"Será este outro maio-junho de 1968?" Esta
questão tem sido repetidamente levantada pela mídia
francesa e internacional.
Mesmo antes do último sábado, quando 1,5 milhão
participaram em 160 demonstrações por toda a França
contra a "Lei do primeiro Emprego" (CPE), que foi apresentada
pelo governo Gaullista do primeiro ministro Dominique de Villepin
e pelo presidente Jacques Chira,c a crescente onda de protestos
estava sendo comparada com os eventos de aproximadamente 40 anos
atrás.
Alguns comentadores têm insistentemente defendido uma
posição tranqüilizadora, argumentando que a
situação atual não pode ser comparada com
o final da década de 60. Hoje, dizem eles, os estudantes
não estão clamando pela transformação
da sociedade, como estavam na primavera de 68. Os jovens que tomaram
as ruas nos últimos dias estão, de acordo com esses
"especialistas", apenas procurando se enquadrar na ordem
social existente.
Tais comentários, de um modo geral, evitam a questão
óbvia: o que acontece quando tais aspirações
"não revolucionárias" não podem
ser garantidas pelo sistema capitalista?
Na mídia, outras correntes de críticos dão
a impressão que os eventos de 1968 na França eram
dominados por jovens de classe média radicalizados.
Isso é uma séria distorção da história.
O que começou como um protesto da militância estudantil
se tornou um histórico divisor de águas quando a
classe trabalhadora interveio, demonstrando seu poder e potencial
revolucionário ao lançar uma greve geral que paralisou
a economia por mais de 2 semanas. Os trabalhadores, atuando de
forma amplamente independente e muitas vezes em oposição
aos sindicatos oficiais, ocuparam fábricas chaves na indústria
de base e estabeleceram o que pode ser descrito como um estado
de "dualidade de poder" na economia francesa.
O governo de Charles de Gaulle e a totalidade do Estado capitalista
francês foram sacudidos pela base e por um momento se perguntaram,
transtornados e em pânico: não poderiam ter sido
varridos pela revolução socialista?
Se os eventos atuais na França têm revivido tão
amplamente o fantasma de 68, é porque os eventos daquela
primavera levantaram de forma tão fundamental tanto a sobrevivência
da elite francesa dominante quanto as aspirações
mais profundas da classe trabalhadora.
Uma vez que as lições políticas daquele
episódio continuam críticas para as lutas de hoje,
torna-se fundamental rever o desenrolar dos eventos daquela primavera
de esperanças.
Dos protestos estudantis à greve geral
Em 3 de maio de 1968, quando os estudantes da Sorbonne ocuparam
a universidade, a maioria das lutas já haviam ocorrido.
No dia anterior, a Universidade de Nanterre, num subúrbio
industrial de Paris, fechara. Lá os estudantes vinham boicotando
as aulas há várias semanas, em protesto contra seu
conteúdo reacionário e contra a infiltração
de policiais à paisana pelo campus.
A polícia, usando cassetetes e gás lacrimogêneo,
atacou os estudantes que ocupavam a Sorbonne e realizou prisões
em massa. Essa provocação levou a conflitos de rua,
por vários dias, no Quartier Latin parisiense e a uma onda
de ocupações nas universidades por toda a França.
Os estudantes denunciavam não apenas a brutalidade e
a repressão policial, mas também a guerra do Vietnam
e as políticas imperialistas do governo francês e
americano. O Partido Francês Comunista (PCF) e a Confederação
Geral do Trabalho (CGT), o sindicato que era politicamente dominado
pelo partido stalinista PCF, acusavam os estudantes de aventureiros
e delinqüentes. Até mesmo organizaram manifestações
contrárias e mandaram representantes do movimento da juventude
stalinista para desviar e bloquear as ações estudantis.
Apesar desses esforços dos stalinistas, os chamados
dos estudantes pela "solidariedade entre trabalhadores e
estudantes" tornaram-se mais e mais populares. Grupos de
estudantes se encontravam com trabalhadores nas fábricas
para escrever panfletos e planejar ações conjuntas.
Em 13 de maio, todos os sindicatos com exceção
da CGT (stalinista) chamaram uma greve geral de um dia para protestar
contra as ações policiais. Naquele dia ocorreu a
primeira grande manifestação conjunta de trabalhadores
e estudantes.
