Letras civis: os laços de língua entre cidadãos
Em discussões sobre poesia e seu tempo, a pergunta de Hölderlin é sempre reciclada: “Para que poetas em tempos de penúria?” Respondo que justamente por serem tempos de penúria. Mas é papel da poesia dar conta de seu tempo? Muitos dirão que não. Poiesis vem do verbo grego fazer e a origem da palavra política está unida a polis. Tradutores alemães já verteram Polis como Staat, tirando o foco dos cidadãos que davam vida ao aglomerado de casas, e trazendo-o para uma espécie de Estado consciente, como se fosse de carne e osso. O Leviatã. Mas se trouxermos o foco político novamente para os cidadãos, para aqueles que formam a cidade, seria possível dizer que a relação entre poesia e política é a de fazer comunidade, fortalecer os elos comuns entre os cidadãos? Talvez seja esta uma possível interpretação do que Fernando Pessoa quis dizer com “Minha pátria é minha língua”?
Defende-se a noção de “arte pela arte”, atemporal, como se fosse uma ideologia milenar. No entanto, Catulo satirizou César. Mandelshtam satirizou Stálin. Poetas cantaram vitórias em guerras e lamentaram a queda de cidades. Não havia ainda a noção romântica de literatura nacional ou, como hoje, mundial. O poeta falava apenas a sua tribo, sua vila, sua comunidade. Esta tendência a exilar a poesia da História, como se jamais tivesse data e lugar, nos leva a querer analisá-la numa espécie de vácuo. Isto nos faz esquecer que transformações sociais têm impacto sobre a poesia, como as da Revolução Francesa. Quem financia a poesia? Quem a lê e a distribui? Os aristocratas da corte? A burguesia? Das decepções de Wordsworth com a Revolução Francesa às decepções de Maiakósvki com a Revolução Russa – que trouxe novas exigências de lealdade política de poetas, o sistema literário como um todo transforma-se. Não importa apenas como escreve o poeta, mas a quem fala. A que propósitos serve sua escrita? Quem paga a conta? Minha impressão é que, ao tornar-se complicada demais a resposta, escolheu-se a ideologia de que o poeta serve apenas a si mesmo, poesia pela poesia, sem implicações políticas. Uma fuga destas questões.
E com a globalização de hoje, o escritor quer ser compreendido pela gente do seu bairro, mas também por gente do outro lado do mundo. Assim, a tentação de não cantar o melro ou o bussardo, mas apenas “o pássaro”. Nem choupo nem mangueira, mas “a árvore”. E o que havia de local, ligando um poeta a sua comunidade – poiesis para a polis – é por vezes retirado da poesia em nome de uma neutralidade histórica e geográfica. À ideologia do não-tempo une-se a do não-lugar. Escrever não para seu tempo, mas para um futuro imaginário. Uma discussão difícil ao escrever este texto em português, tendo que contornar implicações de palavras em alemão. Político é o texto consciente do seu momento histórico e do público vivo. E contra os crimes que se acumulam aos pés do Anjo de Benjamin, talvez haja apenas como função possível à poesia dar testemunho, voz às vítimas, como o poeta grego dando voz às troianas. E esta flexibilidade histórica da poesia, como um poema de Catulo nos fala hoje ao mesmo tempo que nos transporta à Roma-República, quando ele queria falar a sua polis e a seu tempo.
França publica antologia de poetas brasileiros vivos
A maneira mais adequada de iniciar o anúncio e apresentação desta antologia é falar sobre seu organizador e tradutor: Patrick Quillier. Nascido em Toulouse em 1953, ele é poeta, ensaísta e um dos mais respeitados tradutores da língua portuguesa em francês, responsável, entre outros projetos hercúleos, pela versão das Obras Poéticas de Fernando Pessoa lançada na prestigiosa coleção La Pléiade. Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Nice, Quillier é ainda autor dos livros Office du murmure (1996) e Budapest (2004). E esta não é sua primeira incursão tradutória pela poesia brasileira. Quando o Brasil foi o convidado do festival Europalia em 2011, Quillier se encarregou da tradução do volume de poetas nacionais que acompanhou as leituras dos autores que foram à Bélgica.
Intitulada Retendre la corde vocale: anthologie de poésie brésilienne vivante, a antologia de agora traz três dezenas de poetas vivos de várias partes do território nacional e de poéticas bastante distintas, e será um número especial da revista Bacchanales, editada pela Maison de la Poésie Rhône-Alpes, em Grenoble. A capa, assim como as ilustrações que perpassam o volume são todas do pintor francês Gerard Serée.
