, tem se preocupado muito com essa
parte da lição. Ele não surgiu daí,
mas redescobriu o caminho e, com ele, pode se estender para muitos
outros domínios além do da pintura. (Star
Shaped Castle - Castelo em Forma de Estrela, de André
Breton).
Breton comenta a importância de estudar percepção
e realidade como áreas que requerem um sério estudo
a longo termo. Breton estava, entretanto, investigando uma das
significantes linhas que conectam a infinita tapeçaria
da criatividade através da história humana.
As concepções de Ernst sobre
independência artística
O que possibilitou Ernst manter sua independência e liberdade
de criação? Essas foram as qualidades responsáveis
por reter o respeito de Breton por toda a vida. Seu importante
ensaio Inspiration to Order (Inspiração
para a Ordem) abre com uma imagem que se dirige ao elemento
dominante da sua criatividade. Ele diz, Entre, entre, não
tenha medo de se cegar.
Breton sempre teve muito respeito por aquilo que ele chamava
de profunda humanidade de Ernst. Em dois ensaios,
escritos respectivamente em 1920 e 1927, Breton procura explicar
isso. Ele escreve, [Ernst] projeta diante de nossos olhos
o mais cativante filme do mundo, e retém a graça
de sorrir mesmo quando ilumina nossa vida interior de forma profunda
e radiante, nós não hesitamos em ver em Max Ernst
um homem com essas infinitas possibilidades (Max Ernst:
Beyond Painting).
Quando Breton examinou a natureza da colagem de Ernst, ele
meditou sobre a natureza da atitude artística diante da
cultura do passado: Max Ernst parece ter herdado o senso
da cultura de uma forma extraordinária, cativante, paradoxal
e inestimável. No mesmo artigo Breton aponta as concepções
gerais que influenciaram sua liberdade de criação.
Ele comenta que aí talvez resida, para Max Ernst,
a possibilidade de viver, de viver livre, e esta é a raiz
de sua profunda humanidade. Essas palavras de Breton são
fortes.
A descrição de Ernst de uma de suas pinturas
frottage, The Hundred Thousand Doves (As
Cem Mil Andorinhas), nos fornece a sensação
verbal e visual dos seus sentimentos de liberdade: Em um
país da cor do peito de um pombo eu saudei o vôo
de 1.000.000 andorinhas. Eu as vejo invadindo as florestas, negras
de desejo, as falésias e as praias sem fim. Vejo uma folha
de hera flutuando no oceano e sinto um muito brando terremoto.
Eu vejo um andorinha branca e pálida, flor do deserto.
Ela se nega a entender (Max Ernst: Beyond Painting).
Ele reage com hostilidade a tudo o que compromete seu senso
de independência em arte. Por conta disso é que Breton
e Ernst mantiveram um respeito mútuo, que durou por toda
vida. Muitas das concepções artísticas de
Ernst eram fruto de sua colaboração com Breton.
Ernst, sempre que podia, admitia isso em seus escritos.
Ernst explica sua visão de que as concepções
surrealistas abririam muitas possibilidades para a futura criatividade
humana. Em uma notável passagem escrita em 1934, após
a vitória de Hitler na Alemanha, quando estava profundamente
afetado pela ascensão do estalinismo e do fascismo ao mesmo
tempo, definiu sua atitude diante da arte. Cada ser humano
normal (e não meramente o artista) têm
uma inesgotável história de imagens enterradas em
seu subconsciente, trata-se meramente de ter procedimentos para
encorajá-las e liberá-las... para viajar pelo inconsciente,
para trazer objetos puros e ainda não adulterados à
luz.
Isto expressa a sua confiança de que a criação
artística está aberta para toda a humanidade. Esse
é um ponto importantíssimo em seu desenvolvimento.
Apesar de ser sob a influência do movimento surrealista
que ele tenha chegado à tão claras conclusões,
Ernst sempre se manteve fiel à idéias como essas,
ao longo de toda a sua vida - em seus estudos sobre arte e sociedade
na Universidade de Colônia, em seus estudos sobre as mais
progressistas idéias acerca do inconsciente, em suas fortes
experiências durante a I Guerra Mundial, em sua recusa de
se ligar a escolas artísticas restritivas. Essas atitudes
permeiam a sua obra e podem, de certa forma, explicar sua influência
sobre outros artistas e sobre outros movimentos artísticos.
A influência de Ernst sobre a Arte Abstrata
Um exemplo da influência de Ernst sobre a arte abstrata
aparece no prefácio do Max Ernst: Beyond Painting,
escrito pelo artista americano Robert Motherwell. Neste texto
Motherwell, um dos fundadores da escola americana de arte abstrata
expressionista, examina seu próprio fascínio pelas
questões postas aos artistas pela obra e vida de Max Ernst.
Ele faz algumas observações interessantes sobre
Ernst e a natureza da arte abstrata:
A luta da maioria dos pintores modernos se dá
em seus estúdios. Seus inventos são a significação
plástica que reproduz os dramas ocorridos no eu interior.
