Petição pela restituição da nacionalidade portuguesa aos judeus sefarditas portugueses

Os judeus sefarditas foram expulsos de Portugal ou forçados ao exílio a partir das perseguições de finais do século XV, continuando a considerar-se e a referir-se a si mesmos como “judeus portugueses” ou “judeus da Nação portuguesa”.

Presentemente, constituem um grupo pequeno, tendo alguns membros cidadania israelita, sendo que a maioria vive no Brasil na maior parte do tempo e correspondendo quase todos a indivíduos com educação de nível superior, em geral profissionais liberais e que, na maioria, falam mais do que o português.

Há muitos judeus sefarditas que aspiram a recuperar a nacionalidade portuguesa, de que se encontram privados mercê da expulsão e/ou exílio forçado dos seus antepassados.

A Espanha – que fez expulsões similares às ocorridas em Portugal – já adoptou legislação, desde 1982, que permite a naturalização dos judeus sefarditas de origem espanhola ao fim de dois anos de residência em Espanha, à semelhança da norma aplicável a um conjunto limitidado de origens específicas. E, em 2008, adoptou a possibilidade por “carta de natureza” e atribuiu a nacionalidade espanhola, independentemente de residência, a judeus sefarditas, mercê unicamente de um conjunto de indicadores objectivos (apelidos, idioma familiar) e competente certificação pelo rabino da comunidade.

Os judeus sefarditas interessados em recuperar a nacionalidade portuguesa sublinham que outros países, como a Grécia, já adoptaram legislação de reaquisição de nacionalidade por judeus expulsos e seus descendentes e que a própria Alemanha o fez, face à tragédia mais recente.

Portugal é dos poucos países, senão o único, que não dispõe de normas para reaquisição de nacionalidade pelos descendentes de judeus expulsos.

Assim sendo, nós, cidadãos portugueses, através dos signatários desta petição, vimos solicitar perante os Poderes constituídos da República Portuguesa , a restituição da nacionalidade portuguesa aos judeus sefarditas portugueses.

Clique aqui para assinar a petição


O pintor Baruch Lopes de Leão Laguna, judeu de ascendência portuguesa, considerado um dos mais representativos retratistas dos finais do século XIX e da primeira metade do século XX, foi assassinado pelos nazis em Auschwitz, a 19 de Novembro de 1943. A nacionalidade portuguesa podia ter-lhe salvo a vida.

::A LER:: Um pintor “português” morto em Auschwitz / Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto

Um mundo (novo) à nossa espera

Já aqui falei da sua prosa; já mostrei a sua pintura (também aqui); e até a sua poesia. Agora, gostava de recomendar o novíssimo blog do meu querido amigo Francisco Duarte Azevedo: sob o título O Mundo à Nossa Espera, é um espaço exactamente igual ao seu autor — bom, generoso, erudito, sem pretensiosismo, e imensamente agradável. Vale a pena passar por lá. E ir voltando. Parabéns pelo blog, Francisco. E obrigado por o escreveres.

A civilização que imaginou Auschwitz

Estudar o nazismo não é a mesma coisa que estudar outro período histórico qualquer. Sem compreendermos este fenómeno nunca poderemos compreender o que foi o século XX. Mais: temos de saber que foi no mesmo país em que nasceu Bach que se imaginou Auschwitz, e que enquanto matavam judeus nos campos ouviam as suas composições para piano e faziam-no em nome da cultura alemã. Auschwitz foi construído em nome da civilização e contra uma suposta barbárie. Os nazis estavam convencidos de que eles é que eram os bons, os “decentes”. Himmler sempre utilizou essa linguagem, pois pedia aos seus homens para aguentarem esse trabalho “tão duro” que era o do assassínio em massa e, ao mesmo tempo, não se deixarem contaminar e manterem a sua “decência”. Auschwitz não foi um acidente, não foi apenas um excesso do nazismo, Auschwitz interroga-nos sobre o carácter da cultura e da modernidade. Auschwitz obriga-nos a pensar que temos de estar sempre conscientes de que a nossa capacidade para mudar o mundo e o poderio que nos dão as tecnologias têm de ser sempre balizados por referências morais muito fortes que evitem que a técnica sem moral conduza ao utilitarismo. Em Auschwitz escondem-se, condensam-se, todas as contradições das nossas sociedades modernas. Até a ideia de progresso, pois um médico como Mengele não se via como um criminoso, mas como alguém que procurava fazer avançar a ciência, que queria perceber as raízes biológicas dos comportamentos humanos e o fazia pelo método experimental.”

Ferran Gallego, historiador e autor do livro ‘Os Homens do Fuhrer: A Elite do Nacional-Socialismo 1919-1945‘ (Esfera dos Livros), em entrevista ao Ípsilon, edição de 12 de Fevereiro de 2010. (Citado por um voo cego a nada, via Mário Pires.)

Ladies and Gentlemen…Mr. Leonard Cohen


“Ladies and Gentlemen…Mr. Leonard Cohen” é um documentário “ïnformal” sobre o poeta, produzido em 1965 sob a chancela do Canada National Film Board. Uma verdadeira preciosidade. Narrado ao estilo da época, nele se descobre, entre outras coisas, que Leonard Cohen também fazia comédia na melhor tradição de stand up. Imperdível.
(via Jewlicious)

Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto


Hoje, quando se assinala o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, e quando passam exactamente 65 anos sobre a libertação do campo de extermínio de Auschwitz, optei por publicar aqui uma carta do embaixador de Portugal em Berlim durante o início da Segunda Guerra Mundial. Como enviado extraordinário e ministro plenipotenciário na capital alemã entre 1933 e 1940, Veiga Simões observou de perto, por um lado, a subida de Hitler ao poder e, por outro, a consequente degradação das condições de vida da população judaica alemã. Nos círculos diplomáticos da capital do Reich, Veiga Simões era conhecido como um “anti-ariano” revoltado pela forma brutal como os nazis tratavam os judeus. Alem de testemunhar a desumanidade nazi face aos judeus, nesta carta o embaixador pede que seja concedida a nacionalidade portuguesa a dois judeus que desempenham as funções de cônsules de Portugal em Frankfurt e Nuremberga, Gustav Mayer-Alberti e Eduard Lindenthal, respectivamente. O texto mostra-nos uma faceta da diplomacia portuguesa desta época que é ainda muito pouco conhecida fora dos círculos académicos portugueses.