O próprio livro é dividido em quatro partes, guiando-se pelas idades dos autores. A primeira traz quatro importantes poetas nascidos na década de 1930 e que passaram a atuar no cenário cultural brasileiro com grande força a partir dos anos 50: Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Zuca Sardan e Sebastião Nunes – e ainda nos ajuda a recuperar o trabalho de uma poeta que eu desconhecia, Regina Célia Colônia.
A segunda parte traz autores nascidos nas décadas de 1940/50: Elisabeth Veiga, Lu Menezes, Eliane Potiguara, Cuti, Adriano Espínola, Salgado Maranhão, Régis Bonvicino e Josely Vianna Baptista. Na terceira parte, autores nascidos a partir de 1960: Ricardo Aleixo, Ronald Augusto, Edimilson de Almeida Pereira, Cida Pedrosa, Marcos Siscar e Renato Negrão. Por fim, a antologia encerra-se com autores nascidos nos anos 1970/80, com Leo Gonçalves, Angélica Freitas, Marcus Fabiano Gonçalves, Dirceu Villa, Marília Garcia, Fabiana Faleiros, Érica Zíngano, Juliana Krapp e o mais jovem, Reuben da Rocha. Há poemas meus nessa última parte.
Por estar incluído na antologia, vou me abster de maiores comentários. A função deste texto é fazer uma simples apresentação do projeto, em homenagem aos esforços de Quillier. Quem está familiarizado com a escrita de alguns destes poetas saberá o trabalho que uma tradução deste porte envolveu. Antologias sempre tendem à discórdia, eu próprio poderia imaginar outros autores entre os que aí estão. Comentei a falta, com o tradutor, de um poeta maior como Leonardo Fróes. Ou Eliane Marques, poeta do Rio Grande do Sul que descobri há pouco tempo. Mas a boa notícia é que Quillier traduziu poemas suficientes para duas antologias e pretende suprir algumas lacunas, às vezes incontornáveis, em um volume maior que apresente também poetas que já nos deixaram, como Haroldo de Campos, Hilda Hilst, Roberto Piva e Hilda Machado. Poucas vezes a poesia brasileira viu-se em mãos de um tradutor tão hábeis quanto as de Quillier. Ainda que eu não estivesse incluído, teria visto essa lista de nomes com alegria.
E posso dizer que também já aprendi algo com ela: não conhecia o trabalho de Regina Célia Colônia, autora do livro Sumaimana (1974). Nascida no Rio de Janeiro em 1940, ela viveu seus primeiros dez anos de vida em diversos países latino-americanos com os pais, que trabalhavam junto a povos ameríndios. Estudou em Paris e retornou ao Brasil, onde viveu por um tempo junto à nação Kayapó e à nação Macuxi. Seu Sumaimana poderia ser conectado, por veios subterrâneos, a outros autores contemporâneos, como Sérgio Medeiros, Josely Vianna Baptista e Douglas Diegues, que buscam fontes e referências para além do cânone ocidental eurocêntrico em seus trabalhos. O lançamento da antologia será no dia 14 de outubro, em Grenoble.
