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A amarga herança de Boris Yeltsin (1931-2007)

Por Vladimir Volkov
31 de julio de 2007

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Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês, no dia 26 de abril, 2007.

O primeiro presidente da Rússia pós-soviética, Boris Yeltsin, faleceu aos 23 de abril num hospital de Moscou, vitimado por colapso cardíaco aos 76 anos de idade. Ele passará para a história como um criminoso político de classe mundial.

Yeltsin com o último secretário-geral do Partido Comunista, Mikhail Gorbatchev, e os líderes burocratas soviéticos de seu tempo desempenharam um papel um papel instrumental numa das maiores catástrofes do século vinte - a dissolução da União Soviética em 1991.

Este evento teve conseqüências catastróficas não apenas para os povos da antiga União Soviética, que por duas décadas tem sofrido devastadora pobreza, a negação dos direitos democráticos, a humilhação do espetáculo do enriquecimento inacreditável de uma criminosa clique dirigente. E também constituiu um desastre que atinge a classe trabalhadora do mundo inteiro.

O desaparecimento da União Soviética do mapa político mundial desamarrou as mãos predatórias do imperialismo, acima de tudo as dos Estados Unidos. Deu origem a uma explosão militarista de agressão neocolonial, e bárbara luta entre as potências mundiais pelo controle das fontes de recursos naturais. A mais forte expressão deste processo tem sido as guerras no Iraque e no Afeganistão e a ocupação destes paises - onde a vida comum tem se transformada em algo semelhante ao inferno na terra.

O escalonamento da violência geopolítica avança de mãos dadas com uma impiedosa ofensiva contra os níveis de vida e direitos democráticos no Ocidente, na Europa central e do Leste, como também na Ásia, na África, na América Latina e nos Estados Unidos, o centro mundial imperialista. Esta onda de reação não tem analogia na história. Ela ameaça a maioria da população do mundo com provações ainda maiores.

A queda da URSS de forma alguma significou o "fim da história", perspectiva fomentada por ideólogos burgueses de que os Estados Unidos agora dominariam os negócios mundiais sem oposição. Na verdade, criou uma situação perigosamente explosiva, dominada por tensões econômicas e políticas similares às existentes às vésperas da I Guerra Mundial.

No início do século XX, as contradições internas do sistema capitalista mundial levaram a uma crise nas relações internacionais e a umassérie de convulsões e perturbações que perdurou por décadas, destruindo as vidas de milhões.

A Revolução Russa de Outubro de 1917, da qual emergiu a União Soviética, foi a resposta histórica do fim do capitalismo. Englobando a perspectiva de progresso social e interesses internacionais da classe trabalhadora, a URSS foi fundada sob a liderança do Partido Bolchevista - cujos dois mais importantes líderes foram Lenine e Trotsky - um trampolim para a renovação de todo o sistema mundial à base da igualdade social e do planejamento democrático da economia.

Todavia, esta perspectiva socialista internacional foi traída pela burocracia soviética, que se desenvolveu no Estado Soviético devido a seu atraso econômico e a seu isolamento político. A burocracia rejeitou a via da revolução internacional no meado da década de 1920 e adotou a teoria reformista reacionária do "socialismo num só país". Foi o início da política de colaboração com o imperialismo e a supressão do movimento revolucionário através do mundo.

Após concentrar as alavancas do poder em suas mãos, a nova aristocracia burocrática dirigente, sob a tutela de Stalin, desencadeou o grande terror na última metade da década de 1930, eliminando fisicamente uma geração inteira de intelectuais socialistas e operários avançados e suprimindo o legado vivo revolucionário do país.

Da década de 1930 à de 1980, a União Soviética permaneceu um Estado de trabalhadores apenas na medida em que as relações da propriedade nacionalizada - criação da Revolução de Outubro de 1917 - continuaram intocadas. Em todos os outros aspectos era um regime burocrático privilegiado, que se dobrava diante da burguesia e profundamente hostil ao espírito, ideais e métodos socialistas.

Yeltsin foi um produto direto desse meio social. Seu conformismo, a limitada natureza de sua visão, a ausência de qualquer luta em busca de um pensamento crítico, sua imensa vaidade, seu aventureirismo e seu menosprezo pelo homem comum, eram precisamente as qualidades cultivadas pela burocracia stalinista necessárias à restauração capitalista.