Confidencial.

Berlim, 14 de Setembro de 1938

Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros,

Excelência

Os recentes diplomas publicados por este Governo no prosseguimento da sua incansável perseguição aos judeus, contêm disposições que lhes vêm criar uma situação que para a grande maioria será completamente insustentável. Não se lhe encontra, por mais que se procure, uma solução para a simples manutenção diária dos milhares de israelitas que ainda se encontram neste país. Aos médicos passa a ser proibido exercer clínica, mesmo livre, e foram-lhes já denunciados todos os contratos de arrendamento dos seus consultórios para o fim do corrente mês. Aos comerciantes, a arianização progressiva de todos os ramos comerciais, mesmo os retalhistas, vai-os despojando de todos os seus haveres e coarctando-lhes toda a possibilidade de actividade. Eram estas as duas classes que, entre os judeus, ainda até agora iam podendo suportar, embora mal, a situação que lhes haviam deixado. Até isso vai acabar e, como medida final e vexatória, acaba de ser imposto a todos os judeus que não tenham já um nome constante duma lista oficialmente publicada – e que segundo corre foi elaborada com o propósito de abranger o menor número – acrescentar ao seu próprio nome e usar em todos os actos da sua vida social e particular, a partir do dia 1 de Janeiro próximo, e sob penas severíssimas de prisão e multa, o nome “Israel” ou “Sara” conforme o sexo.

O conjunto destas medidas vem atingir alguns cônsules de Portugal neste país que não posso precisar quais sejam na totalidade – talvez uns quatro – mas de que desejo destacar dois que me parecem os únicos inteiramente merecedores da atenção do Governo Português: os cônsules em Francoforte e Nuremberga, Srs. Gustav Mayer-Alberti e Eduard Lindenthal. Trata-se de dois velhos funcionários consulares – o primeiro tem 83 anos e é Cônsul de Portugal há 42 e o segundo é-o há mais de 20 anos – que têm sempre demonstrado pelo serviço e pelo nosso País uma dedicação perfeita, prestando por vezes a esta Legação serviços altamente importantes quer em matéria informativa quer noutras de que os haja encarregado, a par duma perfeita execução das suas funções propriamente consulares.

Ambos eles vão ser atingidos pelas últimas disposições legais do Reich sobre judeus e a situação em que vão encontrar-se virá a ser dentro em muitos poucos meses, totalmente insustentável. E chega-me agora, particularmente mas de fonte diplomática, a informação de que brevemente o Governo do Reich vai solicitar de todos os Governos a substituição dos seus cônsules de raça judaica.

Estas circunstâncias parecem-me oferecer a oportunidade para o Governo Português olhar humanamente para esses dois velhos servidores e estender-lhe a sua protecção, pela única forma por que pode prestar-lha: concedendo-lhes a nacionalidade portuguesa. Ambos residiram bastante tempo em Portugal, creio que mais do que o necessário para aquisição do direito de naturalização, ambos falam correctamente a nossa língua e de ambos o Estado tem recebido os mais valiosos serviços que podiam prestar-lhe dentro da sua esfera de acção.

Estas considerações de justiça humana levam-me a fazer a V. Exa. a proposta concreta de concessão da nacionalidade portuguesa aos dois funcionários mencionados, com dispensa de quaisquer formalidades não essenciais. E constando-me que por razões relacionadas com a guerra em Espanha e durante a sua duração está suspensa a concessão de patentes de nacionalidade, devo esclarecer V. Exa. que, no caso sujeito, uma demora de alguns meses inutilizará por completo uma eventual resolução favorável, pois em muito curto prazo a nova legislação alemã terá atingido os dois cônsules com todos os seus efeitos.

Se V. Exa. se dignar concordar com esta proposta, posso assegurar-lhe que terá praticado um acto de nobre humanidade, digno de um Estado que não esquece nem abandona os seus velhos e leais servidores, e que é ao mesmo tempo a única recompensa que pode ser atribuída aos dois Cônsules, inteiramente dignos dela a todos os títulos.

A Bem da Nação
Veiga Simões

A carta, sabe-se hoje, foi arquivada sem segundas considerações ou ponderações — um destino frequente dado às comunicações no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na verdade, e além das simpatias políticas, o Estado Novo tinha uma política oficial de “não interferência” nas questões da Guerra que se estendia ao auxilio humanitário a refugiados. “Portugal não tem razões de ordem política ou rácica que o levem a ocupar-se deste problema que nos seus territórios não existe, mas nos quais por isso mesmo, não está disposto a fazê-lo nascer”, escrevia-se num ofício do Ministério dos Negócios Estrangeiros datado de 1939. O “judeu estrangeiro” foi declarado “moral e politicamente indesejável” pela então Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), procurando ao máximo restringir a entrada destes em Portugal. Ainda assim, alguns refugiados judeus conseguiram socorre-se de Portugal como plataforma para escapar à Europa, maioritariamente para os EUA, para o Brasil ou para a Argentina. (Sobre eles aconselho o filme notável de Daniel Blaufuks, Under Strange Skies / Sob Céus Estranhos) Ainda assim, e com o desincentivo oficioso do Governo português, um número muito reduzido fixou-se em Portugal.
Numa entrevista recente publicada na Ipsilon e conduzida por José Manuel Fernandes, o historiador alemão Carsten L. Wilke afirma: “Portugal, quando Hitler já estava no poder, teria podido salvar milhares de judeus descendentes dos que tinham partido séculos antes, mas Salazar nada fez e as comunidades que existiam em Bordéus, em Amesterdão ou em Salónica, por exemplo, foram completamente destruídas.”
O caso dos judeus de ascendência portuguesa, citado por Wilke, é paradigmático. Em vez de optar pela simples tarefa de facilitar o processo de naturalização de judeus holandeses, franceses e alemães cujos nomes de família (Nunes, Costa, Ricardo, Mesquita, Leão de Laguna, Lopes Cardoso, etc.) deixavam muito poucas dúvidas quanto à sua origem ancestral, o regime decidiu virar-lhes as costas e dificultar-lhes até a simples tarefa de obter um visto de trânsito, selando o seu destino nos campos de extermínio nazis. A 23 de Abril de 1940, por exemplo, os cônsules portugueses na Holanda eram avisados para que, quando lhes fossem solicitados vistos de entrada em Portugal, averiguassem escrupulosamente se os requerentes eram judeus, sendo que “nenhum visto em passaportes judeus poderia ser concedido sem autorização do MNE”, que respondia assim à exigência da PVDE de “evitar a entrada em Portugal de indivíduos dessa qualidade”. É sobre este pano de fundo que sobressaem os nomes de diplomatas portugueses como Aristides de Sousa Mendes, Carlos Sampaio Garrido e Alberto Teixeira Branquinho, cujos gestos de coragem conseguiram resgatar a vergonhosa cumplicidade imobilista e a cobardia que nortearam os destinos diplomáticos de Portugal durante o Holocausto.


