A crise hídrica no sudeste, especialmente em São Paulo, tem colocado sob holofotes o necessário debate sobre a privatização da água. No semiárido brasileiro, que recobre quase todo o nordeste e parte das Minas Gerais, esse processo de mercantilização se dá por uma fisiologia distinta, que chamamos a “indústria da seca”.
A Caatinga, vegetação que se estende por 895 mil quilômetros de semiárido, é hoje um dos ecossistemas mais ameaçados do planeta. O desmatamento para o estabelecimento de latifúndios para o agronegócio e áreas de mineração, as práticas extremamente nocivas e hidrointensivas associadas a essas atividades, além da própria produção de carvão e lenha, que compõem cerca de 30% da matriz energética das indústrias da região, configura um cenário de devastação ambiental imenso para o semiárido, que agrava em muito a restrição do acesso à água, pois afeta diretamente o ciclo das chuvas e o prolongamento das estiagens na região.
Quatro anos de seca
O Nordeste como um todo entra em seu quarto ano seguido de seca. Mesmo assim, os investimentos necessários para lidar com a situação não foram feitos e o problema segue secundarizado. Apesar de termos o semiárido mais chuvoso do mundo, é interesse do grande capital demonizar um fenômeno natural que não pode ser derrotado nunca, e apresentar políticas de mediação que permitem morrer de sede o gado e o povo do sertão.
É em grande medida por isso que o cenário político é dominado por oligarquias herdeiras dos coronéis, que jogam com o emocional das populações e, a título de propaganda, distribuem migalhas de água para os sertanejos. Dentre elas está a família de Henrique Eduardo Alves – deputado pelo Rio Grande do Norte por 44 anos! – acusado de manter ilegalmente milhões de dólares fora do país e indiciado pelo Ministério Público Federal por enriquecimento ilícito.
Em sua candidatura ao governo do estado em 2014 – derrotada diretamente pela candidatura do PSOL, que levou o pleito ao segundo turno – Henrique Alves colocou-se como paladino do combate à seca, invocando a construção das grandes adutoras. Em outros tempos, figuras públicas da direita reivindicavam a construção dos açudes, o estabelecimento dos trens de água, a disponibilização de carros-pipas. Em realidade, todos os esforços políticos vão para garantir a demanda de água do agronegócio e de atividades extrativistas minerais, em detrimento de pequenos agricultores e comunidades tradicionais que convivem há gerações com o semiárido.
96% dos municípios em situação de emergência
No Ceará, 176 dos 184 municípios – ou 96% – decretaram, no ano passado, situação de emergência por falta de água; ainda assim, a capacidade de armazenamento de água desse estado é dezenove vezes maior que do estado da Bahia, detentora do maior semiárido do país. Em Pernambuco, o nível de água acumulada nos reservatórios está em 13%, o mais baixo entre os estados nordestinos. No Rio Grande do Norte, parte da região do Seridó já vem fazendo rodízio de água há algum tempo, e a resposta da Agência Nacional da Águas (ANA) é direcionar a vazão de açudes da Paraíba para o estado – o que reduz a capacidade de abastecimento da própria Paraíba, que vive situação muito crítica.
A própria forma de armazenamento e distribuição utilizada pelas companhias de água e esgoto no semiárido ajuda a entender a industrialização da estiagem natural. São utilizados majoritariamente açudes, grandes reservatórios abertos e ineficientes, com altos níveis de evaporação e contaminação, situados em sua maioria em terrenos privados, cujos donos recebem subsídios do estado e indiretamente cobram da população que recebe sua água em favores políticos.
Hoje, a Paraíba tem 17 açudes completamente secos e 42 com menos de 10% do volume de abastecimento (de 124 totais); o Rio Grande do Norte tem dois açudes completamente secos e quatro abaixo do limite de 10% (de onze totais), e o Ceará nove secos, e 82 com volume a menos de 10% (de 139 totais). Isso significa que milhares de pessoas estão, efetivamente, bebendo lama. O pouco de abastecimento que ainda persiste é distribuído pelo sertão através de grandes adutoras, executadas da forma mais cara e menos eficiente possível, e que privilegiam o abastecimento do agronegócio, da mineração e da carcinicultura (criação de camarão).