Sua investida contra a sociedade é feita través
da indeterminação, através do contraste entre
o real subjetivo e o convencional. De forma oposta, Max Ernst
está entre os poucos pintores modernos cujos interesses
estão vinculados ao mundo exterior, aos eventos e instituições
sociais - a igreja, a repressão política, escravidão
sexual. Sua obra é repleta de ironias e crueldades, sarcasmos
e sátiras (Max Ernst: Beyond Painting).
Motherwell comenta a influência que Ernst teve sobre
os artistas americanos. Ele ficou exilado em Nova York em 1941,
após ter sido cassado por toda a Europa pela Gestapo. Antes
de escapar pelo sul da França, pelo porto de Marselha,
ele se encontrou com André Breton. Eles resolveram as diferenças
surgidas quando Ernst e seu amigo Man Ray deixaram o movimento
surrealista, em 1938. Ernst havia sido internado na França
e sua vinda à América era inicialmente restrita
à Nova York.
Por lá Ernst fez uma exposição na Livraria
Wakefield, onde um grupo de jovens artistas americanos compareceu.
Ele lhes apresentou uma nova técnica, chamada de child´s
play (brincadeira de criança). Ela consiste num
tubo pendurado todo furado no fundo. A tinta vaza por ele, que
pode ser colocado em movimento sobre a tela. Um dos jovens artistas
era Jackson Pollock; Pollock usou a técnica em suas pinturas
gotejadas. A fascinação de Pollock com
a técnica inspirou Ernst a produzir a obra Young
Man Intrigued by the Flight of a Non-Euclidean Fly (Jovem
Intrigado pelo Vôo da Mosca Não-euclidiana).
A obra era inicialmente chamada de Arte Abstrata, Arte Concreta.
Esse título inusitado antecipou um conflito entre diferentes
escolas artísticas que emergiria apenas após a II
Guerra.
Em seu prefácio, Motherwell trata do que acredita ser
a diferença essencial entre a arte abstrata e a surrealista.
Ele vê Ernst como um comentarista dos eventos políticos
que foram surgindo. Mas Ernst, em sua discussão a respeito
da técnica da colagem, deixa claro que o uso da arte para
fins políticos era oposto às suas concepções
artísticas, suas idéias de liberdade e sua vida.
Motherwell avalia a dinâmica da vida e da obra de Ernst
e mostra como são inseparáveis: Em última
instância, não estou preocupado com qual forma de
expressão me importa mais... a minimização
do papel dos objetos, da tatilidade, nivelando tudo, a plasticidade
abstrata... era ignorada ou mesmo minada pela obra de Ernst. Sua
vontade subjetiva era contemporânea, para ele o homem era
essencialmente um ser histórico; Ernst trabalhava com imagens,
objetos e parafernálias do mundo exterior; ele advertia,
criticava, zombava, profetizava, revelava fantasias. Sua visão
era a de que nada está em ordem e que a ordem
de fora não tem nada a ver com a verdadeira ordem humana,
e também a de que nós somos vitimas da história
(prefácio de Max Ernst: Beyond Painting).
Mesmo pensando dessa forma, Ernst se recusa a refugiar na incompreensibilidade.
Ele não deixa de expressar a desordem, e nem tenta resolvê-la
de forma harmoniosa em sua própria obra. Isso significaria
uma fuga das complexas relações entra sua arte e
sua vida social, uma fuga da tensão que alimenta sua obra.
Motherwell termina seu prefácio falando do seu peculiar
interesse pelo universo do Max Ernst. Ele explica o poder da liberdade
em ação e do uso da liberdade
de Ernst e conclui, mesmo alguém que não o
conhece, mas comprometido, como eu, com outras visões de
pintura, acabam inevitavelmente sendo levadas, uma hora ou outra,
a contemplar suas mensagens. Sua obra representa o ataque da sua
poética ao convencional, incluindo muitas das convenções
das artes plásticas modernas.
Não é apenas o interesse em suas concepções
sobre liberdade de criação que atraiu os artistas
abstratos, nem sua contínua subversão das tentativas
de restringir a liberdade artística pelos estados totalitários
ou escolas artísticas restritivas. Breton fez um comentário
que lança luz sobre esta atração inusitada
dos artistas concretos e abstratos: ele
disse que a arte surrealista empresta a máscara dos
concretos aos abstratos e vice-versa.
Ao passar pela exposição da obra de Max Ernst
pode-se testemunhar o desdobramento de um drama social e psicológico,
com os temas essenciais de quem foi tomado pelos eventos do século
XX. Uma constante em Ernst é sua aderência imaculada
à independência artística e à liberdade
de criação. A maior parte de sua obra continua muito
viva, pois os problemas que levantou somente cresceram e se aprofundaram
em complexidade. Sua vida lança uma sombra inflexível
sobre a crise presente nas artes visuais.
Na última anotação de seu diário,
ele explica a obra da sua vida da seguinte forma: Esta foi
a última frase que Max Ernst anotou... Uma precisa e iluminada
definição através da qual ele se retira e
nos apresenta uma questão. Não é coincidência
que, para resumir sua vida e sua atividade, ele não ofereça
uma definição ou a declaração de um
manifesto de um estilo, mas uma questão. Fica para
a nova geração de artistas agarrar esta questão
fundamental sobre a arte e penetrar, sem medo, nos problemas da
cognição artística.