António de Oliveira Salazar: o ditador sentado à secretária, onde pontifica uma foto autografada de Mussolini, o aliado principal de Hitler. Foto de Bernard Hoffman (Life Magazine, EUA).


Crianças da mocidade portuguesa fazem a saudação nazi. Foto de Bernard Hoffman (Life Magazine, EUA).

A carta do embaixador Veiga Simões acima reproduzida encontra-se no livro Correspondência de um Diplomata do 3º Reich, organizado por Lina Madeira, e é transcrita integralmente também em Breve História dos Judeus em Portugal, de Jorge Martins — um pequeno volume que se assume como uma introdução fundamental para quem queira compreender o papel dos judeus portugueses na construção da nossa História.

Shoah

Em Memória das Vítimas do Holocausto

Hanuká: Dez Livros para Oito Dias

Numa altura em que se fazem e consultam listas de presentes, a Rua da Judiaria sugere aqui uma lista de dez livros, para tornar as festas verdadeiramente felizes. Tal como em todas as listas, muitos ficaram de fora — especialmente porque, devido ao carácter específico do blog, o crivo regeu-se por três critérios fundamentais: os livros desta lista teriam de publicados em 2009, escritos por autores judeus ou ser, eles próprios, sobre temas judaicos. Vamos então à lista. A ordem é puramente arbitrária.

O Mar em Casablanca, Francisco José Viegas
O novo romance de Francisco José Viegas, vencedor do Grande Prémio de Romance e Novela da APE, 2005, com a obra Longe de Manaus.
O que une um cadáver encontrado nos bosques que rodeiam o belo Palace do Vidago e um homicídio no cenário deslumbrante do Douro? O que une ambos os crimes às recordações tumultuosas dos acontecimentos de Maio de 1977 em Angola? Jaime Ramos, o detective dos anteriores romances de Francisco José Viegas, regressa para uma nova investigação onde reencontra a sua própria biografia, as recordações do seu passado na guerra colonial - e uma personagem que o persegue como uma sombra, um português repartido por todos os continentes e cuja identidade se mistura com o da memória portuguesa do último século.
História de uma melancolia e de uma perdição, O Mar em Casablanca retoma o modelo das histórias policiais para nos inquietar com uma das personagens mais emblemáticas do romance português de hoje.

Breve História dos Judeus em Portugal, Jorge Martins
Já se publicaram algumas histórias dos judeus portugueses, todas elas de acentuado cariz académico, mas faltava uma obra de conjunto, actualizada e acessível ao grande público, destinada, particularmente, aos professores e aos estudantes, complementando ou suprindo as omissões dos nossos programas escolares. Sem escamotear o facto de que os estudos académicos são, por vezes, de difícil acesso aos leitores não especializados, sabemos que há apetência natural pelo conhecimento. Por outro lado, os estudantes, particularmente os universitários, necessitam de abordagens iniciáticas para se envolverem nas temáticas historiográficas. É este o objectivo de Breve História dos Judeus em Portugal, que vem demonstrar, a todos os leitores, que os judeus portugueses têm uma história para contar que faz parte da própria História de Portugal.
(Sobre a Breve História dos Judeus em Portugal irei publicar em breve uma recensão, dando-lhe o destaque que esta obra merece.)

Os Anagramas de Varsóvia, Richard Zimler
Um romance policial arrepiante e soberbamente escrito passado no gueto judaico de Varsóvia. Narrado por um homem que por todas as razões devia estar morto e que pode estar a mentir sobre a sua identidade… No Outono de 1940, os nazis encerraram quatrocentos mil judeus numa pequena área da capital da Polónia, criando uma ilha urbana cortada do mundo exterior. Erik Cohen, um velho psiquiatra, é forçado a mudar-se para um minúsculo apartamento com a sobrinha e o seu adorado sobrinho-neto de nove anos, Adam.
Num dia de frio cortante, Adam desaparece. Na manhã seguinte, o seu corpo é descoberto na vedação de arame farpado que rodeia o gueto. Uma das pernas do rapaz foi cortada e um pequeno pedaço de cordel deixado na sua boca. Por que razão terá o cadáver sido profanado? Erik luta contra a sua raiva avassaladora e o seu desespero jurando descobrir o assassino do sobrinho para vingar a sua morte. Um amigo de infância, Izzy, cuja coragem e sentido de humor impedem Erik de perder a confiança, junta-se-lhe nessa busca perigosa e desesperada. Em breve outro cadáver aparece - desta vez o de uma rapariga, a quem foi cortada uma das mãos. As provas começam a apontar para um traidor judeu que atrai crianças para a morte. Neste thriller histórico profundamente comovente e sombrio, Erik e Izzy levam o leitor até aos recantos mais proibidos de Varsóvia e aos mais heróicos recantos do coração humano. (Ler excerto aqui: Richard Zimler: Os Anagramas de Varsóvia @ Rua da Judiaria)

Rashi, Elie Wiesel
Para muitos, o rabino Shlomo Yitzhaki (mais conhecido pelo acrónimo “Rashi”) é conhecido pelos seus clássicos comentários ao Talmude. Outros encontraram-no pela primeira vez como o patriarca da popular série de romances históricos Rashi’s Daughters, escritos por Maggie Anton. Mas, no entanto, talvez a melhor apresentação é a que lhe faz o memorialista e Prémio Nobel Elie Wiesel, que em criança ouvira dos seus pais a garantia de que ele era descendente directo do ilustre e venerado estudioso medieval. “Rashi”, a curta biografia que Wiesel agora publica na colecção Jewish Encounters (Schocken), é uma oportunidade para observar a gloriosa vida interior da análise bíblica e da discussão que têm sustentado o povo judeu durante as alturas mais difíceis e para compreender como o judaísmo é definido tanto pelo Talmude como pela Torá, e tanto pelo debate sobre as escrituras como pelas próprias escrituras.