Governo federal alimenta a indústria da seca
As políticas do governo federal, por sua vez, alimentam a manutenção dessa indústria. Sem o desmantelamento das oligarquias políticas que sustentam a privatização da água localmente, não há como recuperar o semiárido; mas sem políticas sérias de proteção ambiental, de reforma agrária, de aproveitamento das águas da chuva, a tendência é que o semiárido brasileiro desertifique e perca a qualidade de mais chuvoso do mundo. Os propagandeados programas de construção de cisternas são tão parcos que aproveitam somente 4% do potencial de chuvas da região. Democratizar o acesso à agua não é prioridade em nenhuma das esferas.
Um exemplo alarmante é o da cidade de Santa Cruz/RN, fortemente afetada pela crise de abastecimento no Seridó, em que estão sendo alocados cerca de 12 milhões de reais (previstos) de recursos federais para a implementação de um teleférico num complexo de turismo em torno de uma estátua da figura de Santa Rita de Cássia. Numa cidade com porte de 40 mil habitantes e sem água mesmo em suas regiões mais nobres, o turismo religioso recebe gordos subsídios federais.
Além disso, a região nordeste mantem-se como uma das que tem menor acesso a serviços de saneamento básico e água encanada, mesmo em centros urbanos importantes. Segundo levantamento feito em 2014, em Salvador, 20% da população não tem acesso a esses serviços; já em João Pessoa há saneamento básico para apenas 49% da população, em Fortaleza, para 47%, em Maceió, para 39%, e em Natal, para somente 37% da população. Essas populações não estão isentas dos aumentos abusivos nas taxas de água e esgoto, mesmo que até as capitais dos estados dependam em grande medida de fossas sépticas construídas independentemente nos seus quintais.
Um real investido na água poupa quatro na saúde
A cada um real gasto em saneamento básico são economizados cinco reais nos gastos em saúde pública; isso pode ser extrapolado para construção de cisternas, descontaminação de rios e açudes, ou reflorestamento da caatinga.
O colapso hídrico no nordeste não é iminente: é fato dado, e seu impacto reverbera até a costa, com maior concentração urbana. A seca esvazia as áreas rurais – onde o agronegócio mantém complexos sistemas de irrigação; os grandes centros urbanos tampouco podem fornecer água limpa ou tratada para sua população – e, como é o caso de Fortaleza e da termelétrica do Pecem, às vezes tem também seu abastecimento desviado para alimentar a indústria e o agronegócio que já secaram os açudes do interior.
Falar na população do nordeste é falar de 55 milhões de pessoas, 22 milhões situadas na região de semiárido. É falar de uma região que abriga 11% da população, mas 58% da população mais pobre do país. É pensar nas vidas de milhões de trabalhadores rurais, na garantia da sobrevivência de diversos povos, povoados, e comunidades tradicionais da região.
Outro projeto de mundo
Com suas características particulares, a transformação do ciclo diferenciado de chuvas de uma região numa indústria da seca, que lucra com a sede de muitos, é também produto de um sistema que explora, monetariza e transforma vida em mercadoria. Discutir a privatização da água, no sudeste ou no nordeste, no Brasil, na Califórnia ou na Irlanda, é discutir o rompimento com o capitalismo, a construção de um novo projeto de mundo.
A estiagem é natural, a indústria da seca não! Pela descontaminação imediata e substituição gradual dos açudes! Pela garantia de aproveitamento do volume de chuvas do semiárido! Pela ampliação e correção dos projetos das grandes adutoras! Pela garantia de saneamento básico para toda a população! Por um plano sério de reflorestamento e uso de energias limpas na caatinga! |