Retendre la corde vocale: anthologie de poésie brésilienne vivante
Seleção e tradução de Patrick Quillier
Bacchanales n° 55 – Maison de la Poésie Rhône-Alpes
primeira parte
Ferreira Gullar (1930)
Augusto de Campos (1931)
Zuca Sardan (1933)
Sebastião Nunes (1938)
Regina Célia Colônia (1940)
segunda parte
Elisabeth Veiga (1941)
Lu Menezes (1948)
Eliane Potiguara (1950)
Cuti (1951)
Adriano Espínola (1952)
Salgado Maranhão (1953)
Régis Bonvicino (1955)
Josely Vianna Baptista (1957)
terceira parte
Ricardo Aleixo (1960)
Ronald Augusto (1961)
Edimilson de Almeida Pereira (1963)
Cida Pedrosa (1963)
Marcos Siscar (1964)
Renato Negrão (1968)
quarta parte
Leo Gonçalves (1973)
Angélica Freitas (1973)
Marcus Fabiano Gonçalves (1973)
Dirceu Villa (1975)
Ricardo Domeneck (1977)
Marília Garcia (1979)
Fabiana Faleiros (1980)
Érica Zíngano (1980)
Juliana Krapp (1980)
Reuben da Rocha (1984)
Um fim e um começo: 25 anos da Literaturwerkstatt Berlin
Neste mês de setembro, completa 25 anos um dos espaços mais tradicionais e importantes dos que se dedicam exclusivamente à literatura em Berlim: a Literaturwerkstatt Berlin, ou Oficina de Literatura de Berlim. Responsável pelo Poesiefestival, pelo festival de experimentos em texto e vídeo conhecido como Zebra, e que possui um dos mais extensos arquivos de gravações sonoras de autores alemães e internacionais – a Lyrikline –, o local é hoje uma instituição, mas seu início foi turbulento.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, o prédio da seção berlinense da União de Escritores da República Democrática Alemã na Villa Grotewohl, no Majakowskiring, foi ocupado por um grupo de escritores e tradutores que o declarou seu, para espaço de trabalho, leituras e debates. Nos meses que se seguiram, o grupo transformou a casa em um ponto vital de debate literário e político, em uma região tradicionalmente ocupada por escritores na Berlim Oriental: os bairros de Pankow e Prenzlauer Berg. Foi nesse prédio que, no dia 13 de setembro de 1991, a Literaturwerkstatt foi fundada. Autores como Heiner Müller (1929-1995), Harry Rowohlt (1945-2015), Christa Wolf (1929-2011) e Thomas Kling (1957-2005) fizeram ali algumas de suas últimas leituras antes de morrer.
O Festival de Poesia começou no ano 2000 e já é o maior da Europa. Por ele já passaram autores como o santa-lucense Derek Walcott e a alemã Herta Müller, ganhadores do Prêmio Nobel em 1992 e 2009, respectivamente. Também figuraram no festival o chinês Bei Dao, os estadunidenses Lawrence Ferlinghetti e Laurie Anderson, o esloveno Tomaž Šalamun, a dinamarquesa Inge Christensen, a austríaca Friederike Mayröcker e o mexicano Luis Felipe Fabre. Os brasileiros Arnaldo Antunes e Criolo já encerraram a noite de abertura do evento.
Um dos projetos mais interessantes do festival é a oficina de tradução, que pareia autores de língua alemã com autores de um país ou língua estrangeira específica. Em 2012, a oficina trouxe seis poetas brasileiros a Berlim: Horácio Costa, Jussara Salazar, Ricardo Aleixo, Marcos Siscar, Dirceu Villa e Érica Zíngano.
A Literaturwerkstatt celebra estes 25 anos com uma mudança, fechando o capítulo da Oficina de Literatura para transformar-se na Haus für Poesie, Casa para Poesia. Os festejos ocorrem no próximo sábado (17/09) no pátio da Kulturbrauerei, em Prenzlauer Berg. Por dois palcos, passarão autores contemporâneos alemães, como Max Czollek e Monika Rinck, e estrangeiros, como Ali al-Jallawi e Alaa al-Din Abd al-Maula. No palco pequeno, tenho a alegria de dizer que encerro a noite com uma performance – ao lado do produtor alemão Nelson Bell, que se apresenta como Crooked Waves, da cantora Vida Vojic e do austríaco Oskar May. Que venham mais 25 anos.
O romancista que matou e tentou transformar o crime em ficção
Estou em Bruxelas, onde passarei os meses de setembro e outubro como escritor-em-residência do instituto Passa Porta: Casa Internacional de Literatura. Na quarta-feira, fui ao primeiro evento organizado pelo instituto desde que cheguei. Estava na companhia dos jovens poetas flamengos Ewout De Cat, Arno Van Vlierberghe e Mathijs Tratsaert. Após o evento, conversava com meus colegas sobre romances policiais e séries televisivas como The Killing e True Detective quando Mathijs Tratsaert perguntou-me se eu conhecia a história do escritor holandês que matou a esposa e então escreveu um livro de “ficção” a respeito. Eu não conhecia. A história é digna de um roteiro ensandecido. Repasso-a para vocês aqui: em 1991, a mulher do escritor holandês Richard Klinkhamer, chamada Hannelore, desapareceu da casa que os dois dividiam no vilarejo holandês de Hongerige Wolf sem deixar rastros. Detalhe mórbido: Hongerige Wolf significa Lobo Faminto. O marido havia, até então, escrito dois livros. O primeiro, um romance, chama-se Gehoorzaam als een hond (“Obediente como um cão”).