Collected Stories , Isaac Bashevis Singer
Para os leitores anglófonos, os romances e as colecções de Isaac Bashevis Singer não são difíceis de encontrar, mas a melhor forma de conhecer este grande mestre contador de histórias — ou para fazer recordar a magia que Singer é capaz de traduzir para a escrita — é a compacta mas elegante colecção de três volumes da Library of America, Isaac Bashevis Singer: Collected Stories. Galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1978, Isaac Bashevis Singer consegue ser um iídichista, um modernista, um mágico-realista, um cronista e um contador de histórias escabrosas, mas toda a sua prosa brilha com irónica sagacidade e cintila com a certeza clara de uma história bem contada. “O romance de Deus tem suspense”, escreveu Singer uma vez na revista Esquire — tal e qual as histórias ricas e vibrantes do próprio Isaac Bashevis Singer.

Anne Frank: The Book, The Life, The Afterlife, Francine Prose
Dos seis milhões de judeus assassinados no Holocausto o único rosto que conhecemos intimamente pertence a Anne Frank. Mas este é apenas o ponto de partida de Anne Frank: The Book, The Life, The Afterlife escrito pela romancista e ensaísta Francine Prose, um soberbo trabalho de história, biografia e crítica. Francine Prose tem algo de novo e importante a dizer acerca da jovem rapariga cujo diário foi simultaneamente celebrado e explorado, usado e abusado, e a autora rejeita a noção habitual de Anne Frank como “espevitada mensageira adolescente de paz e amor”. Em vez disso, Francine Prose aborda de forma corajosa a identidade judaica de Anne Frank, a sua sexualidade, as posições políticas da sua família e as suas ambições literárias — tudo distorcido, quando não meramente ignorado por todos os que têm usado e abusado do diário para seu proveito próprio. Acima de tudo, Francine Prose permite que olhemos para Anne Frank não apenas como uma vítima de um crime contra a humanidade, mas também como uma jovem escritora com um grande talento.

A Literary Bible, David Rosenberg
Esta não é uma Bíblia qualquer. Na verdade, mais do que uma tradução é um re-imaginar daquilo que o autor chama “o âmago da Bíblia Hebraica”. A linguagem arcaica é omitida, mas a poesia e a prosa que constituem o pulsar da Bíblia recebem uma nova e refrescante leitura. Rosenberg, que escreveu com Harold Bloom o best-seller The Book of J, está apostado em convencer o leitor que a Bíblia é uma obra “subtil e irónica”, escrita por autores de carne e osso que experimentaram os mesmos impulsos que nós sentimos. Assim, por exemplo, quando serve de intermediário ao autor de Eclesiastes, David Rosenberg apresenta-o como um ambicioso escritor (“set to work/in the grand style/building an oeuvre/ten books in five years,”) que acaba por se aperceber que a ambição não é tudo (“we can take in anything/and we are still empty/on the short of the life/our blood flows to”). De uma forma audaciosa, David Rosenberg reformula o livro angular da civilização ocidental numa obra onde o leitor moderno se revê de uma forma inesperada.

The Book of Genesis Illustrated, R. Crumb
Este livro oferece não só o texto completo e integral do primeiro livro da Bíblia, mas também ilustrações de seios nus, nudez a granel e actos vários de violência. “Supervisão adulta recomendada a menores”, é o aviso prévio transmitido pelo rótulo desenhado na capa. Por outras palavras, o livro é absolutamente fiel ao que realmente se pode encontrar nas Escrituras Sagradas. E precisamente por essa razão vai chocar e surpreender muitos leitores desprevenidos. Mas é também um astuto trabalho de exegese visual do célebre artista dos anos 60 que deu ao mundo o Senhor Natural e o Gato Fritz. Um livro inesperado e fascinante.

The Enemy I Knew: German Jews in the Allied Military in World War II, Steven Karras
Até Elie Wiesel, o Prémio Nobel sobrevivente de Auschwitz e Buchenwald, se debateu com a pergunta: Porque não lutaram os judeus contra a barbárie nazi? Finalmente, em virtude das circunstâncias — mesmo hoje, quem acreditaria no que estava a acontecer? —, Elie Wiesel concluiu que a questão não era porque não tinham os judeus combatido, mas sim como tantos o tinham conseguido fazer. “Torturados, espancados e famintos, onde encontraram eles a força — espiritual e física — para resistir?” Na verdade, mas de 10 mil judeus alemães — 34 por cento do total de refugiados com idades entre os 18 e os 40 anos — combateu nos exércitos aliados na Segunda Guerra Mundial. Em The Enemy I Knew: German Jews in the Allied Military in World War II, Steven Karras conta as memórias destes soldados judeus, refugiados da Alemanha e da Áustria que enfrentaram os seus opressores nazis juntando-se às forças aliadas para combater o regime que subjugava os países onde tinham nascido.
Ao longo de 27 entrevistas, Karras dá a conhecer histórias como a de Fritz Weinschenk, um judeu alemão que fugira da Europa em 1933, para voltar a 6 de Junho de 1944 — pela Praia de Omaha, durante a invasão da Normandia.

The Case for God , Karen Armstrong
O ultimo livro da mais famosa historiadora das religiões da actualidade é uma abrangente história da ideia de Deus que refuta best-sellers recém-publicados por famosos ateístas como Christopher Hitchens e Richard Dawkins. Sobre o livro escreveu recentemente Jonathan Kirsch: “Não há ninguém mais qualificado do que Karen Armstrong para entrar no aceso debate público entre crentes e descrentes sobre a existência de Deus. O seu último livro, ansiosamente antecipado e recebido, traz consigo as qualidades que ela imprime a todos os seus trabalhos — The Case for God é lúcido, erudito, provocador e esclarecedor. Na verdade, Armstrong consegue uma vez mais o que ela faz de melhor ao iluminar com uma luz clara os mais profundos mistérios da imaginação religiosa.”