Um grupo de trabalhadores da Renault escreveu um panfleto que
dizia: "se queremos aumento salarial e melhores condições
de trabalho, se não queremos ser constantemente ameaçados
pelos patrões, então nós trabalhadores precisamos
lutar por uma transformação estrutural na sociedade
(...) Como trabalhadores, nós devemos nos esforçar
para controlar o curso das nossas ações. Nossas
reivindicações são similares a aquelas dos
estudantes. Tanto a administração da indústria
como a da universidade deveriam ser democraticamente controladas
por aqueles que ali trabalham.".
Na noite de 14 de maio, trabalhadores da fábrica Aviation
Sud começaram uma greve de ocupação. Estudantes
fizeram piquetes demonstrando solidariedade. Em 16 de maio os
trabalhadores da Renault começaram a ocupar a fábrica,
trancando a gerência em seus escritórios. Trabalhadores
na Paris Press organizaram uma greve independente.
O movimento espontâneo de greve se espalhou por mais
fábricas, primeiramente em Paris, e então num movimento
crescente para outras cidades. Uma declaração dos
estudantes que ocupavam a Sorbonne dizia: "camaradas, a fábrica
Aviation Sud, em Nantes, está ocupada há dois dias
pelos estudantes e trabalhadores da cidade. Hoje o movimento se
espalhou por várias fábricas ( NMPP Paris, Renault-Cleon,
etc.). Portanto, o comitê de ocupação da Sorbonne
chama para a ocupação imediata de todas as fábricas
e pela instituição de conselhos operários.
Camaradas, reproduzam e disseminem essa declaração
o mais rápido possível!".
Panfletos publicados conjuntamente por estudantes e trabalhadores
em diversas cidades continham as demandas, "Ocupar as fábricas!
Todo poder aos conselhos! Abolição da sociedade
de classes!".
O PCF stalinista e a CGT reagiram com medo e fizeram tudo o
que podiam para se opor a esse movimento. Em muitas fábricas
a CGT divulgou notas com os dizeres: "Jovens trabalhadores,
estudantes e elementos revolucionários estão tentando
cindir o movimento para nos enfraquecer. Esses extremistas são
apenas os fantoches da burguesia que estão sendo pagos
generosamente pelos empregadores".
Funcionários do Partido Comunista Francês (stalinista)
na União dos Estudantes Comunistas (UEC) tentaram revogar
o chamado para a ocupação das fábricas e
tomaram o sistema público de correios na Sorbonne, o que
levou a confrontos físicos entre os estudantes revolucionários
e os stalinistas.
Apesar da resistência do PCF, as ocupações
de fábrica se espalharam rapidamente. Até 16 maio
cerca de 50 fábricas haviam sido ocupadas. Em 17 de maio,
200 000 trabalhadores entraram em greve, e nos dias que se seguiram,
o movimento se expandiu com a primeira greve geral na história
da França, na qual 11 milhões de trabalhadores se
envolveram e que durou por mais de 2 semanas.
Tendo falhado a tentativa de boicotar o movimento grevista,
a CGT usou todos os meios à sua disposição
para limitar as reivindicações dos trabalhadores
às reivindicações estritamente econômicas
de salário e condições de trabalho. Mas,
as reivindicações dos grevistas pela derrubada do
governo, pela tomada do poder de Estado, e por mudanças
políticas radicais, continuaram sua escalada sempre crescente.
Como o Partido Comunista e a CGT sufocaram
a greve e salvaram o poder da burguesia
Em 24 de maio, o presidente Charles de Gaulle anunciou que
o governo levaria a cabo as reformas educacionais pedidas pelos
estudantes e garantiria um aumento salarial significativo para
os trabalhadores grevistas. O PCF e a CGT celebraram o fato com
uma vitória maciça e reivindicaram que as manifestações
fossem suspensas temporariamente? i.e., até que um acordo
final fosse assinado com o governo.
Três dias depois, a CGT negociou com os representantes
do governo e dos patrões, e fizeram um acordo, que mais
tarde veio a ser conhecido como o "pacto de Grenelee".
De acordo com as notícias da imprensa, a CGT entrou nas
negociações com uma reivindicação
de aumento salarial de 30%, mas os patrões ofereceram 35%
se a CGT acabasse com as greves e ocupações. Um
dos mediadores entre o governo e a CGT era um jovem sub-secretário
no ministério de Relações Públicas
chamado Jacques Chirac.
No dia seguinte, quando o secretário geral da CGT Georges
Séguy delineou um compromisso com os trabalhadores da Renault
na fábrica principal em Boulogne Billancourt e convocou-os
à retomada do trabalho, ele foi vaiado pelos grevistas.