Um ano após o desaparecimento de sua esposa, Richard Klinkhamer visitou seu editor holandês com o manuscrito de seu novo romance, intitulado Woensdag Gehaktdag, em que o narrador descreve, em detalhes, sete maneiras de matar a esposa. Uma tradução possível do título poderia ser “Dia de Carne Moída” ou “Carne Moída às Quartas”, fazendo uma referência ao costume holandês de se comprar carne moída às quartas-feiras, quando os açougues costumam moer as carnes que chegam dos abatedouros às segundas-feiras. Assim, às quartas-feiras a carne moída ainda está fresca. Isso talvez já dê uma ideia do que repugnou o editor, que rejeitou a publicação do romance, considerando-o macabro e repulsivo demais.
E, assim, Richard Klinkhamer se tornou o principal suspeito no desaparecimento de Hannelore. Apenas desaparecimento, pois até então ela não havia sido encontrada, viva ou morta. Sem corpo, sem evidência alguma, a polícia teve que abandonar as acusações contra o escritor. Não foi por falta de buscas. Segundo o jornalista britânico Will Woodward, em seu artigo “The lying Dutchman: how a crime writer confessed to his wife’s murder” para o jornal The Guardian, a polícia holandesa questionou o autor, fez escavações no jardim, trouxe cães farejadores, usou até mesmo um jato F6 da Força Aérea Holandesa com câmeras de infravermelho. Nada. Sem corpo, não há assassinato. E Richard Klinkhamer, quando os boatos correram o país, tornou-se até mesmo uma pequena figura de “culto” nos círculos literários, sendo convidado para entrevistas televisivas. O possível assassino-escritor que matou e então fez disso “literatura”.
Até que, em 1997, Klinkhamer vendeu a residência do casal em Lobo Faminto, digo, em Hongerige Wolf, e mudou-se para Amsterdã. Como é natural ao se comprar uma casa, os novos habitantes decidiram dedicar-se a uma reforma do lugar. Quando a construtora começou a cavar o jardim da residência, os restos de Hannelore Klinkman foram encontrados, enrolados em argila, sob o chão de cimento na cabana do jardim. Preso e condenado por homicídio e ocultação de cadáver, crime que o escritor acabou por confessar, Richard Klinkhamer foi condenado a sete anos de prisão. Foi libertado apenas dois anos mais tarde por bom comportamento. Não conheço as atenuantes que o levaram a ter sentença tão curta e cumprir tão pouco tempo da pena. Mas são estes os fatos. O romance acabou por ser publicado em 2007, e Richard Klinkhamer morreu em janeiro de 2016. Como nos casos reais que inspiram o romancista James Ellroy, o mundo pode ser um grande circo macabro.
Os loucos e os sãos em português e em alemão
Há alguns anos, quando assisti ao documentário The Devil and Daniel Johnston (2005), sobre o cantor americano que tivera sua carreira cortada pelo atropelo dos sintomas do transtorno bipolar que seria diagnosticado mais tarde, pensei no perigo de nossa cultura ainda romântica, ao mitificarmos as vidas difíceis desses artistas enquanto estamos no conforto de nosso sofá e da mentiraiada que tecemos para nós mesmos para manter nosso funcionamento em meio à sociedade.
Desde o Romantismo, é tentador seguir vendo o artista sempre como outsider, marginal, louco, autodestrutivo, ou seja, equiparando de alguma forma a arte e a loucura. Damos uma espécie de glamour a Rimbaud, morrendo sozinho e esquecido, a perna em gangrena; a Edgar Allan Poe, morrendo bêbado numa sarjeta, algo que seu conterrâneo Jack Spicer repetiria à sua maneira um século mais tarde. No Brasil, a crítica Flora Süssekind já escreveu sobre o processo de santificação dos mortos jovens da literatura, como Ana Cristina Cesar e Paulo Leminski. A mesma aura cerca Torquato Neto.
Sobre isso tudo, penso em uma frase do artista alemão Martin Kippenberger: “Não posso cortar uma das orelhas todos os dias.” Mas em nós talvez haja a sensação de que esses loucos geniais, como Arthur Bispo do Rosário e Robert Walser, não sejam tanto loucos quanto tenham acesso a alguma verdade que nos permanece escondida, por estarmos em meio à nossa mentiraiada pessoal. Não é isso que intuímos e buscamos também em artistas?