::BONUS:: Duas excelentes entrevistas, conduzidas por Carlos Vaz Marques, a Francisco José Viegas e Richard Zimler, dois judeus magníficos. Para ouvir com muita atenção. Aqui:

Francisco José Viegas conversa sobre O Mar em Casablanca

Richard Zimler conversa sobre Os Anagramas de Varsóvia

Richard Zimler: Os Anagramas de Varsóvia

Os Anagramas de Varsóvia (Um Mistério Cabalístico) é o título do último romance do escritor luso-americano Richard Zimler, lançado recentemente em Portugal. Richard Zimler apresenta-nos um policial bem urdido, com o Gueto de Varsóvia e a singularidade do Holocausto como pano de fundo. Extraordinariamente bem escrita, a narrativa é habilmente desenrolada na primeira pessoa, de uma forma que por vezes chega a fazer lembrar Isaac Bashevis Singer, tanto na fluidez da escrita como na mestria com que são moldadas as suas personagens centrais — Erik, Izzy, Stefa e Adam.
Por tudo isto, Os Anagramas de Varsóvia deve marcar uma presença obrigatória no topo de qualquer lista de presentes…

A Rua da Judiaria publica hoje um excerto do romance, mais concretamente o prefácio, onde a história é introduzida e situada.
A publicação deste excerto no blog deve-se à extraordinária generosidade de Richard Zimler, que acedeu ao convite sem hesitar. Para ele, os meus mais sinceros agradecimentos.

::PARA COMPRAR:: Fnac: Os Anagramas de Varsóvia, Richard Zimler / Os Anagramas de Varsóvia - WOOK

::LER MAIS:: PNETliteratura - Portal e Comunidade de Literatura Portuguesa, Brasileira e Lusófona: Os Anagramas de Varsóvia / Richard Zimler – Entrevista a propósito de “Os Anagramas de Varsóvia” « Porta-Livros / Os Anagramas de Varsóvia - Criticas - Time Out

Os Anagramas de Varsóvia

Prefácio

Desde miúdo que trago um mapa de Varsóvia nas solas dos pés, por isso consegui fazer o caminho quase todo até casa sem qualquer engano ou esforço.
Foi então que vi o alto muro de tijolo à volta da nossa ilha. O coração deu-me um salto no peito, e uma esperança impossível dispersou-me os pensamentos – embora soubesse que a Stefa e o Adam não estariam em casa para me dar as boas-vindas.
Um guarda alemão gordo, de pé, mastigava uma batata fumegante junto ao portão da Rua Swieojerska. Assim que me esgueirei lá para dentro, vi um jovem com um boné de tweed enterrado pela testa abaixo passar por mim a correr. O saco de farinha que levava ao ombro pingava pontos e traços de líquido sobre o seu casaco código Morse escrito com sangue de galinha, calculei.
Homens e mulheres vagueavam pesadamente pelas ruas geladas, esmagando a camada de gelo que as cobria com os sapatos gastos, as mãos enfiadas bem fundo pelos bolsos dos casacos abaixo e nuvens de vapor a fugir-lhes da boca.
Na minha inquietação, quase tropecei num velho que morrera gelado à porta de uma pequena mercearia. Vestia apenas uma camisola interior toda suja, e tinha os joelhos nus e terrivelmente inchados encolhidos contra o peito, numa tentativa de se proteger. Os lábios cobertos de crostas de sangue eram de um cinzento-azulado, mas tinha os olhos debruados a um fio vermelho, o que me deu a impressão de que o último dos seus sentidos a deixar este mundo fora a visão. No átrio de entrada do prédio da Stefa, o papel de parede de cor verde-azeitona descolara-se do estuque e caía às tiras, revelando manchas aveludadas de bolor negro. O apartamento estava gelado; e não havia uma migalha de comida à vista.
Espalhados pela sala, viam-se cuecas, meias e camisas. De homem. Tive a sensação de que a Bina e a mãe já lá não estavam há muito tempo. O sofá, a mesa de jantar e o piano da Stefa tinham desaparecido – talvez vendidos, ou despedaçados para fazer lume. Gravadas na porta do seu quarto estavam as marcas que ela e eu tínhamos feito para marcar a altura do Adam todos os meses. Aproximei devagarinho a ponta dos dedos da marca mais alta, de 15 de Fevereiro de 1941, mas perdi a coragem mesmo no último segundo – não quis arriscar-me a tocar em tudo o que podia ter sido.
Quem quer que fosse que agora dormia no quarto da minha sobrinha, gostava de ler; a minha tradução para polaco de A Midsummer Night’s Dream estava aberta ao contrário no chão, junto à cabeceira da cama. Junto ao livro havia uma caneca de folha, agora vazia, que fora enchida com água do gueto; ao evaporar-se, deixara ficar o depósito amarelado de que eu tão bem me lembrava.
A busca pelo apartamento reavivou a consciência do meu objectivo ali, e tive a esperança de que o mundo voltasse a tocar-me agora, mas quando tentei abrir a porta do guarda-vestidos da Stefa, os meus dedos penetraram na madeira escura como se se enterrassem num barro denso e frio.
Como seria ter nove anos de idade e estar encurralado na nossa ilha esquecida? Uma pista: o Adam costumava acordar sobressaltado durante as nossas primeiras semanas juntos, catapultado dos seus terrores nocturnos, e inclinar-se por cima de mim para agarrar no copo de água que eu sempre deixava sobre a mesa-de-cabeceira. Eu acordava com os movimentos dele e levava-lhe o copo à boca, mas ao princípio não gostava de que ele me perturbasse o sono. Só ao fim de quase um mês juntos é que comecei a adorar senti-lo a remexer-se, e ouvi-lo a dar goles seguidos, sem respirar, e depois, quando voltava a deitar-se, a forma como puxava o meu braço para o enroscar à sua volta. O suave sobe-e-desce do seu peito magro recordava-me tudo aquilo que ainda tinha para agradecer à vida.
Deitado na cama com o meu sobrinho-neto, costumava obrigar-me a permanecer acordado, porque não me parecia justo que um acto tão simples como inspirar pudessemanter o rapazinho no nosso mundo, e precisava de o observar cuidadosamente, de pôr a minha mão em concha sobre aquela cabecita loura e transmitir-lhe assim a minha protecção. Queria que o acto de permanecer vivo dependesse de um processo muito mais complexo. Para ele, e para mim também. Porque, então, morrer seria muito mais difícil para ambos.