Em outras empresas a greve foi mantida, levando, no final de maio,
a uma redução na produção de combustíveis.
A infra-estrutura do país foi largamente paralisada
ou estava sob controle operário. Em Paris, por exemplo,
pedidos por suprimento de energia tinham de ser negociados com
um comitê de trabalhadores na Companhia Elétrica
Estatal.
No mais alto sigilo, o presidente de Gaulle voou de helicóptero
para Baden-Baden na Alemanha, onde as tropas francesas estavam
plantadas. Mais tarde foi relatado que oficiais de alguns ministérios
haviam começado a rasgar documentos importantes.
Em 27 de maio o Comitê Central do PCF lançou uma
declaração que denunciava expressamente aqueles
que descreviam a situação como "revolucionária".
A declaração pedia sobriedade e advertia que a lei
e a ordem poderiam ser melhor restabelecidas se a Assembléia
Nacional (Parlamento) fosse dissolvida e fossem realizadas novas
eleições.
Depois que de Gaulle foi convencido de que o Partido Comunista
se opunha à revolução, ele retornou à
França. Numa comunicação por rádio,
ele acatou a reivindicação do PCF por novas eleições
e anunciou a dissolução da assembléia nacional,
chamando um plebiscito para 23 de junho. No mesmo momento, ele
reafirmou sua autoridade como uma garantia do poder de Estado.
Ele pediu que os trabalhadores voltassem ao trabalho, e ameaçou
impor um estado de emergência que lhe conferiria autoridade
para colocar as forças armadas contra os grevistas.
No mesmo momento, uma intensa campanha da mídia foi
lançada contra os estudantes e grevistas. Em 30 de maio,
cerca de 1 milhão de conservadores, opostos à greve
geral, marcharam através de Paris. O Partido Comunista,
bloqueando o esforço pela deposição do governo
gaullista e opondo-se à mobilização política
da classe trabalhadora por um governo dos trabalhadores, entregou
a direção do movimento às forças da
direita.
Uma ocupação após a outra foi terminando,
e onde os trabalhadores se recusavam a por fim à sua ação,
eles eram violentamente removidos pela polícia. Ações
similares ocorreram contra a maioria das ocupações
universitárias. No entanto, foi apenas após 18 de
junhoo dia que os trabalhadores da Renault voltaram ao trabalhoque
a greve acabou em definitivo.
A seguir, tanto as universidades como as fábricas enfrentaram
uma intensa onda repressiva. Algumas organizações
políticas socialistas de esquerda que havia desempenhado
um papel importante na greve, incluindo a então trotsquista
Organização Comunista Internacionalista (OCI), foram
banidas.
A liderança stalinista do PCF se orgulhou de seu papel
na defesa da sociedade burguesa na França. "Eu reforço
que foi, acima de tudo, a calma e a ação decisiva
do Partido Comunista que preveniu uma aventura sangrenta em nosso
país", declarou Waldeck Rochet, que havia assumido
a chefia do PCF em 1964, após a morte de Maurice Thorez.
Garantindo as eleições parlamentares, os gaullistas
foram capazes de aumentar sua maioria, controlando 358 das 487
cadeiras. A influência do PCF nas fábricas diminuiu,
já que vários trabalhadores viraram suas costas
ao partido? um processo que se acelerou quando os tanques soviéticos
invadiram a Tchecoslováquia naquele verão.
Lições políticas
A greve geral que durou semanas e a onda de ocupações
de fábrica anunciavam que os elementos-chave da sociedade
estavam nas mãos dos trabalhadores. A instauração
de um governo dos trabalhadores e a transformação
revolucionária da sociedade estavam por ser alcançadas.
A amplitude da ação revolucionária ficou
evidente a partir do momento em que a greve geral teve conseqüências
para além das fronteiras da França. Ela marcava
o início de sete anos de levantes sociais por toda a Europa.
Um ano depois, na Alemanha, desenvolve-se um grande movimento
grevista e um Social Democrata, Willy Brandt, é eleito
chanceler pela primeira vez. Governos fascistas foram derrubados
em Portugal e na Espanha, juntamente com a ditadura militar na
Grécia. Na Grã Bretanha, uma greve de mineiros derrubou
o Governo Tory de Edward Heath, e nos Estados Unidos, o Presidente
Richard Nixon foi obrigado a renunciar. Na França, a greve
geral deu início ao fim do governo do General de Gaulle.
Em abril de 1969, o presidente francês renunciou ao mandato
após uma derrota no referendo.