Nascido no seio de uma família camponesa na cidade aldeia de Butka, nos Urais, Yeltsin começou a vida em relativa pobreza, mudando-se com sua família para Perm, onde seu pai tornou-se operário da construção civil. Anos depois, o próprio Yeltsin passou a trabalhar como engenheiro na construção, abrindo seu caminho no aparato do Partido Comunista em Sverdlovsk (Iekaterinburg) e assumindo a função de funcionário remunerado. Por volta de 1976, ele se tinha tornado primeiro-secretário da organização partidária de Sverdlovsk, posição que assegurou até ascender ao politburo. Em seguida chegou a primeiro-secretário do comitê urbano do CPSU (Moscou) pelas mãos de Gorbatchev.

Desde o momento em que, por volta dos trinta anos de idade, Yeltsin se tornou decano e burocrata do Partido, até sua eleição para Câmara de Deputados do Povo, à altura da perestróica, seguiu fielmente a linha partidária. Na verdade, pelo menos era mais zeloso que todos demais, cantando louvores a Brezhnev e dando ordens para que se destruísse a Casa de Ipat´evski, em Sverdlovsk, onde a família do tzar foi fuzilada.

O historiador russo Vadim Rogovin descreveu esta geração bem mais de uma vez numa série de sete volumes da história soviética intitulada "Havia uma Alternativa?"

Yeltsin estava entre os que sucederam os recrutas de Stalin de 1937, camada burocrática caracterizada por completa ausência de princípios. Os promovidos por Stalin estavam prontos para "submeterem-se com integral obediência, cumprindo as ordens do líder, não lhes dedicando pensamento particular crítico algum que justificassem sua moralidade ou a falta dela". (Konets Oznach Nachalo, Moscou 2006, pg. 368).

Imitando o exemplo, a "geração de cínicos incondicionais" de Yeltsin era preenchida com pessoas "sem o mais leve traço de embaraço ou escrúpulo, foi integralmente corrupta e totalmente indiferente quanto aos ideais que formaram os alicerces morais do país. (Conferência de Vadim Rogovin. "Istoki i Posledstviia Stalinskogo Bolsh´shogo Terrora", 1996).

Rogovin recusou-se a acreditar na "repentina introvisão" de gente como Gorbatchev, Yeltsin e Yakovlev, "que até os 60 anos de idade eram comunistas e então, de súbito, tornaram-se desavergonhados anticomunistas". (Palestra de Vadim Rogovin. "Istoki i Posledstviia Stalinskogo Bol´shogo Terrora", 1996).

Toda essa gente tornou-se adepta do capitalismo porque era serviçal fiel de sua própria camada privilegiada e simplesmente aderiu à mudança de sentimento e de humor desse estamento e cruelmente defendeu seus interesses materiais. A preparação da restauração capitalista na URSS, dirigida por Gorbatchev, não foi produto próprio de sua improvisação pessoal. Constituiu tendência consensual das camadas dirigentes na burocracia soviética, a qual, nos anos 1980s, adotou um rumo definitivo no sentido de sua união com o imperialismo e a destruição dos fundamentos sócio-econômicos da sociedade soviética.

Indiferente às agudas diferenças de opinião que emergiram dentro desta camada - que explodiram nos confrontos armados de agosto de 1991 e no outono de 1993 - as questões em disputa eram meramente de natureza tática. Eles estavam destinados a determinar os mais efetivos meios de realizar os objetivos predatórios da burocracia soviética.

As qualidades cultivadas pela burocracia soviética ajudaram Yeltsin a exercer seu papel como campeão da reação social e política, que ele preencheu desde o momento em que ocupou o cargo de presidente da Rússia, junho de 1990, até sua renúncia em dezembro de 1999.

Todas as tentativas da mídia de glorifica-lo como "democrata" - aquele que trouxe liberdade ao povo russo e o das ex-repúblicas da URSS - nos obituários que têm sido publicados mundo afora fogem inteiramente à realidade. Independente de qualquer atitude crítica que se assuma na história da Rússia pós-soviética, cada episódio isoladamente demonstra o caráter destrutivo e antidemocrático das ações tomadas por Yeltsin e aqueles que o rodearam, todos, sem exceção, profundamente hostis aos interesses das massas do povo trabalhador soviético.

Uma das primeiras decisões administrativas de Yeltsin foi a proclamação de independência do Estado em 1990. Esta providência tornou-se a base para o desmembramento da URSS. No início de 1991, o governo russo praticamente cessou de pagar contribuições orçamentárias à União Soviética, provocando iniciativas similares dos dirigentes das demais repúblicas do país.

Esse posicionamento foi reforçado pelo apoio nacionalista e pelas tendências separatistas das repúblicas do país e de outras regiões. O slogan de Yeltsin, "assumam tanta soberania quanto puderem digerir", apela para os mais vis dos preconceitos em patente oposição à vontade dos cidadãos soviéticos, que queria se preservasse a União conforme expressava o referendo de março de 1991 sobre o matéria.