Quase todos os meus livros tinham desaparecido das prateleiras que eu próprio fizera – queimados para aquecer a casa, sem dúvida. Mas A Interpretação dos Sonhos, de Freud, e alguns dos meus outros textos de psiquiatria ainda lá estavam. Quem quer que fosse que lá estivesse a viver agora, descobrira provavelmente que a maior parte deles eram primeiras edições, e talvez valessem um bom preço fora do gueto.
O meu olhar pousou sobre o tratado médico alemão no qual enfiara dois matzos de emergência, mas não fiz qualquer tentativa para os recuperar; embora a fome ainda me esfaqueasse as entranhas, já não precisava daquele tipo de sustento.
Ávido pelo consolo de um horizonte longínquo, subi pelas escadas do prédio até ao telhado, e passei cuidadosamente para a plataforma de madeira que os Tarnowski – os nossos vizinhos – tinham construído para observar as estrelas. À minha volta, a cidade erguia-se em espirais, torreões e cúpulas de contos de fadas – uma fantasia de criança transformada em realidade. Dei uma volta completa sobre mim próprio, e senti a ternura invadir-me. Será possível acariciar uma cidade? Ser o rio Vístula, e poder abraçar Varsóvia, deve ser por vezes uma recompensa que ele dá a si próprio.
E, contudo, o bairro da Stefa parecia mais tristonho do que nas minhas recordações – os prédios ainda mais afundados num pântano de degradação, ruína e sujidade, apesar de todos os nossos arames e colas.
Um grito rouco cortou o ar, espantando os meus devaneios. Do outro lado da rua, debruçado de uma janela do quarto andar, um homem de cara chupada e sobretudo esfarrapado acenava-me freneticamente. Tinha as têmporas encovadas, e a barba por fazer punha-lhe uma sombra branca no rosto.
— Ei! – gritou-me. – Você aí, olhe que cai e parte o pescoço!
Vi um reflexo de mim mesmo naqueles ombros encolhidos, naquele olhar de pânico. Ergui a mão, fazendo-lhe sinal que esperasse no sítio onde estava, desci atabalhoadamente do telhado e pelas escadas abaixo, e atravessei a rua, patinhando na lama.
Lá em cima, no seu apartamento, o homem percebeu logo que eu não era como ele. Abriu muito os olhos congestionados de vermelho, espantado, e deu um passo atrás.
— Olá – disse, cauteloso.
— Então…então consegue mesmo ver-me? – gaguejei.
O rosto dele descontraiu-se.
— Perfeitamente. Embora os seus contornos…– Rodou a mão no ar, depois inclinou a cabeça, como quem avalia qualquer coisa. – Não estão lá muito bem, um pouco indefinidos.
— E não tem medo de mim? – perguntei.
— Ná, já tive outras visões. E além disso, você fala iídiche. Porque
é que um ibbur judeu me havia de fazer mal?
— Um ibbur?
— Um ser como você, que regressou da terra que fica atrás da berma do mundo.
Tinha uma maneira poética de falar, o que me agradou. Sorri de alívio; ele conseguia mesmo ver-me e ouvir-me. E senti-me menos preocupado por saber que havia um nome para aquilo que eu era.
— Chamo-me Heniek Corben – disse-me ele.
— Erik Benjamin Cohen – respondi, apresentando-me como fazia quando era miúdo e andava na escola.
— É de Varsóvia? – perguntou.
— Sou, cresci perto do centro da cidade, na Rua Bednarska.
Franzindo os lábios numa expressão cómica, assobiou baixinho.
— Belo bairro! – comentou entusiasmado, mas quando a boca se lhe rasgou num sorriso, vi que era uma ruína de dentes podres.
Interpretando a minha careta como sinal de dor física, Heniek sentou-se.
— Sente-se, sente-se, Reb Yid – disse-me em tom preocupado puxando de um banco, para eu me sentar à mesa da cozinha.
Aquele formalismo parecia um pouco absurdo depois de tudo o que nós, judeus, tínhamos sofrido.
— Por favor, chame-me Erik – pedi-lhe.
Sentei-me em câmara lenta, com receio de não encontrar um assento sólido, mas a madeira do seu banco acolheu generosamente o meu traseiro escanzelado — prova de que já estava a apanhar o jeito a esta vida nova.
Heniek olhou-me de alto a baixo, e a sua expressão tornou-se mais séria.
— O que foi? – perguntei.
— Esbateu-se por um momento. Acho que talvez…– Terminando a frase abruptamente, ergueu a mão nodosa e disforme por sobre a minha cabeça e abençoou-me em hebraico. — Com um pouco de sorte, isto há-de resolver o assunto — disse-me com ar jovial.
Apercebendo-me de que era provavelmente religioso, comentei:
— Não tenho visto qualquer indício de Deus, nem nada que se pareça com um anjo ou um demónio. Nem fantasmas, nem seres necrófagos, nem vampiros…nada. — Não queria que ele me achasse capaz de responder a qualquer das suas perguntas metafísicas.
Fez um gesto com a mão, como quem não quer saber disso.
— Então, o que posso oferecer-lhe? Que tal um chá de urtiga?
— Obrigado, mas descobri que já não preciso de beber nada.
— Importa-se que faça um para mim?
— Por favor.
Enquanto ele fervia a água, fiz-lhe perguntas sobre o que acontecera desde que eu saíra de Varsóvia em Março passado.
Com um suspiro, respondeu:
Ech, basicamente, a mesma velha desgraça. O grande entusiasmo foi durante o Verão, os russos bombardearam-nos. Infelizmente, aqueles pilotos idiotas não acertaram na sede da Gestapo, mas ouvi dizer que a Praça do Teatro ficou reduzida a escombros. – Baixou a voz e inclinou-se para mim. – Mas há uma boa notícia, os Americanos entraram na guerra. Os Japoneses bombardearam-nos há uma semana, segundo a BBC, tenho um amigo que tem um rádio clandestino.
— Porque está a sussurrar?
Apontou para o céu.
— Não quero parecer optimista, Deus ainda nos pode pregar mais umas partidas, se achar que estou a ser arrogante.
Dantes, o espírito supersticioso de Heniek teria provocado em mim um comentário sarcástico, mas era óbvio que, com a morte, me tinha tornado mais paciente.
— Então e onde é que trabalha? – perguntei.
— Numa fábrica de sabão clandestina.
— E hoje está de folga?
— Não, hoje é o Shabbat.
— Em que dia estamos?
— 16 de Dezembro de 1941.
Tinham decorrido sete dias desde que eu saíra do campo de trabalho de Lublin, onde estivera como prisioneiro, mas pelas minhas contas só tinha levado cinco dias a chegar a casa, por isso perdera quarenta e oito horas algures pelo caminho. Talvez o tempo passasse de modo diferente para os da minha laia.
Heniek disse-me que, antes de se mudar para o gueto, era impressor. A mulher e a filha tinham morrido de tuberculose havia um ano.
— Eu até era capaz de aguentar a solidão – disse ele, baixando o olhar para esconder a sua perturbação –, mas o resto é…é mesmo demasiado.
Eu sabia da minha própria experiência que o resto significava culpa, e também emoções mais subtis e confusas, para as quais não tínhamos um nome adequado.
Deixou cair as folhas de urtiga no jarro de cerâmica branca que lhe servia de bule. Depois, erguendo os olhos com um vigor renovado, perguntou pela minha família, e eu disse-lhe que a minha filha Liesel estava em Esmirna.
— Andava a trabalhar numas escavações arqueológicas quando rebentou
a guerra, por isso ficou por lá.
— Já foi visitá-la?
— Não, tinha de vir aqui primeiro. Mas ela está em segurança. A menos que…– pus-me em pé de um salto, aflito. – A Turquia não entrou na guerra, pois não?
— Não, não, ainda é território neutro. Não se preocupe.
Despejou água a ferver sobre as folhas de urtiga num círculo lento e perfeito, e aquela precisão encantou-me. Voltei a sentar-me.
— Desculpe a minha curiosidade, Erik, mas porque voltou para nós? — perguntou.
— Não sei bem. Mas qualquer resposta que lhe desse não faria muito sentido, a menos que lhe contasse o que me aconteceu no gueto; acima de tudo, teria de lhe falar do meu sobrinho.
— E então, o que o impede? Podemos passar o dia inteiro juntos, se quiser.
Surgiu-lhe um brilho maroto nos olhos. Apesar do desgosto e da solidão, Heniek parecia ansioso por uma nova aventura.
— Conto-lhe daqui a pouco – respondi. – O facto de ter conseguido falar consigo…deixou-me enervado.
Heniek fez que sim com a cabeça, compreensivo. Depois de beber o seu chá, sugeriu que fôssemos dar um passeio. Levou um saco de ruibarbo branco para a irmã, que partilhava com mais seis inquilinos um apartamento de duas assoalhadas perto da Grande Sinagoga, e a seguir fomos os dois ouvir o Noel Anbaum a cantar à porta do Teatro Nowy Azazel. O seu acordeão fez-me dançar diante dos olhos um enxame de borboletas rubras e douradas – uma sensação estranha e magnífica, mas a que me tenho vindo a acostumar ultimamente; os meus sentidos fluem agora muitas vezes juntos, como as tintas de um vitral a transbordar dos seus contornos. Será que, no fim, acabarão por se fundir completamente? Irei cair dentro de uma paisagem demasiado rica de som, vista e toque, e sentir-me incapaz de fazer às cegas o caminho de regresso a mim próprio? Talvez seja dessa maneira que a morte irá finalmente apoderar-se de mim.