Em 1970, François Mitterrand criou um novo mecanismo
político para estabilizar a dominação capitalista
e substituir os Gaullistas, quando necessário, por um governo
burguês de "esquerda". Esse mecanismo chamado
"União da Esquerda" era uma aliança eleitoral
entre o Partido Socialista, o Partido Comunista e o burguês
Partido Radical.
Após a eleição de Mitterand para presidente
em 1981, o Partido Comunista entrou no governo do Primeiro Ministro
Pierre Mauroy do Partido Socialista, nomeando três ministros
(Serviço Público, Transportes e Saúde) e
portanto dividindo a responsabilidade nos cortes sociais e medidas
severas que se seguiram.
É impossível compreender os atuais ataques implementados
pelo governo gaulista sem compreender o papel assumido pelo PCF
e pela CGT. Todos os ataques aos padrões sociais, condições
de trabalho e salários, que mais uma vez levam milhões
de pessoas a saírem às ruas, foram conduzidos em
estreita cooperação com a CGT e os demais sindicatos
franceses.
Os protestos dos sindicatos na atual situação
são todos limitados, direcionados no sentido de que o CPE
está sendo levado a cabo pelo governo de Villepin sem consultá-los.
Sua reivindicação é apenas de que o governo
consulte os sindicatos nas questões de política
social, para que assim a oposição da classe trabalhadora
possa estar melhor sob o seu controle.
Após a greve geral de 1968, a elite dominante francesa
foi forçada a realizar concessões sociais. Hoje,
no entanto, em face à globalização da produção
e a competição mundial pelo trabalho mais barato,
governos burgueses em toda a parte são levados a retirar
antigas concessões e reduzir radicalmente os níveis
de vida da classe trabalhadora.
A afirmação de que a situação hoje
é menos revolucionária que em 1968, uma vez que
os estudantes não estão chamando a revolução
social é baseada em uma apreciação altamente
superficial e unilateral dos acontecimentos. É inegável
que na escala de massas, houve nesse meio tempo, um declínio
na consciência social e política, principalmente
como conseqüência de décadas de traições
pelos velhos e burocráticos partidos dos trabalhadores
e sindicatos. Mas em um sentido mais objetivo, fundamentalmente,
a crise da sociedade burguesa na França, na Europa e internacionalmente,
é muito mais profunda que em 1968.
O capitalismo hoje é comandado abertamente pela direção
de uma pequena elite privilegiada, voltada apenas para o seu próprio
lucro e seu auto-enriquecimento. Não há lugar para
a vasta maioria da juventude, exceto como objeto de extrema exploração
ou exército de reserva na massa de desempregados. O sistema
não tem mais nem a capacidade que tinha há 40 anos
atrás para responder às mais elementares reivindicações
da juventude e dos trabalhadores. Assim, até mesmo as reivindicações
mais "reformistas" carregam implicações
revolucionárias.
Alguns analistas políticos percebem o potencial revolucionário
da atual crise. Serge Faubert, por exemplo, escreveu em 20 de
Março no France Soir: "Não confundam.
O que começou como uma imitação de Maio de
68 parece ser mil vezes mais revolucionária. De fato, a
atual crise é uma exata inversão. Em 68 tudo era
possível na França onde havia trabalho para todos,
mas nada era permitido. Hoje tudo é permitido para aqueles
que têm dinheiro, um bom trabalho, mas nada é possível
para a grande maioria de nossos co-cidadãos."
É impossível, no entanto, discutir o potencial
revolucionário da atual situação na França,
Europa ou qualquer outro lugar desvinculado da questão
crucial do fator "subjetivo" i.e., a direção
da classe trabalhadora e a perspectiva política que direciona
as lutas da classe. A ausência de um partido revolucionário
socialista que defenda os interesses da classe trabalhadora dão
à elite dominante francesa uma grande vantagem política,
apesar da coragem e militância dos trabalhadores e da juventude.
Agindo a partir dessas condições com o Partido Socialista,
o Partido Comunista e os sindicatosparticularmente complementados
pelos seus aliados da chamada "ultra esquerda", tais
como a Liga Comunista Revolucionária (LCR) e Luta Operária
(LO)a burguesia tem muitos meios para desarmar politicamente
e desorientar as massas.
A questão crucial que aparece a partir dos acontecimentos
na França hoje, assim como em 1968, é a necessidade
de construir um partido socialista e internacionalista da classe
trabalhadora. Essa é a luta travada pelo Comitê Internacional
da Quarta Internacional e sua publicação internacional,
o World Socialist Web Site.