Hilda Hilst dedicou O obscena senhora D (1982) a um antropólogo americano chamado Ernest Becker. Nas décadas de 1960/70, quando chegou ao auge o movimento da antipsiquiatria, seu livro The Denial of Death (1973) foi uma contribuição ao debate, e recebeu, postumamente, o Prêmio Pulitzer. Baseado no trabalho do psicanalista vienense Otto Rank (1884-1939), Becker argumentou à época o que pode nos parecer um clichê hoje, mas ainda não era naquele momento, quando pessoas ainda recebiam eletrochoque para “curar” qualquer tipo de comportamento diferente: de que as pessoas consideradas loucas são apenas aquelas que não conseguem criar para si todo esse sistema de defesa psicológica que inventamos para nos proteger de um mundo que é, sim, assustador.
Somos sãos porque somos capazes de mentir para nós mesmos. Os outros morrem, nós não. Os outros sofrem acidentes ao porem os pés para fora de casa, nós não. Para Rank e Becker, o medo da morte é a força motriz da cultura humana, e da nossa criação de projetos heroicos para nós mesmos: morrer por uma pátria, por um deus, por um amor. Para dar sentido ao que intuímos não ter sentido algum. Como nas últimas páginas de A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, quando o narrador anuncia a morte de Macabéa: “E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.” Hilda Hilst foi ela mesma obcecada com a morte e com a loucura. Temeu e cortejou ambas até o fim.
As línguas portuguesa e alemã têm ambas seus loucos lúcidos. O Brasil teve Qorpo-Santo, Arthur Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio. Neste século, tivemos o trabalho de Rodrigo de Souza Leão e seu Todos os cachorros são azuis (2008). Portugal teve Antônio Gancho e Sebastião Alba, loucos e lúcidos cada qual à sua maneira. Na Alemanha, há Unica Zürn, que escreveu aqueles anagramas geniais. Há os suíços Robert Walser, Adolf Wölfli, Hans Morgenthaler, Friedrich Glauser e Constance Schwartzlin-Berberat, que passaram todos, em algum momento, pela Klinik Waldau. Constance Schwartzlin-Berberat é particularmente interessante (e a menos conhecida) por seu trabalho de escrita gráfica.
Em reação a meu último artigo, Victor Heringer reagiu trazendo para a conversa e apresentando-me a artistas do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, como Perdro Cornas e Albino Braz. Davi Pessoa, por sua vez, defendeu maior atenção à figura precursora de Osório César, o psiquiatra responsável pelo Juqueri e pioneiro no uso da arte como recurso terapêutico. Foi o autor de Expressão artística nos alienados: contribuição para o estudo dos símbolos na arte (1929) e uma influência sobre o trabalho de Nise da Silveira. Pedro Cornas foi um artista visual que viveu grande parte de sua vida no Juqueri. De origem espanhola, Cornas trabalhou no Brasil como gravador antes de ter diagnosticada a esquizofrenia. Em 1932, foi internado no Juqueri e posto aos cuidados do doutor Osório César. O MASP trouxe estas figuras para nossos olhos uma vez mais na exposição “Histórias da loucura: desenhos do Juqueri”, em 2015, com trabalhos de Pedro Cornas, Albino Braz, J. Q., Claudinha D’Onofrio, Pedro dos Reis, Sebastião Faria, A. Donato de Souza, Marianinha Guimarães, Armando Natale e Homero Novaes.
Como explicar a beleza construtiva e conceitual desses ditos loucos, ao contemplar os trabalhos insanamente bonitos de Arthur Bispo do Rosário, Constance Schwartzlin-Berberat, Pedro Cornas e Unica Zürn, que demonstram maior firmeza conceitual que a de muitos sãos contemporâneos? Talvez jamais possamos explicar. A obsessão por explicar tudo talvez seja parte da nossa sanidade louca. Eu encerraria voltando à correspondência entre arte e loucura. Becker, através de Rank e seu livro Arte e Artistas (1932), argumenta que o louco é são porque não é capaz de mentir para si mesmo sobre os terrores da vida, e o que separa o artista do louco é que o trabalho artístico o mantém fora dos manicômios. É o seu próprio projeto heróico. Ao pensarmos na vida de Bispo do Rosário e Walser, isso se quebra. Mas resta algo: a intuição de que nossa sanidade está baseada em uma mentiraiada de nós mesmos para nós mesmos. Mas… “não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.”
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