Heniek, enquanto ouço o zumbido paciente do candeeiro de petróleo pousado entre nós, e observo a dança trémula da sua chama azul, a gratidão que me invade abraça-me, como fez o Adam quando lhe disse que havíamos de visitar Nova Iorque juntos. E o contentamento que sinto por ter conseguido falar consigo segreda-me ao ouvido: apesar de todas as tentativas dos Alemães para refazer o mundo, as leis naturais continuam a existir.
Por isso, tenho de lhe contar a minha história pela ordem certa, senão ainda vou sentir-me tão perdido quanto o Hansel e a Gretel.
E, ao contrário dessas crianças cristãs, não tenho migalhas de pão para marcar o meu caminho de regresso a casa. Porque não tenho casa. Foi isso que me ensinou o regresso à cidade em que nasci.

Primeiro vamos falar de como o Adam desapareceu, e voltou para nós sob forma diferente. E depois, vou contar-lhe como a Stefa me fez acreditar em milagres.

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Fotos da Judiaria


Vale Judeu, Algarve. Foto de Tiago Farrajota.

Rua da Judiaria no Facebook

A Rua da Judiaria conta, já há algum tempo, com uma página no Facebook, facultando assim aos leitores uma plataforma para trocar ideias, colocar questões, partilhar fotos e experiências. O espaço encontra-se aberto a todos os que quiserem e sentirem desejo de participar. É só clicar aqui: Rua da Judiaria no Facebook (se ainda não tem conta no Facebook poderá também criar uma facilmente).
Entretanto, estejam atentos, porque o blog vai voltar a ter actualizações mais frequentes… muito, muito em breve.

Outras Judiarias…

Há algum tempo que ando para partilhar aqui um post fantástico que reconta uma viagem que José Alves, autor do The Sefaradi, empreendeu por algumas Judiarias. Texto e fotos para ler e ver com vagar, aqui: Uma (pequena) viagem pelo judaísmo.

Jorge Drexler: El Pianista del Gueto de Varsovia


Jorge Drexler, músico judeu uruguaio, venceu, em 2004, o Oscar para a melhor canção com Al Otro Lado del Río, do filme The Motorcycle Diaries — a primeira vez que este galardão foi atribuído a uma canção em língua espanhola. Soube agora que ele passou recentemente por Lisboa.
Deixo-vos aqui uma das mais marcantes canções de Jorge Drexler (e uma das minhas preferidas), uma homenagem às suas raízes judaicas: El Pianista del Gueto de Varsovia.