O golpe de agosto e a ascensão de Yeltsin

Em agosto do mesmo ano, uma parcela da burocracia stalinista, apoiada por setores militares e a KGB, desencadeou abortada tentativa de golpe contra Gorbatchev, presidente do Soviete Supremo, evento que criou as condições para a ascensão de Yeltsin na ex-URSS. O chamado putsch de agosto, que foi ao colapso dentro de 61 horas, refletiu os temores no interior de algumas seções da burocracia de que Gorbatchev estava perdendo o controle, abrindo perspectivas para a ameaça de um movimento independente da classe operária soviética e, também, as preocupações sobre as divisões do espólio do processo da restauração capitalista em andamento.

Yeltsin, então recém-eleito presidente da Federação Russa, aproveitou o episódio para impulsionar seu próprio domínio político, opondo-se ao golpe de cima de um tanque e recebendo aplausos do Ocidente. Explorando o vigoroso movimento antiburocrático de baixo para cima, ele se preparou para tomar as alavancas do poder da liderança de Gorbatchev e lançou sua própria forma de contra-golpe, banindo o Partido Comunista. Quatro meses após, a União Soviética foi dissolvida, quando Yeltsin se juntou aos presidentes da Ucrânia e da Bielorússia assinando do "Acordo de Belovezhskii". Enquanto as massas soviéticas tinham antecipado a solução de seus problemas sociais, a abolição da URSS abriu o caminho para a "terapia do choque", significando miséria para milhões. Foi a traição final da burocracia soviética.

Nem a decisão de dissolver a URSS nem o programa de restauração do capitalismo foram debatidas ou democraticamente aprovadas, quer por referendum popular quer pelo parlamento da Rússia. Estas decisões, implementadas às costas da população e impostas com o apoio do mundo imperialista, destruíram o padrão de vida das massas, conduziram ao colapso da base industrial do país e gerou um número infindo de conflitos nacionais arruinando as vidas de dezenas de milhões no espaço pós-soviético.

Ao final de exatamente dois anos de sua postura sobre um tanque de guerra para defender o edifício do parlamento russo contra o putsch de agosto de 1991, Yeltsin deu ordens em outubro de 1993 para que se bombardeasse o mesmo edifício após legisladores resistirem a sua tentativa unilateral de reescrever a constituição e dissolver o parlamento. Centenas foram mortos sob barragem e fogo de tanques. Tais foram os métodos "democráticos" de Boris Yeltsin.

No remate destes eventos, nova constituição foi imposta concedendo ao presidente prerrogativas quase ilimitadas e transformando o parlamento num órgão em larga medida decorativo.

No meado da década de 1990, uma privatização total e irrestrita foi efetuada, no decurso da qual partes mais lucrativas da indústria foram transferidas, por meio de esquemas simulados, para as mãos de oligarcas por praticamente nada. De acordo com uma estimativa, aproximadamente por um total de sete bilhões de dólares.

O roubo da propriedade estatal continua sendo o alvo central do ódio das populações russas em relação a seus dirigentes. A apropriação em bloco das riquezas sociais significou um desastre para as massas populares.

Pensões e salários deixaram de ser pagos, a miséria, os sem lares e famintos aumentaram vertiginosamente. No decorrer dos anos 1990s, o PIB da Rússia caiu pela metade, integralmente 30% da população precipitou-se na pobreza, o índice de mortalidade aumentou por volta de 50% e a expectativa de vida para os homens decresceu seis anos.

Enquanto milhões ingressavam na miséria e fabulosas riquezas passavam para as mãos de um bando de criminosos de alto coturno que o governo de Yeltsin gerara e por sua vez o apoiava. Nessas circunstâncias, conforme relato da revista Forbes, surgiram 60 bilionários russos, sem mencionar dezenas de milhares de novos milionários.

Em dezembro de 1994, o regime de Yeltsin iniciou a primeira guerra de Tchetchênia levando a república do nordeste do Cáucaso à ruína e criando uma atmosfera de ilegalidades e domínio através de uma violência nua e crua.

Ao mesmo tempo a criminalidade e a corrupção floresciam na Rússia. Um escândalo que ocorreu à época da campanha da reeleição de Yeltsin em 1996 tornou-se emblemático. Num dado momento, dois altos funcionários do escritório pré-eleitoral de Yeltsin foram apanhados com 500 milhões de dólares em dinheiro vivo retirados de um edifício governamental. Outro escândalo similar, o caso do "Banco de Nova Iorque", aconteceu três anos mais tarde quando se divulgou que bilhões de dólares tinham sido escondidos numa conta de um banco ocidental como parte de um esquema de lavagem de dinheiro com o objetivo de simular receitas de oligarcas russos, sob a proteção de burocratas eminentes desfrutando da participação de homens de negócio ocidentais.