.::PARA OUVIR::.

Jorge Drexler: El Pianista del Gueto de Varsovia

Coronel Richard Kemp fala sobre Israel na ONU


Declarações do Coronel Richard Kemp, ex-comandante britânico das tropas da NATO no Afeganistão, a 16 de Outubro de 2009, perante o Conselho Especial dos Direitos Humanos da ONU, durante a sessão especial de debate do já desacreditado Relatório Goldstone.

Os Judeus Sefarditas de Inglaterra

Foto: The Guardian
Entrada para a Sinagoga Bevis Marks, Londres

Por Mordecai Zvi

De acordo com Alfred A. Zara, da Foundation for the Advanced Sephardic Studies & Culture, não existem registos de judeus na Grã-Bretanha durante o período Românico, ao contrário da Península Ibérica, França e Alemanha. Os primeiros judeus chegaram depois da Conquista Normanda em 1066. Após a conquista, Guilherme da Normandia convidou judeus financeiros de Rouen a se estabelecerem em Inglaterra.
Prosperaram em Inglaterra, principalmente no negócio dos empréstimos, facto que mais tarde ditou a sua condição de “indesejados” por se tornarem alvo de preconceito por parte de alguns Nobres, seus principais devedores. Essa condição resultou na sua expulsão em 1290.
Depois da expulsão dos Judeus de Espanha em 1492 e de Portugal em 1497, e do estabelecimento da Inquisição, um grupo de judeus mercadores portugueses, ostensivamente católicos, mas consistentemente marranos (muitos dos quais prontos para retornar ao Judaísmo), estabeleceu-se em Inglaterra.
Em 1656, o Rabino Menasseh ben Israel de Amsterdão fez uma visita a Inglaterra para tentar persuadir o Governo Inglês a autorizar os judeus a se estabelecerem uma vez mais em solo britânico. Foi então que conheceu Oliver Cromwell, que se dispunha favorável à ideia. Após a deliberação da comissão reguladora, relativamente à questão, foi anunciado que o Decreto de Expulsão de 1290 já não tinha relevância.
Seguidamente, os mercadores portugueses “criaram” uma sinagoga numa habitação, e retornaram abertamente ao Judaísmo. O Rabino Menasseh oficiou numa ocasião um serviço religioso. A comunidade judaica é assim estabelecida na Inglaterra pelos judeus sefarditas, facto que, ao longo dos anos atraiu muitos marranos de Espanha e Portugal, fugidos das Inquisição.
Muitos destes mercadores portugueses eram bem sucedidos e atingiram posições proeminentes na sociedade britânica. A comunidade sefardita prosperou e construiu a sua primeira sinagoga em Bevis Marks (Londres), no ano de 1701.
Refugiados judeus ashkenazitas da Polónia e Alemanha foram ajudados pelos sefarditas a emigrarem para a Grã-Bretanha. Ainda assim, em número pouco expressivo, pelo que os sefarditas permaneceram como a maior comunidade por mais de 100 anos. Nas suas actas ficaram registados variados nomes de famílias de origem Ibérica, tais como: Montefiore, Lindo, Disraeli, Mocatta, Da Costa, etc.
Somente no século XIX, após uma gigantesca vaga de refugiados polacos e da Europa de leste, a composição demográfica da comunidade judaica britânica foi alterada e famílias ashkenazitas, tais como os Rothschilds, se tornaram proeminentes. Os judeus sefarditas continuaram a exercer cargos de grande importância na sociedade britânica, mas foram largamente ultrapassados em número, pelo elevado fluxo de emigrantes ashkenazitas que então aí se fixaram.
Por volta de 1912, um novo fluxo demográfico de judeus sefarditas chegou à ilha, desta vez desde a Turquia e Grécia, principalmente Salónica. Devido ao declínio do Império Otomano e o controlo de Salónica pelos gregos, ocorre um enorme êxodo sefardita, com muitos partindo para os Estados Unidos da América, França e Inglaterra. Aqueles que chegaram a Inglaterra criaram uma nova comunidade separada da Bevis Marks, aceitando no entanto, autoridade da mais antiga.
Com a ajuda da Sinagoga Bevis Marks e da Fundação David Sassoon, a comunidade Oriental conseguiu construir a sua própria sinagoga em Holland Park (Londres) no ano de 1928. Embora ambas as comunidades tivessem nas suas origens os Judeus de Espanha e Portugal, foi a Sinagoga Holland Park que manteve a sua herança histórica com idioma Judeo-Espanhol e o Ladino. A Sinagoga Bevis Marks tinha as suas origens quase exclusivamente na língua portuguesa, em vez do Ladino.
Hoje, haverão cerca de 10 sinagogas sefarditas na Grã-Bretanha com uma forte vida comunitária, grande parte delas situadas em Londres, mas a Bevis Marks continua a ser a sinagoga sefardita “per se”.

Em baixo, poderá ver a imagem de um Siddur (livro de rezas) utilizado em 8 de Março de 1841 na Sinagoga Bevis Marks, que serviu para comemorar o êxito que assistiu Sir Moses Montefiore na sua missão ao Leste:

Publicado originalmente no blog Menino Rabino

Hag Sukkot Sameach…

Um filme em tempo de Sukkot: Uspishin, realizado pelo israelita Gidi Dar. O título é uma palavra aramaica que significa “convidados”. É um filme brilhante, divertido e com uma mensagem universal. Vale mesmo a pena ver.

Colecção “Sefarad” é lançada em Lisboa


A editora Nova Vega vai lançar esta semana a sua muito aguardada colecção Sefarad, coordenada por Jorge Martins. O lançamento vai ter lugar na próxima quinta-feira, dia 24 de Setembro, às 18:30H, na livraria Círculo das Letras, na Rua Augusto Gil 15B, em Lisboa. A inaugurar a colecção serão apresentados os seus dois primeiros livros: Breve História dos Judeus em Portugal, de Jorge Martins; e A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, de António Júlio de Andrade e Maria Fernanda Guimarães. As obras serão apresentadas por António Eloy e António Marques de Almeida, respectivamente.
Segundo o Professor Jorge Martins, esta colecção tem por missão principal “divulgar os estudos judaicos e inquisitoriais portugueses, preenchendo assim um vazio editorial.”





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