O período final da administração de Yeltsin foi dominado pela crise financeira de agosto de 1998. O colapso do rublo, que perdeu 70% de seu valor no correr de um mês, significou outro abalo para o nível de vida da população. A queda do rublo veio acompanhada pelo desencadear da segunda guerra da Tchetchênia. Paralelo a isto, o previamente desconhecido ex-funcionário da KGB, Vladimir Putin, foi elevado ao papel de sucessor de Yeltsin.

Contrário às louvaminhas da mídia, Putin não foi o "grande erro" de Yeltsin. Sua indicação situava-se integralmente na lógica da restauração do capitalismo. A nova elite dominante não quis perder as riquezas roubadas. À medida que as reformas continuavam, o nível de desigualdade social se aprofundava. Tal fato fez surgir a necessidade do "fortalecimento do Estado" isto é, o aparato repressivo - e até mesmo maiores restrições dos enfeites da governança democrática.

Yeltsin sancionou a jogada integralmente, e Putin desempenhou o papel arquitetado pelo Kremlin.A Rússia de Putin não foi a negação da Rússia de Yeltsin, mas na verdade sua continuação lógica.

Não é acidental que Yeltsin, com a renúncia, jamais tenha feito críticas sérias à administração de seu sucessor. Em compensação, Putin, em sua breve declaração acerca da morte do primeiro presidente da Rússia, o tenha descrito como um homem dotado de "nobres intenções" que tentou fazer todo o possível "em favor do país e dos milhões de russos".

Essas palavras constituem o cúmulo da hipocrisia, particularmente saindo da boca de alguém que galgou o poder concomitantemente à sangrenta guerra da Tchetchênia, tornando-se o cabeça de um regime policial, burocrático e oligárquico, condenando como "extremista" qualquer um que critique as autoridades ou o comportamento de um ou de outro burocrata.

Expressando total desdém pela sociedade e pela opinião pública, Putin declarou que graças a Yeltsin nasceu "uma nova Rússia democrática - um Estado livre, aberto para o mundo; um Estado em que o que o governo realmente pertence ao povo", no qual este tem "o direito de expressar livremente seu pensamento e livremente escolher seus líderes". Isto exatamente uma semana após a polícia repressora de Putin surrar e prender centenas de pessoas em Moscou e São Petersburgo por ousarem realizar protestos pacíficos contra o governo.

Há um elemento político esquizofrênico na apreciação de Putin, na medida em que ele próprio afirmou que o colapso da URSS foi "a maior catástrofe geopolítica do século XX". Noutro recente discurso, Putin declarou que a década de 1990 foi caracterizada por grandes esperanças de milhões de pessoas, "todavia nem o governo nem os empresários concretizaram estas esperanças".

Uma avaliação mais clarividente da avaliação do passado de Yeltsin foi proferida por Vitalii Tret´iakov, ex-editor-chefe da Nezavisimaia Gazeta e atual dono do semanário Moskosvskii Novosti. Ele escreveu: "na maior parte de seu período de governo, Yeltsin dormiu, ficou bêbedo, esteve doente, não mostrou sua face ao povo e simplesmente nada fez".

"Desdenhado pela maioria dos cidadãos do país", continuou Tret´iakov, "Yeltsin passará à historia como o primeiro presidente da Rússia que corrompeu (o país) ao limite máximo, não devido a suas virtudes ou a seus defeitos, mas particularmente por sua estupidez, seu primitivismo; pela desmedida avidez de poder de um arruaceiro..." (Moskovskiie Novosti, 2006, nº 4-6).

Aplaudido como um democrata e "reformador" por governantes ocidentais, a mídia corporativa, os bilionários e milionários cujas fortunas ajudou a criar, Yeltsin representou em última análise a excrescência produzida pela traição e crimes praticados pelo stalinismo no curso de quase sete décadas.

A maior parte desses crimes foi indubitavelmente a repressão, a destruição sistemática do marxismo genuíno e da consciência socialista, deixando a classe trabalhadora politicamente despreparada para enfrentar e derrotar a catástrofe econômica e social sem precedentes desencadeada pela restauração do capitalismo, a ascensão da clique de ex-burocratas e gangues de negocistas formadores do real eleitorado de Boris Yeltsin.